A Garganta da Serpente

Gustavo Machado

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Espelho sírio

(Gustavo Machado)

Casa vazia. Vazia e quente. Barulhos da noite que seguia viva lá embaixo, com a discrição garantida pelos nove andares que nos distanciavam. Comigo, angústia demais. Comida demais. Tristeza demais. Enjoo de mim mesmo. E nada de sono. Nenhuma trégua: a realidade me abraçava como um sapato muito novo que machuca pontos delicados do pé, pontos em que, geralmente, a pele é mais fina.

Rodei bastante pelo apartamento ainda meio oco. Ouvi pela milésima vez os recados da secretária eletrônica. Quem sabe eu passara reto por um recado de Laura, dizendo que havia mudado de ideia etc. Não, no Laura's voice in this tape, looser, quase ouvi esta mensagem da máquina. Droga! Preciso dormir antes que fique completamente maluco. Tarde demais, tive certeza de ter ouvido da máquina dizer, tarde demais, ouvi de novo. Dei-lhe uns pontapés e fui passear de novo pela casa, sujando as meias no chão abandonado pela faxineira que não aparecia havia séculos. Talvez porque eu não lhe abrisse a porta jamais. O negócio é rodar.

Cozinha, boa ideia. Sequei a última garrafa de água mineral do frigobar e voltei para a sala, desabando no sofá como um avião de guerra em pouso forçado na areia fofa e quente do deserto. Quente pra burro. As piores coisas da vida sempre me acontecem no calor. Sempre em dezembro. Sempre quando me sinto no lugar errado, na hora errada, na temperatura errada. E este ar condicionado de merda que não resfria coisa nenhuma? Amanhã eu ligo pra loja e devolvo este entulho, pensei, acomodando o corpo no sofá mole demais.

Controle remoto na mão, zap, zap, zap. Este sim é meu amigo fiel, zap, zap, zap. Sem pressa, todo o tempo do mundo, até meus olhos começarem a pesar, zap, zap, zap. E pesar mais, ardidos como se houvesse microscópicos cacos de vidro entre as pálpebras e os globos oculares. Deixei-os mais tempo fechados do que abertos e deu certo, a dor era menor assim. Pensamentos desconexos, semipesadelos; semi, sim, já que ainda não estava dormindo pra valer.

Fiquei uns instantes naquele estágio intermediário entre o entorpecimento e a vigília. Sentia rápidas fisgadas de sonhos ruins e, em seguida, era puxado de volta à tona, onde não era muito melhor. Quase dormia quando as imagens de uma vinheta comemorando os 30 anos da afiliada da Rede Globo me acordaram. Imagens da vinheta. Imagens não, era no singular, uma imagem específica. Sônia Braga, nos melhores momentos de sua divina forma física, trepava num telhado, num vestido curto, sem calcinhas, para alegria de meia cidade do interior que urrava lá de baixo, causando o desespero do sírio Nacib, seu marido.

Claro que não era possível entender tudo isso apenas assistindo aos poucos fraimes reservados à cena de Gabriela na vinheta histórica. Mas eu já era velho o bastante para ter assistido a uma boa parte da telenovela. E ainda por cima lera o livro de Jorge Amado. Bem melhor que a versão televisiva, como quase sempre acontece.

A história de Nacib era assim. Ele se apaixonara desatinadamente pela mulata Gabriela, cor de cravo, perfume de canela etc. Mas a natureza de Gabriela impedia que ela não oferecesse sua beleza deslumbrante a todos os olhos do mundo dispostos a contemplá-la. Gabriela era uma beleza nascida para o mundo. Deus a criara para isso, para embelezar, extasiar, chocar, provocar paixões endiabradas e desejos lancinantes. Era uma garantia de permanente insegurança para Nacib.

Com Laura também era assim. Era uma mulher deslumbrante a qual sempre haveria uma fila quilométrica de homens dispostos a fazer a corte. Homens melhores do que eu. Mais bonitos, mais interessantes, mais ricos, mais jovens e puros, menos complicados. Como o imigrante Nacib, criado pelo baiano Amado, eu estava quietinho da Silva, num período morno e tranquilo da existência, tocando minha vida sem emoções perigosas, quando, num golpe do Diabo, apoderou-se de mim a visão incandescente de uma mulher. Pus nela o olho e disse comigo mesmo: sentei na graxa. Não, não foi amor à primeira vista; foi um presságio. Sabia que logo eu, que jamais sofrera por mulher alguma, estava prestes a me apaixonar involuntariamente. Uma paixão perigosa. Paixão síria. Sírio-lusitana.

Como a Gabriela em relação a Nacib, Laura era muitíssimo mais nova do que eu. Muitíssimo mais desejável e interessante, também. Seu Nacib é moço bonito, dizia Gabriela ao pobre turco enfeitiçado. Turco não, sírio! Sírio! Laura não me achava bonito. Nem poderia, cruzes! A natureza não me ajudou neste departamento. Mas gostava de mim, a bonérrima Laura. Talvez me amasse, do seu jeito. Jamais confessaria, mas talvez me amasse. Tanto era assim que esse possível amor a atrapalhava. E como! Atrapalhou tanto que, em dado momento, mesmo sabendo que nos fazíamos bem, um bem tremendo, ela foi quem de nós dois teve mais juízo e decidiu que o melhor seria a distância. "Não é uma separação, amoreco. É um distanciamento", ela dizia, perto o bastante para que eu lhe sentisse o cheiro da pele. Sei, sei, distanciamento.

Não conheci Gabriela, a mulata de papel, mas tenho certeza de que o cheiro de Laura era melhor. Deve continuar sendo para sempre, pois ela é desse tipo raríssimo de mulheres que vão melhorando com o tempo. Tinha 19, quando nossos caminhos se cruzaram, para minha felicidade e desgraça simultâneas, há alguns meses. Foi tudo tão rápido. Ai, meu Jesus, diria meu bisavô.

Nós nos conhecemos quando ganhei um prêmio literário mixa que mesmo assim rendeu notícia no maior jornal loca. Laura foi enviada como repórter para uma pauta comigo, em dupla com um fotógrafo que eu já conhecia. Não a achei especialmente sensual ou deslumbrante num primeiro olhar. Não chegou a me desviar a atenção. Fomos falando e a coisa piorou: seu sotaque era fortíssimo. Um negócio meio irritante, no começo. Uma irritação que logo virou curiosidade. Uma curiosidade que logo virou música. Uma música que, depois de sua saída, não me saída da cabeça.

Uma vez sozinho em casa, depois que ela e o fotógrafo saíram, refiz sua imagem na cabeça. Enfiei o nariz no encosto da poltrona que ela usara e senti o cheiro que, até agora, neste momento em que zapeio na tevê a cabo, continua sendo um dos elementos mais vitais na minha natureza.

No início daquela mesma noite, passei na redação do jornal com a desculpa de pedir cópia das fotos. Deu tudo errado. Meu amigo fotógrafo estava bêbado, me entregou uma porção de fotos de outros escritor, não encontrei Laura na redação e, quando saía, tive o desprazer de vê-la deixando o prédio ao embarcar no carro de um sujeito bacana que lhe beijava a boca, rapidamente.

Voltei para casa de madrugada e enviei um e-mail dizendo que havia me equivocado numa data citada na entrevista. Ela respondeu dizendo alguma coisa espirituosa. Eu devolvi com um pedaço de um poema. E foi assim que nasceu a primeira fase de nosso amor, um amor epistolar. Que logo se transformou em encontros físicos, sem sacanagem, encontros com a doçura de torrões de açúcar. Aconteceu o primeiro beijo, um beijo forte que nasceu depois de uma tentativa frustrada em que fui repelido. E, muito, muito tempo depois, nossas primeiras noites. E tardes. E manhãs. E finais de semana inteiros. Era impressionante como nos encaixávamos em entregas acompanhadas por iguarias culinárias que nos preparávamos um ao outro numa tentativa inesgotável de impressionar, agradar, seduzir. Não sei o que é amor, se não for isso. Como nos envolvíamos sem qualquer pudor! Não havia medo ou limites, apenas um prazer enorme de dar e obter prazer e crescimento um do outro e um com o outro. Por mais feio que eu fosse, envolto nos braços e pernas e curvas de Laura eu me sentia como um sátiro, um fauno. Um sagitário, maybe. Não sei ao certo o que signifiquei para ela, o que significo até hoje, mas não me envergonho de dizer: o advento Laura foi, para mim, além de uma revolução em todos os setores da vida, a redescoberta do sexo. Foi como perder a virgindade pela segunda vez. Soube que não conhecia os limites dos prazeres da carne e do espírito. Nem os limites físicos que nos separam da exaustão suprema. Por Laura parei de fumar, aumentei os músculos e me tornei, senão um bom homem, uma pessoa melhor.

Fomos nos tornando muito ligados. Sua família me odiava. O que sobrara da minha a amava. Seus amigos me desconsideravam, mas minhas rugas não aumentaram com isso. Eu não tinha muitos amigos. Ela tinha uma vida inteira a desfrutar, eu tinha um pedaço da minha a salvar. Seria uma troca injusta. Talvez ela estivesse vendo as coisas por esse ponto de vista no dia em que seus olhinhos orientais começaram a mostrar uma inquietação que crescia como a escalada insubordinada da lava vulcânica.

Só em parte Laura e Gabriela eram semelhantes. A primeira tinha mentalidade de adulto experiente, a segunda, uma tonta. A primeira era culta, inteligente, sofisticada; a segunda, um ser primitivo. A primeira era movida por forte senso moral, enquanto a mulata de Nacib era desprovida de qualquer costume capaz de lhe refrear os impulsos. Moral, that's the point.

A diferença básica entre a Gabriela do sírio e a Laura do português aqui é que esta segunda, ao contrário da primeira, não era tão selvagem ou amoral a ponto de ter me traído. Gabriela entendia como parte da sua missão natural amar sexualmente todos os homens que lhe caíssem nas graças. Isto para infelicidade do pobre Nacib. Quero crer que comigo e Laura foi diferente. Daí, inclusive, uma de suas maiores virtudes: a fidelidade. A fidelidade e uma sinceridade de doer na alma. Ela chegou a deixar claro, ou assim eu entendi, que não poderia ficar comigo por não ser justo deixar espaços abertos a outras pessoas. Eu era bom, gostava muito de mim, mas não amava. Nem queria só isso. O que seria pouco, é verdade.

Tive consciência de estar dormindo quando me vi frente a um espelho com moldura antiga, desgastada pelos fluxos das heranças. Não era eu, não era minha imagem que aparecia ali, mas o velho e pobre sírio Nacib chorando por sua Gabriela, os bigodes fartos encharcados pelas lágrimas que iam vertendo em torrentes dos seus grandes olhos negros. Também tive a consciência de meu telefone estar tocando. Tocando. Tocando. Tocando e tocando. Morri de medo de atender e não ouvir sua voz, de não ouvir a voz de Laura. Talvez Nacib não atendesse. Mas eu não era Nacib. Laura não era Gabriela. Morrendo de medo, corri ao telefone e atendi.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br