A vida na cidade existia como sempre...
De pétalas brancas, pintadas de pus, era uma rosa jogada na calçada,
como qualquer pedaço de lixo, como qualquer resquício de vida.
Deve ter caído do alto de algum apartamento ou de algum buquê levado
por um boy desastrado, mas ela estava ali, sobre os paralelepípedos como
um quebra-cabeça diferente. Pisada por qualquer um que passasse, a rosa
se mantinha 'sobreviva' se alimentando apenas da garoa que caía levemente
sobre a velha metrópole cinza. Seus espinhos estavam frágeis,
ela estava sem defesa alguma e suas pétalas não estavam tão
claras quanto foram um dia, havia certas manchas negras sobre as suaves pétalas
daquela rosa que um dia foi símbolo de paixão e naquele momento
era símbolo de descaso.
Há metros dali, uma menina branca, mas de cor de sujeira, magra como
pau-d'água, com cara triste, estava com fome, libertou-se do papelão
que a cobria para se livrar da garoa e do frio e saiu atrás de algo 'comível'.
Andava como podia, de mãos e pernas atrofiadas, deficiente física,
parecia ter saído de algum filme de terror, mas não era monstro,
era real, era humano, ou quase isso. Já não ligava quando as pessoas
à sua volta a olhavam estranha, às vezes chegava a achar divertido
quando os outros se distanciavam dela como se ela fosse portadora de alguma
doença altamente contagiosa. No fundo ela acreditava que tinha alguma
doença assim que necessitasse da distância dos outros. Andando
daquele jeito, ela acabou, inevitavelmente, por tropeçar num dos paralelepípedos
mal postos da calçada e seu rosto ficou a um centímetro daquela
rosa branca que tanto parecia com ela: se bem cuidadas, poderiam até
ser bonitas...
E a vida na cidade continuou existindo... Isso lembra Fernando Pessoa:
"A flor caída no chão.
A flor murcha (rosa branca amarelecendo)
Caída no chão...
Qual é o sentido da vida?" - Fernando Pessoa