Chegou em casa 6:30 h, como fazia sempre. Encontrou a TV ligada, a mulher na
cozinha, cortando os legumes para o jantar. Tudo pareceria normal, não
fosse a cara de Osvaldo. Uma cara estranha, indefinida, horrorizada, esquisita
mesmo.
- Que cara é essa?
- Aconteceu.
- Aconteceu o quê? - perguntou Bete, sua esposa há mais de 20 anos.
Nunca tinha visto o Osvaldo daquele jeito.
- Aconteceu o pior.
- Que pior? Fala logo, não me deixa nervosa.
- Ganhei na loto.
A mulher quase arrancou um pedaço do dedo com a faca que cortava a batata.
O Osvaldo gostava da batata cortada em quadradinhos que só a Bete sabia
fazer. O quadrado de batata que ela cortava quando ouviu a notícia acabou
ficando torto.
- Mentira.
- Juro. Olha aqui - Tirou do bolso o bilhete e o recorte de jornal com os números
sorteados. Tinha a cabeça baixa, os olhos marejados, como um menino que
mostra a mãe um boletim com notas vermelhas. Ainda acrescentou, num rasgo
de coragem: Ganhei sozinho.
- Não, não acredito, não pode ser, é muita desgraça!
- Bete começou a esfaquear as batatas.
- Eu sei, querida, também estou desesperado!
Os dois se abraçaram. Bete largou a faca com medo de fazer uma besteira.
Começaram a chorar. Bete era mais escandalosa. Gritava de vez em quando.
- Que destino! Que droga de destino! A vida é uma tragédia!
Osvaldo tentou se controlar. Era o homem da casa. Não podia se deixar
levar pela dor da mesma maneira que a mulher.
- Calma, Bete, a gente dá um jeito. Só a morte não tem
solução.
- Mas, Osvaldo, por que você foi fazer isso? Por que foi jogar? Não
sabia que isso podia acontecer? É como uma roleta russa! Um dia acontece.
E agora?
- Bom, agora temos 15 milhões de reais.
- Não fala, não quero saber, estou tão triste!
- Eu também, vim para casa pensando. Nunca mais vou ver o pessoal do
escritório. Nunca mais vou almoçar no pf da Dona Arminda com eles,
nunca mais vou comprar cd pirata no camelô. Nunca mais vou comer batatas
quadradas nem ouvir o jogo do flamengo no radinho.
Bete não estava ouvindo, estava envolta em seus próprios problemas.
- Nunca mais vou fazer a unha com a Su. Nunca mais vou poder vender os doces
que eu aprendo a fazer na tv, vou perder o final da novela das oito. Nunca mais
vou cortar esses legumes. Não vou mais comprar panos de prato na feira.
Acabaram as fofocas com a Odete. Não vou mais encontrar uma amiga no
ônibus. - Esse último pensamento a horrorizou - Nunca mais vou
andar de ônibus! Vou ter ficar num táxi, um motorista me olhando
pelo retrovisor, pensando em aonde eu estou indo, o que vou fazer lá,
pode ser um assassino, um estuprador, ai meu Deus, já estou saudades
dos pivetes do ônibus....
- Calma, amor, tudo vai se resolver, a gente compra um carro.
- Carro? Dirigir nessa cidade louca? Estacionar? E os radares? E as blitzs?
E o IPVA? E os assaltos? E os sequestros? Não quero nem pensar...
- A gente contrata um motorista de confiança...
- De confiança? Ficou louco? E rico lá confia em alguém?
Você acha que alguém ainda vai querer ser nosso amigo? Um casal
de milionários? Todos só vão querer nosso dinheiro, vão
puxar nosso saco, ficar nos ligando toda hora, vão nos pedir coisas,
viagens, roupas, entrevistas, vão propor negócios para gente.
Ninguém vai querer falar de nada com a gente, só de dinheiro.
Só dinheiro. Até os nossos filhos, Osvaldo, até eles, é
capaz de eles quererem que a gente morra para poder ficar com o nosso dinheiro.
- E se a gente desse tudo para eles logo?
- Logo como? A Maíra tem 12 anos e o Juninho, 16. E para quê distribuir
essa desgraça?
- Tem razão, quero o melhor para eles.
- Por que você foi jogar?
- O pessoal do escritório fez um bolão.
- Bolão? Que diabo é isso?
- Todo mundo se junta e joga, se ganhar o prêmio é dividido.
- Mas você disse que ganhou sozinho.
- Pois é, fui cair na besteira de dizer que não queria participar,
aí eles ficaram debochando e, você sabe, para não ser motivo
de chacota, joguei depois, sozinho.
- É muito azar, Osvaldo, muito azar. - Bete não se conformava.
- Só de pensar amor, já estou com saudades da minha pelada de
sexta-feira, nunca mais vou tomar uma cerveja em paz no bar do Arnaldo, nunca
mais vou comer aquele churrasco na laje, na casa da Marilene e do Gilberto.
Não sei o que fazer.
Vendo o desamparo de Osvaldo, Bete resolveu botar a cabeça para funcionar
enquanto cortava as batatas, os últimos quadradinhos de batatas da sua
vida. Teve uma ideia.
- Já sei, Osvaldo. Acabou o problema. Já sei. Vamos doar tudo
para instituições de caridade. Pra gente, é muito. Mas
se a gente dividir vai dar um pouquinho para cada um... Ninguém precisa
saber. A gente pede para não divulgarem nossos nomes. Se alguém
desconfiar, a gente nega. É só dizer "Imagina, cê acha
que se eu tivesse ganhado na loto, ia tá aqui, nesse buzão?"
E aí a gente vai dando o dinheiro aos poucos, 5 mil ou 10 mil pra cada
instituição. Você vai ver, a gente vai conseguir.
Pela primeira vez, desde que tinha recebido aquela terrível notícia,
Osvaldo sorriu. Que mulher ele tinha! Ainda bem que era pobre quando a conheceu,
senão, já viu, o que tem de interesseira por aí. Ela tinha
razão, claro. Que ideia! Sentiu fome só de pensar nas batatas
quadradas.
Deu um beijo na bochecha da mulher e falou.
- Você é a minha salvação! Claro, a solução
é essa. Agora vamos jantar, que eu chego do trabalho morto de fome. E
vai sempre assim, meu amor, sempre!
Mas esse jantar acabou não sendo um jantar normal. Para comemorar a
solução da mulher, Osvaldo resolveu abrir uma garrafa de sidra,
que tinham ganhado em um natal de um ano já esquecido. Estava quente.
Eles decidiram colocar gelo. Sabe que ficou gostoso? A mulher, ao provar, saiu
correndo para cozinha, e trocou os copo por duas taças, usada só
em festas. Ao longo do jantar, foram se descontraindo, efeito da sidra, das
taças, do dinheiro.
- Ainda bem que as crianças foram dormir fora hoje - disse Bete, maliciosa.
- É, pelo menos não precisaram participar dessa tragédia
- Osvaldo não tinha percebido as intenções da mulher até
vê-la pegar uma pedra de gelo da sidra e começar a esfregar pelo
pescoço e em direção ao decote da camisola.
- Estou quente - justificou.
Há muito tempo, Osvaldo não via a mulher com aqueles trejeitos.
Virou seu copo de sidra num gole só e deu-lhe um beijo que o fez lembrar
dos tempos de namoro. Ela riu. Um riso diferente. Não parecia mais aquela
mulher que cortava batatas quadradas. Ele mordeu o pescoço dela. Também
estava diferente. Agressivo. Um homem de decisões. Ela se deixou cair
nos braços dele. Ele a levantou no colo. Foram assim em direção
ao quarto. Antes de caírem na cama, ela disse:
- Amor, quanto custa um cruzeiro de transatlântico?
- Não sei. - ele tentava pensar enquanto equilibrava o já não
tão leve corpo da mulher que amava.
- A gente podia fazer unzinho, pelo mundo, você sabe, antes de doar tudo
pros pobres, é tanto dinheiro, nem vai fazer diferença.
Osvaldo jogou a em cima dos lençóis arrumados e a beijou com
força, como nunca fizera antes. Que ideia! Que ideia! Embarcar
num cruzeiro pelo mundo e ainda continuar comendo batata quadrada a vida inteira.
Lembrou dos anúncios de cruzeiro que já tinha visto. Piscinas,
salões de festa, mar azul. Uma viagem só não ia fazer mal.
Sua mulher era o máximo! Antes de tirar a roupa, alisou o bilhete no
bolso com alegria.