A Garganta da Serpente
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A professora

(Giuseppe Butera)

Nat era o privilegiado proprietário daquele formidável Ford Corcel 1973 vermelho-fogo. Entretanto, não sabia ainda dirigir carros. Ganhava bastante, mas fazer todos os dias aqueles intermináveis trajetos de táxi para vender pacotes turísticos a centenas de paulistanos, pra ele era de morrer. Por isso, tinha comprado o carro e estava frequentando a autoescola.

Eu, recém-chegado em São Paulo com uma mão na frente e outra atrás, era, pelo contrário, um experiente motorista. Assim, o negócio foi logo fechado. Eu teria sido o chofer dele e iria arrasta-lo pra frente e pra trás, ao longo da teia de aranha de ruas e avenidas da megalópole. Em compensação, ele garantir-me-ia um teto e um colchonete para deitar no chão, toda noite, no minúsculo hallzinho de entrada do micro apê da Rua Pindamonhangaba.

Fran era o outro companheiro de moradia e, na realidade, tinha pintado aí eu também, exatamente por ser ele o amigo siciliano que eu conhecia fazia anos e que tinha procurado para tentar a vida no estrangeiro. Mas Fran trabalhava por sua conta o dia todo e voltava só à noite para dormir. Além disso, ele passava os fins de semana com a noiva e, portanto, na maior parte do tempo, estávamos apenas nós dois: Nat e eu.

O primeiro dia em São Paulo eu tinha-o passado atrás da papelada para obter a licença especial de motorista, que me teria evitado o perigo de pegar uma multa.

O dia seguinte eu estava pronto para a entrevista com o primeiro cliente de minha nova carreira. Era um italiano que fazia anos que não aparecia na terra dele e com certeza estaria louco pra comprar o roteiro de viagem a preços derrubados que Nat vendia. O escritório do sujeito estava localizado no décimo andar de um edifício lá perto e não valeria a pena de pedir que tirassem o belo Corcel da garagem debaixo do restaurante Sizinho na frente do nosso prédio, para ir estaciona-lo algumas centenas de metros mais adiante. Fomos, assim, a pé e nos assentamos na sala de espera. Eu estava de camisa e levava na mão a carteira com o dinheiro, passaporte, carteiras italianas de identidade e de motorista, licença brasileira pra dirigir, tudo que me pertencia.

Nat tinha iniciado a dar corda à já loquaz secretária, desafogando o gogó que o céu lhe tinha providenciado e que tornava curtíssimo o compridíssimo tempo de espera.

De repente, ela interrompeu-se para nos convidar a entrar no escritório do chefe e eu pulei na hora de meu macio sofá, no qual estava surfando sobre a onde de meus pensamentos, para precipitar-me atrás do Nat, já arrancando como um cão de caça em direção à segura presa.

O patrício nos recebeu com branda cortesia e logo começou a se queixar de seus irmãos, lá na Itália, com os quais tinha praticamente quebrado as pontes e, agora que os pais deles tinham falecido, não encontrava motivação para ir passar umas férias na terra natal. Os raciocínios e as considerações de Nat de pouco adiantaram no intuito de guiar o negócio em diração à meta almejada e até sua torrente verbal acabou assoreando-se em mornas despedidas.

Havíamos chegado no meio da escadaria, quando um raio sinistro atravessou a minha mente.

- Mannaggia! Esqueci a carteira no sofá.

Voamos de volta à salinha de espera. Nada. Tudo o que tinha havia desaparecido debaixo dos olhos arregalados da secretária faladeira, do cliente atônito e dos míseros quadros pendurados nas paredes ao redor.

Bem-vindos a São Paulo!

Assim, passamos o restante da manhã correndo atrás da papelada para recuperar as fotocópias, que por sorte tinham sido exigidas pelo Detran, fazer o boletim de ocorrência policial pelo desaparecimento dos originais, para poder finalmente chegar à expedição de novos documentos. Foi desse jeito que, até recuperar a perda de tudo aquilo, tive que me virar com o que tinha ao meu alcance.

Fran tinha montado um pequeno laboratório fotográfico na minicopa e se divertia revelando filmes e fotos em preto-e-branco nos fins de semana. Eu também tinha aprendido a arte-hobby e decidi imediatamente utilizar o inédito quebra-galho.

Assaltei então o armário do Fran, como sempre fora de casa, na certeza de que ele não teria dado a mínima se tivesse sabido que eu tinha usado alguma de suas roupas. De costas pra branca parede do corredorzinho, portanto, parei diante da câmera com o flash automático engatilhado e... Clique! Pouco depois, eu estava me admirando nas nítidas fotos três por quatro saídas do forno da extemporânea cozinha-câmara-escura. Aquele dia mesmo a entregaria ao Consulado Geral, lá na avenida Hygienópolis, para encaminhar a renovação do passaporte italiano.

Daquela foto observava-me, sério e empinado, um jovem cabeludo de óculos, entalado num espalhafatoso paletó xadrez e com uma gravata de finíssima fatura. Ninguém teria podido nunca desconfiar que aquele galã atarantado pudesse ter sido fotografado de cuecas.

...

Aquela noite, porém, não estávamos indo para a casa de nenhum cliente. Nat tinha uma amiga professora de Enfermagem, que tinha voltado, fazia alguns dias, de um cruzeiro pra Ushuaia e nos tinha convidado para um jantarzinho em seu pequeno apartamento, no centro. Só para se encontrar e nos presentear com a tradicional lembrancinha do pinguim-chaveiro.

Era solteira, sobrevivente, porém, dum tempestuoso divórcio do marido, italiano como nós, empedernido jogador de pôquer, de cujo vício tinha conseguido arrancar apenas aquele apartamento e nada mais.

A Ushuaia havia ido passar o reveillon, junto com uma colega solteirona. Embarcadas no porto de Santos, haviam desfrutado uma semana de boa vida no Enrico C, com escala em vários pontos da costa brasileira e Argentina, até alcançar o gélido porto da Patagônia chilena.

Perfeitamente pontuais, no Corcel de brasa, eu já com ou dos dois aprumadíssimos ternos - o violeta risca de giz - adquiridos numa extraordinária liquidação do Mappin, o portão da garagem arregalou-se imediatamente e o porteiro convidou-nos a subir. Éramos esperados de verdade.

Agora, estávamos aí a cumprimentar as duas gentilíssimas anfitriãs, na porta de casa, com um bom vinho italiano na mão. Mas, surpresa, elas não estavam sozinhas.

- Vem, Flor-de-lis, nossos amigos chegaram -, chamaram a uma só voz, em coro as duas regozijantes professoras de enfermagem.

Que estrondo, gente! O teto caiu-me na cabeça em uma nuvem de imponderável poeira, uma avalanche de entulhos invisíveis, um estardalhaço de chocalhos primordiais, explodidos de repente nos meandros de meu atônito cérebro.

Atrás daqueles acolhedores sorrisos familiares, surgia ignoto um sol moreno. Vinha em paz, um halo mole gingando, arrastando atrás dele um turbilhão de silencio. Uma flor-de-lis túrgida de olhos negros, de boca vermelha e macia, incessantemente entretida em dirimir tênues turbamentos.

- Ela também é professora de Enfermagem? - Nat, francamente, não estava minimamente interessado na loira dona da casa e nem tinha percebido sequer a secreta atração que a afável velhota nutria por ele, fazia tempo. Na realidade, não lhe interessavam as mulheres. Mas tampouco os homens, seja dito, a bem da verdade. Aliás, acho que, em matéria de sexo, ele fosse de uma inocência impúbere. Mulheres, zero. Sexo, zero.

Ele tinha recém saído do seminário por razões todas suas, mas preservava um rigor tridentino que não lhe permitiria nunca uma qualquer aproximação pré-marital com quem quiser que fosse. E andava satisfeito com isso. De outro lado, alegre, confiável e convincente como ele era, conquistava com a maior facilidade clientes e colegas, com sua simpatia e generosidade.

Eu, ao contrário, andava perpetuamente ao sabor dos fatos, dos sentimentos e dos encontros. Por isso, o novo emprego me calçava como uma luva. Situações sempre novas e uma panorâmica diária de paisagens, de gente e de acontecimentos arrebatavam-me constantemente entre dúvidas sistemáticas e certezas contingentes, entre planos irrealizáveis, mas obsessivamente perseguidos, e fáceis ofertas improvisas do imprevisível cotidiano.

- Sim, começo de carreira, entende? - A loira Marilú estava já no fogão para aprontar as comidas e estava tagarelar com Nat, com tantas histórias pra contar, enquanto a companheira, Maria de Fátima, tinha providenciado a ruptura do impasse com um disco de boleros.

Dessa forma, fique sozinho, lá, teso, intento a assimilar os efeitos da pancada, com aquela fulguração cegando meus olhos, paralisado, mais que transtornado, sem saber que atitude tomar, nem onde pousar, pelo menos, aquele olhar de idiota.

- O que acha, vamos dançar? - Tomou a iniciativa Flor-de-lis.

- Vamos.

(E agora, o que vou fazer? Onde vou pôr as mãos? Como vou me virar para guiar esta divindade vibrátil, com meus braços de repente lenhosos, com as pernas petrificadas, com a batedeira em contracanto ao melífluo bolero?).

Foram os delicados braços da sílfide tropical que dirigiram com extrema graça as minhas mãos em direção à improvável arribada em trêmulos promontórios e acolhedoras baías.

- Gosta de música?

- Sim.

- Qual?

- Toda.

- O rock?

- De loucos.

- A erudita?

- Também.

- Quem?

- Chopin, naturalmente, Mozart, Bach, Haydn, Ponchielli...

- Ponchielli?!

- Sim, Ponchielli, Vivaldi, grandes sinfonias, e Mascagni, Rossini, Donizetti, Puccini, grandes óperas... Até Palestrina. Suas polifonias me encantam.

- Ah...

A cada resposta minha, a frágil garota parecia tornar-sei sempre mais robusta, sin perder la ternura. Os meus braços, já relaxados, custavam ao contrário a controlar a progressiva exaltação que invadia e a agigantava.

- E dos brasileiros, conhece algo?

- Claro, Chico Buarque, Caetano Veloso, Vinícius de Moraes, Toquinho...

- Vinícius de Moraes?

- Sim, "uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza, qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade..."

-Conheço-a, é do Vinícius?

- Sim, o samba da benção. Aquele sim que é um grão poeta, além de ser um grão compositor.

E, da música, passamos a tocar na literatura, eu me gabando de meus míseros conhecimentos da brasileira e ela se surpreendendo com sua própria imensa ignorância daquela mundial. Pirandello dando uma de cavalo de batalha (Nunca ouvi falar!), mas, Shakespeare, pelo menos (Naturalmente!), seus sonetos, as tragédias, as comédias (Vai saber?!), Alexandre Dumas (Ele também inglês?), Gabriel Garcia Marques (Ah, este sim, Cem anos de solidão!)...

E depois, toda a história da filosofia. Até os pré-socráticos vieram literalmente à baila. Mas de Sócrates, Aristóteles, Platão, pelo menos havia escutado falar. O flatus vocis de Roger Bacon, ao contrário (O que?!), e a restauratio ab imis fundamentis do outro Bacon, sir Francis (Quem?!), acabaram emudecendo-a totalmente, ao logo da restante execução musical.

E veio ainda a sequência de meus entusiasta relatórios sobre os Heróicos Furores de Giordano Bruno e das desafortunadas intuições monístico-panteísticas de Spinosa, com a irrenunciável referência aos extraordinários gênios derrotados, Abelardo com a paixão medieval pela diatribe, imortalizada em seu Sic et non, o seu trágico amor por Eloísa, tornado impossível pela dupla castração, do pensamento e do sexo (um lânguido Aah...).

Claro, os Escolásticos, mas deles teria escutado falar na igreja (Com certeza!). Menos de Duns Scotus, embora tenha ensinou para toda a escola anglo-saxônica, Hobbes, Hume, Locke, o caminho em direção da evolução empirista do pensamento ocidental. E, por fim, os "contemporâneos". Pra começar, Kant, dono da verdade incognoscível, do noúmeno incompreensível, do eu categórico autodeterminante (Não me diga!). E os seguidores da direita e da esquerda histórica, os gigantes Hegel e Marx com suas tropas de acólitos. E ainda os positivistas todos, entre os quais, Benjamin Constant, que ela deveria conhecer por ter sido um dos mais ativos republicanos e realizador da utopia de Augusto Comte e Emílio Durkheim no Brasil (Ah, sim, claro!). E Bergson, o intuicionista, os existencialistas, Sartre em primeiro lugar e seu L'être et le Néant (Como?) e ol divino Heidegger, no rastro dialético das posições nietzcheanas e schopenhauerianas... Quando cheguei em Wittgenstein, ela era perdidamente minha. Podia se ver de longe que não entendia lá grande coisa de todo aquele excursus, mas a simples suspeição de meu acervo cultural propiciava-lhe a certeza de que eu era tudo aquilo que ela teria podido desejar em um homem.

Os olhos da enfermeira docente iniciaram, então, a despir-me com delicada sabedoria profissional, suam mãos suaves a lenir-me placidamente com o bálsamo da admiração e da entrega. Sobre meu esquálido presente, estendia-se a tênue coberta de um luminoso futuro, como promessa e como penhora, mas concreto e vibrante. As chagas, fruto de minha interminável peregrinação, saravam como por milagre e eu abria-me à esperança como um Lázaro sem Cristo.

De repente, porém, interrompeu-se:

- E o que você faz?

- Sou o motorista de Nat.

O ídolo de ouro desmoronou na hora sobre as pernas de insuspeitado barro, que se esfarelavam no leve impacto de um único instante. Os seus braços macios escorregaram sobre os meus, como mangas de um capote esfarrapado, já frias e crispadas, no arrepio devastador da improvisa revelação.

Fiquei sozinho, na angústia do meu terno atilado, com minhas certezas ora dispersa entre mil dúvidas, como sobre uma gangorra abandonada, empurrado, ainda, unicamente pela força de inércia do canto mavioso de Gardel.

Não lembro sequer se consegui tragar os quitutes da Marilú, mas, com certeza, não ouvi uma só palavra das conversas trançadas, pelo resto da noite, pelas três mulheres, e dos verborrágicos assolo de Nat.

Não voltei a encontrar nunca mais a professorzinha. E, sinceramente, desde a hora em que me assentei no triunfal Corcel sangue vivo, de volta pra casa, não consigo fazer entrar a lembrança dela em nenhum dos meus indefiníveis pensamentos sobre a vida. A coisa mais emocionante daquele encontro, que ainda permanece em mim, é aquele inimitável disco de boleros.

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