O acidente. Lembro que sofri um acidente quando estava a caminho do hospital.
Minha mulher, minha filha... O que terá acontecido a elas? Minha cabeça
dói; meus olhos doem. Quanto tempo será que fiquei inconsciente
nesse leito? Não há mais ninguém no quarto. Escuto alguns
passos e conversas distantes, do outro lado da porta. Não consigo falar?!
Nem mexer meu corpo. Meu pescoço está imóvel, tento, mas...
Não dá pra virar a cabeça. Concentro-me, esforço-me
em emitir algum som, chamar alguém, mas é inútil. Já
estou cansado. Preciso falar com alguém. Tenho que saber notícias
da minha mulher e da minha filhinha. Alguém me ajude, por favor. Pudera
fazer alguém ouvir meus pensamentos desesperados. Estou gritando de dor,
no entanto, tudo é silêncio. Minha filha, oh Meu Deus, não
a tenha levado, peço-te. Nem a minha esposa. Salve-as. Tenha-as salvo.
Eu não cheguei a tempo... Eu não consegui falar com ela. Era o
que ela queria, o que ela me pediu, mas eu a desapontei. No último instante,
eu não estava lá. Por favor, alguém apareça. Como
dóem os meus olhos. Trancado neste quarto de hospital, muito embora possa
enxergar, sinto como estivesse numa total escuridão. Escuro... Ela não
tinha medo do escuro, minha pequena. "Pode apagar a luz, papai." Ela
dizia. "Sou corajosa." Alguém fala comigo, por Deus. Agora
meus olhos também pesam. Não posso voltar a dormir. Preciso ficar
acordado, caso alguém venha me ver. Não posso dormir. Tenho que
saber notícias delas. Que terríveis pesadelos me aguardam agora
que acho que elas podem estar mortas. Tenho muito sono, mas... Tenho que me
manter desperto. Não durma! Não dá. Estou fraco, sonolento.
Queria que tudo isso fosse só um sonho ruim. Que meu próximo abrir
de olhos não só me tirasse dessa escuridão, mas que me
levasse à luz os olhos da minha filha.
Estou escutando alguém... Uma mulher.
- ...é melhor que falemos com ele.
Quanto tempo dormi? Há um homem também, posso ver, parece ser
um médico. Ainda não perceberam que acordei.
- Notícias dessa importância, boas ou más, podem piorar
o estado de...
A mulher se virou e olhou para mim, levando um susto. Logo veio em minha direção.
- Sr. Daniel... Que bom que acordou.
Quem é ela? Não me lembro dessa mulher. Olho fixamente para ela,
tento buscar uma memória, mas nada. Ela também me olha firmemente.
Está abatida, exausta, dá pra ver pelo seu, ainda assim, belo
rosto. Ela tinha chorado muito. Por mim? Chorado por mim? Por quê?
- Estávamos todos convencidos de que o senhor conseguiria. - disse ela
se emocionando de novo e envolvendo minha mão direita com as suas.
- Muito bem, Sr. Daniel. - agora foi o médico que falou.
Não estarei tão bem enquanto não souber o que houve com
as pessoas que mais amo. Digam-me como estão minha pequena Eduarda e
minha querida Fernanda?
- Que grande vitória ter chegado até esse ponto - continuou o
doutor - e como a Senhorita falou, estamos certo que irá se recuperar
plenamente.
Onde está Eduarda? Minha esposa, o que aconteceu a ela depois que conversei
com o senhor pelo telefone? Foi o senhor que me ligou para me contar do acidente
dela? Eu estava vindo pro hospital. Como... O que posso fazer pra me entenderem?
Preciso fazer alguma coisa... Piscar os olhos, talvez... Nada. Espera. A mulher
desconhecida percebeu. Vamos, você sabe o que me angustia, não
sabe? Diga-me... Por que está olhando para o doutor? Por quê? Eu
tenho que saber.
- Ele está se agitando, doutor. - ouvi a mulher dizer com um tom de desespero
- Ele quer...
- Vamos conversar lá fora, por favor.
Não! Não me deixem aqui sozinho novamente. Só me falem
e aceitarei o que quer que esteja me esperando.
- Doutor, eu acho melhor...
- Vamos, me acompanhe.
Não! Eu peço. Falem comigo. Ajudem-me a amenizar essa terrível
dor. Não... Oh, Meu Deus, não os deixe ir. Esse quarto vazio,
mais uma vez. Eu... Ah... Eduarda... Minha filha, não, não pode
ser. Minha filha está morta. De repente... Lembro-me agora.
Estava no carro a caminho de casa. Preso há mais de três horas
num infindável engarrafamento logo após a saída do túnel.
Ansioso, impaciente pra chegar ao meu destino, pois minha mulher e filha me
deveriam estar me esperando num restaurante perto de casa, eu achava. Por um
momento, olhei pela janela e percebi, no céu escuro e sem nuvens, uma
estrela. Não era comum poder visualizar as estrelas na cidade, mas aquela
brilhava com força, vigor e se fazia enxergar esplendorosa. Tão
bela e tão solitária. Nenhum outro ponto luzidio fazia-lhe companhia.
Fitei a estrela por uns instantes. Senti-me atraído a encará-la,
talvez por achar que não teria outra oportunidade de vislumbrar tal beleza.
Enchi-me de felicidade, durante aqueles segundos. Feliz. Então, ouço
meu celular tocar. Atendi.
- Alô?
- Daniel, é Fátima - ela estava chorando - Vem pro hospital agora.
- O que houve?
- Fernanda e Eduarda, Daniel.
- Fátima...
- Elas estavam andando numa calçada quando um maluco num carro...
- O que aconteceu? - interrompi.
Não obtive resposta imediatamente. Por alguns segundos ficamos os dois
calados. Não sei bem por qual razão, mas o silêncio me fez
sair do carro. Olhei de novo para o céu, mas não encontrei a estrela.
- A Eduarda não...
- O que? - perguntei assustado.
- Um acidente.
- Vem pra cá. A Fernanda pediu pra falar com você. Rápido.
Não sabia o que fazer. Olhava em todas as direções, andava
de um lado pro outro. Não podia ter acontecido. Não a minha filha.
Comecei a chorar.
- Os médicos acham que ela pode sobreviver, mas eles me pediram par avisá-lo
o mais rápido possível. Não sei talvez 30 ou 40 minutos
seja tudo que ela tem.
E era tudo que eu tinha. Alguns minutos pra encontrar a mulher que amava pela
última vez e ouvir o que ela queria me dizer como último pedido.
- Mantenha sua irmã viva, Fátima. Eu chegarei logo. Faça-a
resistir.
Não ouvi o que ela respondeu. Entrei no carro rapidamente. Larguei o
telefone sobre o banco de passageiros. Só percebi que tremia quando pus
as mãos no volante. Os carros continuavam parados, mas eu precisava sair
dali. Ia pra frente e pra trás, buzinava, gritava. Consegui abrir um
espaço suficiente pra dar a volta. A outra mão da avenida não
estava congestionada. Nunca dirigi tão veloz. Acho que em muitos momentos
nem via os outros veículos. Não me importava com nada a não
ser chegar ao leito de minha esposa e ouvir suas últimas palavras. "Mas
o médico disse que ela poderia sobreviver." Pensei esperançoso.
Pisando cada vez mais fundo no acelerador desviei de tudo que aparecia na minha
frente. Uma imagem sombria tomou conta da minha mente e vi minha filhinha estendida
numa cama, imóvel, fria, pálida, morta. O telefone tocou mais
uma vez. "Será que...?". Teria meu tempo se esgotado? Então,
virei minha cabeça e estiquei o braço pra alcançar o telefone.
Agarrei-o. Daí, aconteceu. Foi tão rápido. Ao olhar de
novo pra frente, via que tinha entrado na contra mão. A luz de dois grandes
faróis ofuscou minha vista. Acho que naquele momento percebi o que estava
pra acontecer. Meu carro já estava perto demais do caminhão. Teria
tempo? Não. Tentei virar o carro pra direita, mas já era tarde.
Posso dizer que meu carro bateu de frente. Meu corpo avançou contra o
painel do carro. Senti uma forte pancada no tórax e minha cabeça
atingir o pára-brisa. Logo em seguida, tudo de que me lembro é
de ouvir um grito de horror de uma mulher, como se ela estivesse diante da própria
morte.
Agora, pelo menos, tem uma das respostas. Minha filhinha de 3 anos se foi.
Nunca imaginei sentir tamanha tristeza, Meu Deus. Estou exausto. Espero o sono
e não temo mais os pesadelos. Tenho, pelo contrário, esperanças
de sonhar com os dias de alegria que Eduarda me deu.
Estou cego! Acordei, mas não consigo abrir os olhos, nem mexê-los.
Não posso ver! Estou consciente, mas não posso enxergar. Parecia
impossível que aquela angústia pudesse aumentar. Que sensação
horrível. Sozinho, numa escuridão infinita. Não perdi a
audição ainda. E... Embora não consiga mover as mãos,
sinto o tecido do lençol sob meus dedos. Então é isso.
Aos poucos vou deixando meus sentidos, minhas capacidades. Não temo.
Oh, Meu Deus, peço que olhe por minha filha e mulher e por mim. Mesmo
diante de tanto sofrimento, acredito em tua força. Mesmo agora, aceito
suas decisões para minha caminhada. Só espero que sua vontade
seja feita logo. Se assim o desejar, seguirei em frente com minha vida, que
será mais difícil e solitária por causa da ausência
de Eduarda e, talvez, de Fernanda. Se por outro lado, decidir que tenho que
partir, que assim seja. Poderei, então, encontrar minha filha e minha
mulher. Mais uma vez, só peço que acabe com esse sofrimento.
Alguém está entrando. Agora está envolvendo minha mão
direita com as suas. Reconheço o toque. É a mulher desconhecida.
- Ah, Sr. Daniel. Está dormindo a quase 3 dias, mas sabemos que ainda
vive. Não sei se pode me ouvir, mas tenho algo a dizer.
Fale. É sobre Fernanda? Você sabe como...
- Eu te amo.
O quê?
- Por favor, não vá. Amo-te tanto, que não posso suportar
perder esse amor que preenche meu coração de vida e felicidade
e que tem me acompanhado por 2 anos.
Do que está falando?
- Nem ao menos sei se lembra-se de mim. Trabalhamos na mesma empresa. Vimos-nos
pela primeira vez a quase 2 anos, quando fui apresentada ao conselho da empresa.
Estava sendo promovida naquele dia
Soleng... Solange... Sol!? Lembro-me da reunião.
- Bem, como diretor financeiro, apresento minha nova secretária, Senhorita
So-len-geusa. Acertei?
- Sim, Dr. Pedro. Bom dia a todos. Os senhores perceberam que meu nome é
meio estranho, eu sei. Por isso fiquei a vontade pra me chamarem de Solange,
Gil ou Sol, como acharem melhor. Essa nova oportunidade que me foi dada pelo...
Você vem guardando esse sentimento desde aquele dia?
- Quando o vi naquela sala, senti meu coração disparar. Nada tinha
sido tão forte até então. Estava completamente apaixonada.
Sei que quase não nos víamos ou mal nos cumprimentávamos
nas reuniões, mas meus sentimentos não pediam por isso. Eu te
amo. Simplesmente. Pode achar estranho, solitário amar alguém
assim, mas não. Pelo contrário. Esse amor me faz companhia. Todos
os dias, quando acordo, ele ainda está lá, batendo forte em meu
peito. Mas o dia do acidente me trouxe medo e angústia. Desde aquela
noite, sinto-me apavorada com a possibilidade de... Eu também estava
no engarrafamento. Antes que pudesse vê-lo, lembro-me de estar olhando
pro céu. Como estava estonteante o céu naquela noite. Lembro-me,
ainda, de fitar uma estrela. Era uma estrela especial, eu acho. Tinha um brilho
diferente. Mais belo e forte. Olhando pra ela, lembrei-me do senhor e me senti
feliz. Uma felicidade incondicional e, aparentemente, inabalável. Então,
quase como se levando um susto, vi um homem sair de um carro alguns metros a
frente do meu. Fiquei preocupada quando percebi que era o senhor. Vi que estava
nervoso e inquieto enquanto atendia ao telefone. Então o senhor entrou
no carro e tomou o outro sentido em desparada. Quando dei por mim, já
o estava seguindo.
Eu estou estranho. Sinto minha respiração mais lenta. Já
não sei se as mãos dela ainda abraçam a minha.
- O senhor dirigia tão rápido e... Eu tinha que tentar pará-lo.
Então, do meu celular, liguei pro senhor. E aconteceu. Alguns segundos
depois, o seu carro bateu de frente com um caminhão. Foi a pior dor que
já senti. Saí do carro às pressas. Corri em sua direção.
Quando o vi, dentro do carro, não contive um grito de horror e tristeza.
Não podia estar acontecendo, podia? Como conseguiria continuar se o senhor
tivesse... Felizmente não. Chamei uma ambulância e viemos pra cá.
Foi assim que aconteceu. E agora, sinto que estou indo embora. Deus ouviu meus
anseios. Não escuto mais como antes. Sua voz está longe.
- Por amá-te tanto, tenho que fazer o que é melhor para o senhor.
Sua alegria é a minha, Sr. Dan... Daniel. Por isso...
Não posso mais continuar. Vou encontrar minha filha. Desejo que seja
feliz. Quase não te escuto mais.
-... Trouxe notícias. Não sei como tais notícias vão
influenciar no seu estado, mas preciso falar porque sei que você quer
saber.
Sua voz está muito distante.
- Sua mulher, ela está...