Marido e mulher sentados à mesa para o jantar de quinta-feira. Ele
de um lado, ela do lado oposto da mesa retangular. Entre os dois, um travessa
com um aguada sopa de carne e uma bandeja com algumas fatias de pão.
Já se servindo da sopa, a esposa falou:
-Quente o dia de hoje, não foi?
-É...foi. Não sei. Passei o dia no escritório com ar condicionado.
Depois no ar condicionado do carro. - olhando mais pro prato de sopa do que
para a mulher.
-Nosso filho zerou a prova de português.
-Português? Quem é que zera em português?
-Nosso filho. Lembra dele?
Agora ele levantou os olhos e encarou a esposa.
-Que quer dizer?
-Nada.
-Converso com ele amanhã.
-Conversar? O quê? A diferença entre complemento nominal e objeto
indireto?
-Indiretas estão suas palavras esta noite. Você acha que não
sou capaz de ter uma conversa com meu filho?
-Não.
Ele largou a colher no prato.
-Vai me dizer o que está havendo? Ou vai passar o resto da noite com
insinuações?
-O resto da noite não. Pelo menos não enquanto transamos.
-Ah, e iríamos transar hoje? Que bicho te mordeu? - voltou a comer.
-Na verdade estou esperando por algumas mordidas...
-Conversa erótica no jantar?
-Te incomoda?
-Não me interessa agora.
-O quê?
-O quê o quê?
-O que não te interessa: a conversa erótica no jantar, só
o jantar, só a conversa ou a pessoa com que está conversando?
-Droga! - gritou.Tem uma mosca no meu prato.
-Então devo supor que é o jantar que não te interessa.
-Não vou mais comer isso.
-Quem é Júlia?
-Como é?
-Júlia.
-Não conheço nenhuma Júlia.
-E como a Júlia ligou pra sua casa e perguntou por você?
-Não sei.
-Não sabe? Assim como não sabe se o dia foi quente? Talvez porque
entre o ar condicionado do escritório e o do carro tenha havido o ar
condicionado de um quarto de motel.
-Do que tá falando? Que motel?
-Ah, não sabe isso também?
-Doze anos e acha que eu faria isso com você? -respondeu sério.
Silêncio. Ela não esperava aquela resposta. Preferia uma briga
feia àquela resposta, mais fria que a sopa. Os dois se encararam por
uns instantes.
-Você nunca me desapontou tanto - desabafou o marido.
Ela sentiu um nó na garganta. Viu que tinha exagerado. "Mas e a
Júlia?", pensou.
-Eu...ela...
-Ela quem? Você é mosca nessa relação.
-Então é a pessoa com quem conversa que não te interessa.
-Estou satisfeito. Vou dar uma volta.
Ele deixou claro que estava ofendido e a ela sem palavras. Morta na sopa.
-Volto logo. - disse ele batendo a porta.
Ela permaneceu imóvel. Esqueceu a Júlia e se arrependeu.
A porta se fechou e o marido andou até o elevador. Seu celular tocou.
Atendeu:
-Estou a caminho. E se ligar de novo pra minha casa, vou ter que arranjar uma
barata pra colocar no meu jantar, Júlia.