A Garganta da Serpente
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A mosca na sopa

(Filipi Valente)

Marido e mulher sentados à mesa para o jantar de quinta-feira. Ele de um lado, ela do lado oposto da mesa retangular. Entre os dois, um travessa com um aguada sopa de carne e uma bandeja com algumas fatias de pão. Já se servindo da sopa, a esposa falou:

-Quente o dia de hoje, não foi?

-É...foi. Não sei. Passei o dia no escritório com ar condicionado. Depois no ar condicionado do carro. - olhando mais pro prato de sopa do que para a mulher.

-Nosso filho zerou a prova de português.

-Português? Quem é que zera em português?

-Nosso filho. Lembra dele?

Agora ele levantou os olhos e encarou a esposa.

-Que quer dizer?

-Nada.

-Converso com ele amanhã.

-Conversar? O quê? A diferença entre complemento nominal e objeto indireto?

-Indiretas estão suas palavras esta noite. Você acha que não sou capaz de ter uma conversa com meu filho?

-Não.

Ele largou a colher no prato.

-Vai me dizer o que está havendo? Ou vai passar o resto da noite com insinuações?

-O resto da noite não. Pelo menos não enquanto transamos.

-Ah, e iríamos transar hoje? Que bicho te mordeu? - voltou a comer.

-Na verdade estou esperando por algumas mordidas...

-Conversa erótica no jantar?

-Te incomoda?

-Não me interessa agora.

-O quê?

-O quê o quê?

-O que não te interessa: a conversa erótica no jantar, só o jantar, só a conversa ou a pessoa com que está conversando?

-Droga! - gritou.Tem uma mosca no meu prato.

-Então devo supor que é o jantar que não te interessa.

-Não vou mais comer isso.

-Quem é Júlia?

-Como é?

-Júlia.

-Não conheço nenhuma Júlia.

-E como a Júlia ligou pra sua casa e perguntou por você?

-Não sei.

-Não sabe? Assim como não sabe se o dia foi quente? Talvez porque entre o ar condicionado do escritório e o do carro tenha havido o ar condicionado de um quarto de motel.

-Do que tá falando? Que motel?

-Ah, não sabe isso também?

-Doze anos e acha que eu faria isso com você? -respondeu sério.

Silêncio. Ela não esperava aquela resposta. Preferia uma briga feia àquela resposta, mais fria que a sopa. Os dois se encararam por uns instantes.

-Você nunca me desapontou tanto - desabafou o marido.

Ela sentiu um nó na garganta. Viu que tinha exagerado. "Mas e a Júlia?", pensou.

-Eu...ela...

-Ela quem? Você é mosca nessa relação.

-Então é a pessoa com quem conversa que não te interessa.

-Estou satisfeito. Vou dar uma volta.

Ele deixou claro que estava ofendido e a ela sem palavras. Morta na sopa.

-Volto logo. - disse ele batendo a porta.

Ela permaneceu imóvel. Esqueceu a Júlia e se arrependeu.

A porta se fechou e o marido andou até o elevador. Seu celular tocou. Atendeu:

-Estou a caminho. E se ligar de novo pra minha casa, vou ter que arranjar uma barata pra colocar no meu jantar, Júlia.

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