A Garganta da Serpente
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Tragédia em Três Atos

(Francisco Petrônio Ferreira de Oliveira)

Era um sisudo funcionário público, muito cônscio de suas obrigações para com sua função e fiel ao seu salário. Atendia sem distinção a todos, com a mesma fineza, educação e seriedade. Não era dado a bajulações desnecessárias, nem a indiferença inoportuna que grassavam, ambas, naquele setor. Orgulhava-se sobremaneira de ter conquistado aquele emprego - posição, como dizia, sem a mínima modéstia - através de concurso público. Enquanto os colegas conseguiram seus cargos através das famigeradas e excludentes "peixadas políticas"; ele, assim que se formou no colegial, partira para a capital e; uma vez lá, prestara concurso para preenchimento de vaga na coletoria estadual e passara. Depois de três anos de saudades da terra natal, conseguira enfim sua transferência para a sua tão amada cidadezinha do interior. "E pensar que dentro de cinco anos se aposentaria", aquilo muito lhe assustava. Tinha na vida, apenas três paixões, nesta ordem: o trabalho, o rádio de pilha - que o acompanhava em todos os momentos - e as pescarias dos finais de semana.

Logo depois de retornar à cidade se enamorara de uma professora primária recém-formada "que fora o primeiro, grande e único amor de sua vida" e o idílio durou por quatro anos somente, quando uma nefasta e inesperada doença levou para sempre de perto de si, a sua amada. Foram tempos insuportavelmente difíceis. Emagrecera mais de dez quilos - o apetite fugira-lhe por completo e, se se alimentava frugalmente, era para evitar a morte voluntária que a sua extrema fé religiosa condenava - entristecera, ficara doente e em consequência, perdeu completamente a capacidade de amar a quem quer que fosse. Tornou-se amargo, carrancudo e antissocial. Durante vários meses após o passamento da noiva, visitava o cemitério em todos os dias. Fizesse sol ou chuva e lá estava ele, de pé, cabisbaixo, as mãos cruzadas nas costas a observar com fervorosa tristeza o túmulo da moça. Com o passar dos tempos as visitas foram se espaçando, até que se reduziram a quatro vezes por ano: no aniversário natalício e de morte da amada, no aniversário de namoro e no seu próprio aniversário. Porém, à viuvez manteve-se fiel. Jamais tivera outra namorada. Sequer uma amante esporádica tivera.

Anti-social por excelência e convicção, limitava-se a cumprimentar secamente aos moradores da cidade. Falava apenas o necessário para cumprir seu trabalho a contento e não tinha outros amigos senão o velho padre - seu companheiro de pescarias e que, pelo fato de não ter esposa, filhos ou amantes, não tinha o que comentar a respeito; além de ter sido seu professor mais querido da época de ginásio - e uma senhora de seus quase oitenta anos, viúva sem filhos, a quem prestava todo o tipo de favores. Desde representá-la junto aos órgãos públicos e comerciais como seu procurador, a pequenas tarefas domésticas, como: contratar trabalhadores para limpeza e reformas na casa, trocar lâmpadas e gás, consertar torneiras estragadas, entre outros. Estimava-a muito e a considerava como alguém da família - família que jamais tivera - uma tia talvez. Mãe nunca! A sua mãe, "que era uma santa, que Deus a tivesse", jamais poderia ser substituída por quem quer fosse. Ainda que esse alguém fosse Dona Elvira.

Sua falecida mãe era uma mulher de muita fibra que, apesar da pouca instrução que possuía, o fizera um cavalheiro, um homem honesto, trabalhador, ordeiro e prestimoso. Chamava-se Ana Maria e o havia criado, a despeito de todas as dificuldades, com todo o amor e cuidado. Sacrificara sua juventude no trabalho árduo, lavando e passando, vendendo lenha, costurando para alimentá-lo, vesti-lo e estudá-lo.

Do pai, que ele não conhecia e apesar disso, lhe tinha verdadeira repulsa - "aquele monstro que se aproveitara da inocência e pobreza de sua mãe para engravidá-la e lhe deixar com uma criança por criar"; assim, convicto, pensava - ela nunca falara. Ele também não perguntava. Respeitava-a.

Ana Maria morreu ainda jovem, quando Miguel - esse era o seu nome - morava na capital e tornara-se após a morte, um ente de sua completa veneração. Cultuava-lhe tanto a memória que dela nunca falava.

Não! Por muito que estimasse o caráter de Dona Elvira, esta não estava à altura de amarrar as sandálias de sua santa mãe. "Ora essa, que asneira. É uma verdadeira heresia pensar em algo tão hediondo" - pensava.

Enfim, sua vida em mais de vinte anos, se resumia em trabalhar durante a semana - jamais havia perdido sequer um dia de trabalho - as pescarias semanais ao lado de padre Tiago e os favores prestados a Elvira. Entre esses, constava visitá-la em todas as tardes, após o expediente. Assim tocava a sua vida. Feliz não era, mas sabia-se útil. Muito útil!

(***)

Naquela manhã acordara se sentindo mal. O estômago lhe doía e uma sensação horrível - nunca soube o que era, uma vez que não bebia nem por remédio, mas pelo que os conhecidos descreviam, era ressaca -. Não havia dormido quase nada durante toda a noite anterior, com pesadelos horripilantes e indecifráveis a lhe incomodarem nos poucos segundos que conseguiu pegar no sono. Algo que não condizia com sua fé e que se contrapunha à doutrina católica de que era adepto fiel, dizia-lhe que Elvira corria perigo e que esse evento mudaria inteiramente a sua vida. Lavou demoradamente a cabeça, procurando limpá-la daqueles pensamentos tortuosos, baixos e pecaminosos, "coisa desses crioulos supersticiosos e suas crenças pagãs" - disse alto para si mesmo, tentando convencer-se. Ainda assim, sem conseguir relaxar, resolveu quebrar o protocolo de sua rotina e visitar a velha amiga antes do serviço. Arrumou-se como de costume, tomou seu frugal café da manhã e saiu apressadamente.

Dez minutos depois chegava em casa de Elvira e batia a porta. De dentro, uma voz fraca implorou-lhe que entrasse.

- Dona Elvira, o que houve? O que está acontecendo? Pelo amor de Deus, abra a porta!

- Não posso, Miguel...arrombe a porta e entre...tenha piedade.

Ao ouvir os gemidos desesperados de Elvira, não se fez de rogado. Sem titubear, com um pontapé escancarou com a porta com estrondo. Entrou aos gritos tentando localizar a amiga. Em seu íntimo sabia que tinha chegado muito tarde e isto era imperdoável. Seguindo os gemidos, veio a encontrá-la estirada no chão do quarto ao lado de uma velha penteadeira vestida apenas de camisola. Estava lívida, gelada e com um grande e feio hematoma na fronte. Tentou erguê-la, ela gritou de dor. Perguntou-lhe o que havia acontecido, Elvira respondeu:

- Amigo Miguel, não se preocupe mais...comigo! ...estou no fim... levantei-me para ir ao banheiro - teve um forte acesso de tosse - e caí... vá...

- Sim! Vou chamar um médico.

- Chame o nosso... amigo... padre Tiago. É só disso - novo acesso de tosse - que preciso... vá logo, antes que seja...tarde. Meu tempo é curto. - a última palavra, já apenas sussurrada.

Completamente transtornado com o quadro que se desenhava em sua frente ao ver Elvira naquele deplorável estado e dizendo que iria morrer, em poucos minutos retornava na companhia do padre e do médico. Encontraram-na ainda no chão, na mesma posição em que a havia deixado, porém ainda mais pálida e falando com maior dificuldade. Isso lhe valeu uma reprimenda do clínico, a qual ouviu em silêncio e com a alma conspurcada.

Elvira que sempre fora uma mulher forte, teimosa e resoluta, negou-se a ser assistida pelo médico sob a alegação de que muito teria que conversar com o padre e o tempo era curto. Pediu ao outros homens que saíssem e deixassem-na sozinha com o pároco. Quinze minutos depois, que para Miguel pareceram séculos, se passaram até que ouviram um acesso de tosse fortíssimo; invadiram o quarto da moribunda e esta já estava morta. Ao seu lado, padre Tiago chorava copiosamente.

O médico não se conforma de tê-la deixado morrer sem sua assistência. Desse instante até o final do velório; momento em que já estava bastante alcoolizado, repetia:

- Eu não acredito que isso tenha acontecido. Em mais de trinta anos de profissão é a primeira vez que respeito a vontade de um paciente e este morre sem os meus cuidados. Que tragédia, meu Deus! Morreu sem os cuidados de um médico com ele logo ali do lado.

Era consolado por todos, que lhe dirigiam palavras de carinho e afeto. Afirmavam que a falecida tinha o direito de escolher entre a assistência espiritual à médica.

Padre Tiago, por sua vez, passou todo o tempo calado, de olhos baixos, ao lado do corpo. Em alguns momentos encarava o amigo Miguel e, silenciosamente, irmanavam-se na mesma perda. Tornava a abaixar os olhos.

De todos porém, Miguel era o que mais demonstrava sentimentos. Sentia de repente que sua solidão seria ainda maior. Jamais, com Elvira viva, pudera mensurar a intensidade do fraternal amor que sentia por ela e nem tampouco fora capaz de reconhecer a importância daquela amizade ou de seu objeto, em sua vida solitária. Não deixava de pensar em padre Tiago. Quando o velho amigo se fosse, o que seria dele, o solitário funcionário público Miguel? No mundo em que ele próprio criara para si, uma ilha cercada de indiferença por todos os lados? Se arrependia de não ter feito mais amigos. Decidiu também que deveria estar mais próximo do padre Tiago, mais presente em sua vida, dar-lhe mais atenção, carinho e afeto. Não apenas nos finais de semana, quando saiam juntos para as pescarias, mas durante a semana também; sacrificar algumas horas de sua rotina, para estar próximo do padre. Pensava quase com uma ponta de alegria, que daquele velório sairia um pouco mais humano. Entretanto, pobre Miguel, o destino se preparava para pregar-lhe uma peça, ainda mais contundente.

Na manhã do dia seguinte, cumpridas as formalidades legais e sociais, após uma comovente missa de corpo presente, por três vezes interrompida, por ocasião em que o padre Tiago de tão emocionado chegara às lágrimas; sob uma neblina fria e um vento cortante desceu à campa, o corpo de Elvira. Terminava-se assim o primeiro ato da tragédia pessoal do funcionário público Miguel.

(***)

Miguel, aproveitando se de sua ida ao cemitério, foi visitar o túmulo da namorada. Depois de ter permanecido por alguns minutos com os olhos marejados voltados para o retrato da moça no mausoléu, percebeu a presença do padre Tiago que lhe observava a alguns metros de distância. Arrematou suas preces e aproximou-se do velho amigo. Notou-lhe a face mais pálida, um tanto mais envelhecida e muito, muito mais cansado. Pensou que era pelo falecimento da amiga, mas não deixou de sentir, no fundo do peito, a terrível sensação de que em breve estaria completamente sozinho no mundo.

Ao se aproximar do amigo, este lhe abraçou por vários minutos e suas lágrimas atravessaram o paletó e a camisa de Miguel indo lhe molhar o ombro, o que lhe causou forte estremecimento. Padre Tiago, apesar de excelente amigo, nunca lhe tinha demonstrado aquele afeto todo. Uma vez mais pensou que se tratava de reflexos pela perda tão sentida.

O padre, recompondo-se novamente de sua austeridade peculiar, olhou Miguel nos olhos e falou:

- A vida não tem sido generosa consigo, meu bom amigo. Por toda a sua existência o Altíssimo tem lhe testado, exigindo-lhe luta e enormes sacrifícios. Em troca, Ele lhe tem dado apenas tristeza e perdas marcantes. Porém, agora temo muito mais por você, meu filho. - dizendo isso, retirou do interior da batina um envelope pardo de papel lacrado e endereçado a Miguel. Este, ao vê-lo e reconhecendo nele a letra de Elvira, fez menção de abri-lo ali mesmo, mas padre Tiago interrompeu-lhe o gesto, dizendo:

- É o desejo de nossa falecida amiga que você só o abra em casa, após retornarmos desse local de tristezas. E apressemo-nos pois a chuva está cada vez mais forte e fria e, um homem na minha idade, não pode se expor a essas extravagâncias. Vamo-nos!

Seguiram calados, cada qual remoendo suas íntimas desgraças. Alguns minutos depois, após deixar o amigo na casa paroquial, Miguel chegava em casa e louco de curiosidade abriu o envelope.

(A REVELAÇÃO)

Espalhou sobre a mesa da sala de estar o conteúdo do envelope e passou a examiná-lo cuidadosamente. Tratava-se de um testamento em que ele, Miguel, constava como único herdeiro, listas de contas a pagar e obrigações a se cumprir; além de um pequeno envelope, igual ao primeiro, endereçado também a ele. Abriu-o. Em seu interior, achava-se a seguinte carta:

"Meu filho,
Na minha adolescência conheci o seu pai, um homem que já pertencia à outra, não podia ser meu. Nem eu tinha o direito de desejá-lo. Ainda assim e, mal grado as nossas orações (minhas e dele), nos apaixonamos. Num ato de desvairada loucura você foi concebido. Eu, uma moça de família; ele, como já lhe disse, pertencia à outra. Seus avós não puderam aceitar a minha gravidez e mandaram-me para longe e, em outras terras, você veio ao mundo e eu lhe confiei à minha amiga Ana Maria, a quem você sempre considerou como mãe. E como me doía ver o amor, a dedicação e o respeito com que você a distinguia.
Fizeram me casar com um velho amigo da família que, como você sabe, morreu logo e me deixou viúva. Só, com minha dor e meu remorso.
Espero que um dia, se puder, me perdoe. Seu pai, repito, pertencia à outra, à Santa Madre Igreja Católica. É o padre Tiago...
"

Miguel não pode continuar a leitura. Deixou a carta cair sobre a mesa e para não desfalecer, caiu na primeira cadeira que encontrou. Então seus presságios eram verdadeiros. Sua vida mudaria para sempre.

Uma onda de ódio lhe invadiu e o arrebatou. Era por isso então que o padre Tiago lhe era tão íntimo.

- Canalha. - gritou a plenos pulmões.

Fechavam-se assim as cortinas, dando fim ao segundo ato.

(***)

No auge da loucura e do desespero, armou-se de um velho revólver que a muito havia adquirido, muniu-o de projéteis e rumou para a casa do pároco, pronto para escrever em sangue, mais um ato da tragédia pessoal que era sua existência. Lá chegando bateu fortemente a porta e não ouvindo resposta alguma, testou a maçaneta e descobriu que estava aberta. Entrou gritando:

- Padre Tiago, seu crápula, apreça para que eu possa me vingar em você, de todos os canalhas que compõem minha vida e principalmente de Deus, que me jogou entre essas víboras...

Gritando feito um louco, procurou-o por todos os cômodos vindo a encontrá-lo enforcado em seu quarto com o próprio cordão da batina. Abandonou, louco, a casa paroquial, correndo desesperado pelas ruas da cidade.

Na manhã seguinte, logo que se levantou, para sua rotina diária, o padeiro André, ao sair de casa, teve uma surpresa que o deixou estupefato ao mesmo tempo completamente comovido: em sua varanda estava o Senhor Miguel, respeitável funcionário da coletoria estadual, nu e com uma arma caída ao lado. Com o corpo gelado, as mãos trêmulas e os olhos mortos perdidos num ponto longínquo do horizonte.

Estava, como disseram quando levaram-no para um manicômio, perdidamente enlouquecido.

Terminava o terceiro ato da desgraça pessoal do pobre e solitário funcionário público, Miguel.

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