Era um sisudo funcionário público, muito cônscio de suas
obrigações para com sua função e fiel ao seu salário.
Atendia sem distinção a todos, com a mesma fineza, educação
e seriedade. Não era dado a bajulações desnecessárias,
nem a indiferença inoportuna que grassavam, ambas, naquele setor. Orgulhava-se
sobremaneira de ter conquistado aquele emprego - posição, como
dizia, sem a mínima modéstia - através de concurso público.
Enquanto os colegas conseguiram seus cargos através das famigeradas e
excludentes "peixadas políticas"; ele, assim que se formou
no colegial, partira para a capital e; uma vez lá, prestara concurso
para preenchimento de vaga na coletoria estadual e passara. Depois de três
anos de saudades da terra natal, conseguira enfim sua transferência para
a sua tão amada cidadezinha do interior. "E pensar que dentro
de cinco anos se aposentaria", aquilo muito lhe assustava. Tinha na
vida, apenas três paixões, nesta ordem: o trabalho, o rádio
de pilha - que o acompanhava em todos os momentos - e as pescarias dos finais
de semana.
Logo depois de retornar à cidade se enamorara de uma professora primária
recém-formada "que fora o primeiro, grande e único amor
de sua vida" e o idílio durou por quatro anos somente, quando
uma nefasta e inesperada doença levou para sempre de perto de si, a sua
amada. Foram tempos insuportavelmente difíceis. Emagrecera mais de dez
quilos - o apetite fugira-lhe por completo e, se se alimentava frugalmente,
era para evitar a morte voluntária que a sua extrema fé religiosa
condenava - entristecera, ficara doente e em consequência, perdeu
completamente a capacidade de amar a quem quer que fosse. Tornou-se amargo,
carrancudo e antissocial. Durante vários meses após o passamento
da noiva, visitava o cemitério em todos os dias. Fizesse sol ou chuva
e lá estava ele, de pé, cabisbaixo, as mãos cruzadas nas
costas a observar com fervorosa tristeza o túmulo da moça. Com
o passar dos tempos as visitas foram se espaçando, até que se
reduziram a quatro vezes por ano: no aniversário natalício e de
morte da amada, no aniversário de namoro e no seu próprio aniversário.
Porém, à viuvez manteve-se fiel. Jamais tivera outra namorada.
Sequer uma amante esporádica tivera.
Anti-social por excelência e convicção, limitava-se a cumprimentar
secamente aos moradores da cidade. Falava apenas o necessário para cumprir
seu trabalho a contento e não tinha outros amigos senão o velho
padre - seu companheiro de pescarias e que, pelo fato de não ter esposa,
filhos ou amantes, não tinha o que comentar a respeito; além de
ter sido seu professor mais querido da época de ginásio - e uma
senhora de seus quase oitenta anos, viúva sem filhos, a quem prestava
todo o tipo de favores. Desde representá-la junto aos órgãos
públicos e comerciais como seu procurador, a pequenas tarefas domésticas,
como: contratar trabalhadores para limpeza e reformas na casa, trocar lâmpadas
e gás, consertar torneiras estragadas, entre outros. Estimava-a muito
e a considerava como alguém da família - família que jamais
tivera - uma tia talvez. Mãe nunca! A sua mãe, "que era
uma santa, que Deus a tivesse", jamais poderia ser substituída
por quem quer fosse. Ainda que esse alguém fosse Dona Elvira.
Sua falecida mãe era uma mulher de muita fibra que, apesar da pouca instrução
que possuía, o fizera um cavalheiro, um homem honesto, trabalhador, ordeiro
e prestimoso. Chamava-se Ana Maria e o havia criado, a despeito de todas as
dificuldades, com todo o amor e cuidado. Sacrificara sua juventude no trabalho
árduo, lavando e passando, vendendo lenha, costurando para alimentá-lo,
vesti-lo e estudá-lo.
Do pai, que ele não conhecia e apesar disso, lhe tinha verdadeira repulsa
- "aquele monstro que se aproveitara da inocência e pobreza de
sua mãe para engravidá-la e lhe deixar com uma criança
por criar"; assim, convicto, pensava - ela nunca falara. Ele também
não perguntava. Respeitava-a.
Ana Maria morreu ainda jovem, quando Miguel - esse era o seu nome - morava na
capital e tornara-se após a morte, um ente de sua completa veneração.
Cultuava-lhe tanto a memória que dela nunca falava.
Não! Por muito que estimasse o caráter de Dona Elvira, esta não
estava à altura de amarrar as sandálias de sua santa mãe.
"Ora essa, que asneira. É uma verdadeira heresia pensar em algo
tão hediondo" - pensava.
Enfim, sua vida em mais de vinte anos, se resumia em trabalhar durante a semana
- jamais havia perdido sequer um dia de trabalho - as pescarias semanais ao
lado de padre Tiago e os favores prestados a Elvira. Entre esses, constava visitá-la
em todas as tardes, após o expediente. Assim tocava a sua vida. Feliz
não era, mas sabia-se útil. Muito útil!
(***)
Naquela manhã acordara se sentindo mal. O estômago lhe doía
e uma sensação horrível - nunca soube o que era, uma vez
que não bebia nem por remédio, mas pelo que os conhecidos descreviam,
era ressaca -. Não havia dormido quase nada durante toda a noite anterior,
com pesadelos horripilantes e indecifráveis a lhe incomodarem nos poucos
segundos que conseguiu pegar no sono. Algo que não condizia com sua fé
e que se contrapunha à doutrina católica de que era adepto fiel,
dizia-lhe que Elvira corria perigo e que esse evento mudaria inteiramente a
sua vida. Lavou demoradamente a cabeça, procurando limpá-la daqueles
pensamentos tortuosos, baixos e pecaminosos, "coisa desses crioulos
supersticiosos e suas crenças pagãs" - disse alto para
si mesmo, tentando convencer-se. Ainda assim, sem conseguir relaxar, resolveu
quebrar o protocolo de sua rotina e visitar a velha amiga antes do serviço.
Arrumou-se como de costume, tomou seu frugal café da manhã e saiu
apressadamente.
Dez minutos depois chegava em casa de Elvira e batia a porta. De dentro, uma
voz fraca implorou-lhe que entrasse.
- Dona Elvira, o que houve? O que está acontecendo? Pelo amor de Deus,
abra a porta!
- Não posso, Miguel...arrombe a porta e entre...tenha piedade.
Ao ouvir os gemidos desesperados de Elvira, não se fez de rogado. Sem
titubear, com um pontapé escancarou com a porta com estrondo. Entrou
aos gritos tentando localizar a amiga. Em seu íntimo sabia que tinha
chegado muito tarde e isto era imperdoável. Seguindo os gemidos, veio
a encontrá-la estirada no chão do quarto ao lado de uma velha
penteadeira vestida apenas de camisola. Estava lívida, gelada e com um
grande e feio hematoma na fronte. Tentou erguê-la, ela gritou de dor.
Perguntou-lhe o que havia acontecido, Elvira respondeu:
- Amigo Miguel, não se preocupe mais...comigo! ...estou no fim...
levantei-me para ir ao banheiro - teve um forte acesso de tosse - e caí...
vá...
- Sim! Vou chamar um médico.
- Chame o nosso... amigo... padre Tiago. É só disso - novo
acesso de tosse - que preciso... vá logo, antes que seja...tarde. Meu
tempo é curto. - a última palavra, já apenas sussurrada.
Completamente transtornado com o quadro que se desenhava em sua frente ao ver
Elvira naquele deplorável estado e dizendo que iria morrer, em poucos
minutos retornava na companhia do padre e do médico. Encontraram-na ainda
no chão, na mesma posição em que a havia deixado, porém
ainda mais pálida e falando com maior dificuldade. Isso lhe valeu uma
reprimenda do clínico, a qual ouviu em silêncio e com a alma conspurcada.
Elvira que sempre fora uma mulher forte, teimosa e resoluta, negou-se a ser
assistida pelo médico sob a alegação de que muito teria
que conversar com o padre e o tempo era curto. Pediu ao outros homens que saíssem
e deixassem-na sozinha com o pároco. Quinze minutos depois, que para
Miguel pareceram séculos, se passaram até que ouviram um acesso
de tosse fortíssimo; invadiram o quarto da moribunda e esta já
estava morta. Ao seu lado, padre Tiago chorava copiosamente.
O médico não se conforma de tê-la deixado morrer sem sua
assistência. Desse instante até o final do velório; momento
em que já estava bastante alcoolizado, repetia:
- Eu não acredito que isso tenha acontecido. Em mais de trinta anos
de profissão é a primeira vez que respeito a vontade de um paciente
e este morre sem os meus cuidados. Que tragédia, meu Deus! Morreu sem
os cuidados de um médico com ele logo ali do lado.
Era consolado por todos, que lhe dirigiam palavras de carinho e afeto. Afirmavam
que a falecida tinha o direito de escolher entre a assistência espiritual
à médica.
Padre Tiago, por sua vez, passou todo o tempo calado, de olhos baixos, ao lado
do corpo. Em alguns momentos encarava o amigo Miguel e, silenciosamente, irmanavam-se
na mesma perda. Tornava a abaixar os olhos.
De todos porém, Miguel era o que mais demonstrava sentimentos. Sentia
de repente que sua solidão seria ainda maior. Jamais, com Elvira viva,
pudera mensurar a intensidade do fraternal amor que sentia por ela e nem tampouco
fora capaz de reconhecer a importância daquela amizade ou de seu objeto,
em sua vida solitária. Não deixava de pensar em padre Tiago. Quando
o velho amigo se fosse, o que seria dele, o solitário funcionário
público Miguel? No mundo em que ele próprio criara para si, uma
ilha cercada de indiferença por todos os lados? Se arrependia de não
ter feito mais amigos. Decidiu também que deveria estar mais próximo
do padre Tiago, mais presente em sua vida, dar-lhe mais atenção,
carinho e afeto. Não apenas nos finais de semana, quando saiam juntos
para as pescarias, mas durante a semana também; sacrificar algumas horas
de sua rotina, para estar próximo do padre. Pensava quase com uma ponta
de alegria, que daquele velório sairia um pouco mais humano. Entretanto,
pobre Miguel, o destino se preparava para pregar-lhe uma peça, ainda
mais contundente.
Na manhã do dia seguinte, cumpridas as formalidades legais e sociais,
após uma comovente missa de corpo presente, por três vezes interrompida,
por ocasião em que o padre Tiago de tão emocionado chegara às
lágrimas; sob uma neblina fria e um vento cortante desceu à campa,
o corpo de Elvira. Terminava-se assim o primeiro ato da tragédia pessoal
do funcionário público Miguel.
(***)
Miguel, aproveitando se de sua ida ao cemitério, foi visitar o túmulo
da namorada. Depois de ter permanecido por alguns minutos com os olhos marejados
voltados para o retrato da moça no mausoléu, percebeu a presença
do padre Tiago que lhe observava a alguns metros de distância. Arrematou
suas preces e aproximou-se do velho amigo. Notou-lhe a face mais pálida,
um tanto mais envelhecida e muito, muito mais cansado. Pensou que era pelo falecimento
da amiga, mas não deixou de sentir, no fundo do peito, a terrível
sensação de que em breve estaria completamente sozinho no mundo.
Ao se aproximar do amigo, este lhe abraçou por vários minutos
e suas lágrimas atravessaram o paletó e a camisa de Miguel indo
lhe molhar o ombro, o que lhe causou forte estremecimento. Padre Tiago, apesar
de excelente amigo, nunca lhe tinha demonstrado aquele afeto todo. Uma vez mais
pensou que se tratava de reflexos pela perda tão sentida.
O padre, recompondo-se novamente de sua austeridade peculiar, olhou Miguel nos
olhos e falou:
- A vida não tem sido generosa consigo, meu bom amigo. Por toda a
sua existência o Altíssimo tem lhe testado, exigindo-lhe luta e
enormes sacrifícios. Em troca, Ele lhe tem dado apenas tristeza e perdas
marcantes. Porém, agora temo muito mais por você, meu filho.
- dizendo isso, retirou do interior da batina um envelope pardo de papel lacrado
e endereçado a Miguel. Este, ao vê-lo e reconhecendo nele a letra
de Elvira, fez menção de abri-lo ali mesmo, mas padre Tiago interrompeu-lhe
o gesto, dizendo:
- É o desejo de nossa falecida amiga que você só o abra
em casa, após retornarmos desse local de tristezas. E apressemo-nos pois
a chuva está cada vez mais forte e fria e, um homem na minha idade, não
pode se expor a essas extravagâncias. Vamo-nos!
Seguiram calados, cada qual remoendo suas íntimas desgraças. Alguns
minutos depois, após deixar o amigo na casa paroquial, Miguel chegava
em casa e louco de curiosidade abriu o envelope.
(A REVELAÇÃO)
Espalhou sobre a mesa da sala de estar o conteúdo do envelope e passou
a examiná-lo cuidadosamente. Tratava-se de um testamento em que ele,
Miguel, constava como único herdeiro, listas de contas a pagar e obrigações
a se cumprir; além de um pequeno envelope, igual ao primeiro, endereçado
também a ele. Abriu-o. Em seu interior, achava-se a seguinte carta:
"Meu filho,
Na minha adolescência conheci o seu pai, um homem que já pertencia
à outra, não podia ser meu. Nem eu tinha o direito de desejá-lo.
Ainda assim e, mal grado as nossas orações (minhas e dele), nos
apaixonamos. Num ato de desvairada loucura você foi concebido. Eu, uma
moça de família; ele, como já lhe disse, pertencia à
outra. Seus avós não puderam aceitar a minha gravidez e mandaram-me
para longe e, em outras terras, você veio ao mundo e eu lhe confiei à
minha amiga Ana Maria, a quem você sempre considerou como mãe.
E como me doía ver o amor, a dedicação e o respeito com
que você a distinguia.
Fizeram me casar com um velho amigo da família que, como você sabe,
morreu logo e me deixou viúva. Só, com minha dor e meu remorso.
Espero que um dia, se puder, me perdoe. Seu pai, repito, pertencia à
outra, à Santa Madre Igreja Católica. É o padre Tiago..."
Miguel não pode continuar a leitura. Deixou a carta cair sobre a mesa
e para não desfalecer, caiu na primeira cadeira que encontrou. Então
seus presságios eram verdadeiros. Sua vida mudaria para sempre.
Uma onda de ódio lhe invadiu e o arrebatou. Era por isso então
que o padre Tiago lhe era tão íntimo.
- Canalha. - gritou a plenos pulmões.
Fechavam-se assim as cortinas, dando fim ao segundo ato.
(***)
No auge da loucura e do desespero, armou-se de um velho revólver que
a muito havia adquirido, muniu-o de projéteis e rumou para a casa do
pároco, pronto para escrever em sangue, mais um ato da tragédia
pessoal que era sua existência. Lá chegando bateu fortemente a
porta e não ouvindo resposta alguma, testou a maçaneta e descobriu
que estava aberta. Entrou gritando:
- Padre Tiago, seu crápula, apreça para que eu possa me vingar
em você, de todos os canalhas que compõem minha vida e principalmente
de Deus, que me jogou entre essas víboras...
Gritando feito um louco, procurou-o por todos os cômodos vindo a encontrá-lo
enforcado em seu quarto com o próprio cordão da batina. Abandonou,
louco, a casa paroquial, correndo desesperado pelas ruas da cidade.
Na manhã seguinte, logo que se levantou, para sua rotina diária,
o padeiro André, ao sair de casa, teve uma surpresa que o deixou estupefato
ao mesmo tempo completamente comovido: em sua varanda estava o Senhor Miguel,
respeitável funcionário da coletoria estadual, nu e com uma arma
caída ao lado. Com o corpo gelado, as mãos trêmulas e os
olhos mortos perdidos num ponto longínquo do horizonte.
Estava, como disseram quando levaram-no para um manicômio, perdidamente
enlouquecido.
Terminava o terceiro ato da desgraça pessoal do pobre e solitário
funcionário público, Miguel.