(Ao Maurício,
Dos olhos de anis e pistache,
Que desafiou-me a escrever um Memorial!)
Nasceu do sangue, placenta, gordura com muitos cabelos, testa estreita e um
"bom pulmão". A mãe que tremia no leito hospitalar,
líquidos e químicas, lhe dava pena e receio. Medo, por ter feito
sofrer a sua outra parte, aquela que permanecia viva apesar de descolada, falava
e se mexia e não pertencia mais a ela.
Fome dolorida. No berço era só silêncio e complacência.
Silêncio e obediência. Depois que os olhos puxados e miúdos
da índia mexicana se abriram para a casa e o carinho seguro da mãe,
foi feita a metamorfose, quase calada, de sua aparência. Os olhos enormes
como de corujas agourentas seguiam a mãe enquanto sugava o leite melado,
doce aconchego que merecia o desdobrar dos nós dos dedinhos. Meses se
passaram em meio às mudanças lastimosas dum crescer dolorido e
choroso, desses que se perdem nos remotos movimentos nublados das articulações,
nas angustiadas assaduras, no latente inchaço das carnes. A memória
dos primeiros descobrimentos de dor e alívio, prazer e irritação
ficaram encubados nas células para poderem se libertar no momento da
sua morte.
O sabor insosso da pasta de batatas, cenouras, chuchus, abobrinhas e o doce
suave das maças, peras e bananas amassadinhas com açúcar
lhe deixavam ansiosa ou fatigada. Os joelhos dobravam por cima das pernas, a
barriga estufava, as bochechas tornaram-se duas almofadas de seda bege-rosado
cravadas por dois botões, dividindo-as no encanto da robustez. Fazia
com os números dos dedos as idades, concordando com o aprendizado de
inutilidades que satisfazem os pais e arrancam ais e suspiros de estranhos.
Poderia sentir-se bem com os aplausos ou banalizava-os com a perspicácia
daquele saber abandonado por todos, na pele morta da infância-prima. Febres,
vômitos, incômodos-cômodos, desejos nunca mais possíveis
de se desejar. Os primeiros passos, quanto desespero e insegurança sorridente,
agitação muda e choro profundamente contido. Emoção.
Emoção-comoção e medo do desconhecido e do conhecido,
assim como o mar a primeira vista, o molho vermelho do macarrão, o azedo
da limonada, a gulodice dos lanches à beira da piscina redonda e o girar
segurado no braço da mãe ao redor das circulares janelas do submarino
azul de lona plástica, o aperto dos cães e gatos junto ao peito,
o primeiro contato com as brigas dos homens. O medo das pessoas conhecidas.
Do gigante que mudava de cara pelada para cara peluda e a assustava: pai.
As pernas compridas e magras, joelhos exagerados e ossudos. A escola e as letras
de forma. As massas de modelar e as calças jeans justas, os óculos
vergonhosos. Dias de sol na rampa da casa daquela mulher misteriosa. Respeito
e admiração. Do trabalho com os panos, a senhora dos óculos
gigantescos e cabelos desmaiados, fazia a fantasia. O cheiro das fitas quando
se abria a pequena caixinha de costuras, na tampa de trançados de palha
de milho umas flores cor-de-rosa e amarelas, talvez um vermelho fraco e azul
pálido. Inúmeras miudezas delicadas existiam naquela caixa. Observava.
A máquina de costuras que se pedalava como bicicleta, o dia todo enquanto
a menina dos únicos cabelos pretos brincava com as duas outras e uma
sua companheira de quarto, mais velha.
A expectativa maior era quando a mesma mãe, das mãos estendidas,
permitia o sono na casa dos cheiros e sabores penetrantes, dos olhos raros,
de olhar demorado da altiva e ocupada senhora das fitas. Chegava às seis
horas a outra mulher, das brincadeiras, e punha as quatro meninas num colchão
enorme e ensinava os agradecimentos pr'um Deus que tinha uma Fábrica
mais difícil, de bonecos menos perplexos do que ela. Ligava depois o
rádio, quantas vezes aquele menino da porteira participou dos sonhos,
tamanha repetição. O amanhecer era mais bonito do que olhar a
noite através do vidro da porta, a sensação de imensidão
do mundo e a quentura do cobertor da casa mágica. Na manhã tudo
voltava ao comum senso de realidade infantil: rápida, ligeira. O leite
e o pão. O melhor era a forma como era cortado o pão. A avó
das costuras o cortava em tiras, das tiras aos cubos, nos cubos o requeijão
cremoso que prazerosamente nos dirigia à boca. O cheiro do fumo de corda
que o avô cortava á tarde, com paciência anciã. O
dia das máscaras de carnaval! A tia das músicas e das brincadeiras,
com papéis brilhantes de textura enrugada, ondulada, plissada, papelão
e perfeição. Chuva e samba na varanda de piso vermelho e portão
baixo e branco. Roupa cor de rosa suave como cortina de vual.
Certa vez, o cara das barbas mutáveis plantava no jardim, e uma gôndola
amarela de franjas esvoaçantes parou sobre o chão da varanda e
convidou a menina pr'um passeio. O balanço enjoativo permaneceu por alguns
minutos até que a menina percebesse o seu intento. Depois não
sentiu mais desconforto. Avistou um castelinho de espumas. Apesar da porta pesada
e fofa, entrou e nunca mais de lá se esqueceu. Tomava a gôndola
quase todos os dias, para trabalhar numa Fábrica de Bonecos.
A miúda vitrola portátil e discos pequenos, grandes e coloridos
preenchia as tardes enfadonhas das irmãs inseparáveis. Caça
às borboletas com rede de peixe de aquário. Na hora de dormir
a medrosa corujinha pedia para ser posto entre a porta um chinelo pr'uma fresta
de luz espantar os demônios todos do quarto.
Ninguém jamais soube que existia tal Fábrica, onde a menina trabalhava
dia após dia numa incessante construção de inúmeras
cores, músicas e sensibilidade escondida.
(30 de março de 2005)