A Garganta da Serpente
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Fraco espírito, força bruta

(Fabiana Miraz)

Nem tudo é como um espetáculo frouxo e decadente de ballé contemporâneoprovinciano. No caminho do teatro, de volta pra casa, a penitência. Subo as escadas, procuro a cama no escuro, me deito. Nada de sono. Sonho. Você é aquele menino do telhado. Em cima do telhado com uma pipa amarela. Seus olhos indecisos luzem em contraste com o cobre da pele. Aquelas ruas. As vi várias vezes neste mesmo sonho. Sempre a mesma coisa. É confortante. É vivo. Você em cima do telhado vermelho de barro. Descalço. Menino. Dez anos e lábios de anjo. A cena é sempre a mesma. Mas você se move. Depois de olhar o outro, estático ao lado com a pomba branca na mão, você desce devagar do barro. Sobe a rua da sua casa. Olha a mãe pela janela e sorri. O sorriso de um buraquinho no canto esquerdo da boca, em nivelamento com o lábio superior. Ainda consigo vê-lo! O sorriso pra mãe. Você sabe das contas, da necessidade futura, da dor e da angústia. E ela acena. Os seus passos são difíceis de acompanhar. Passos largos, grandes. Ritmados. Na igreja, você sobe as escadas com as mãos na parede alisando a pintura. Sente o gelado e gosta. Senta naquela janela esquisita. É redonda? Está no meio da escada ou no lugar do coral? Você olha pra tua cidade. É sol. Lá debaixo um moço te vê. Ele tem camisa azul, calça preta e sapatos pretos. Reluz. Que olhos gelatinosos: pistache ou anis? Dá vontade de os comer! Neles você se agarra, se infiltra. Desce as ruas de sapatos pretos. Desce a rua descalço. A barba por fazer. As penugens juvenis! Os olhos ardentes. A doçura do olhar indeciso. As veias das mãos. A terra das unhas. A calça que encobre os joelhos. Os joelhos nus pelos calções. A velha gorda que varre a rua. Um aceno e uma lembrança. Abaixa a cabeça, ralos caracóis. A abundância dos caracóis quase avermelhados. Entra pela porta e a mãe se inclina pra te beijar. Entra pela porta, degrau por degrau, olhar fixo, e beija a testa da mãe. Corre pra dentro. Senta-se e a olha com nostalgia: Ah, mãe! Continua costurando e nem vê. Conversando e nem sente. A brisa suave, o sol pondo e eu a olhá-la. Acordo. O salgado dos olhos. Você longe, bem longe. O quarto salpicado das luzes amarelas. Procuro você e nem dentro do guarda-roupa te acho. Perdeu o perfume. É só mesmo recobrando a memória que o cheiro permanece. Me lembrei daquela sua frase dita nos mesmos dias de chuva: "Nenhuma distância é veneno". E um desejo, às vezes é dor e não morte. Noite mal dormida, sonhada, suada. Sonho repentino e absurdo. Reavivo minhas palavras ridículas, que, de tão imbecis te põem um esparadrapo na boca. E o que eu mais queria era beija-la.Vou pras aulas. Nem tudo é um ballé contemporâneo, provinciano.

(5 de dezembro de 2004)

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