A Garganta da Serpente

Felipe Moreno

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Amor aos montes

(Felipe Moreno)

A harmonia tinha uma imagem tão feérica que somente um casal como aquele teria a chance de desfrutar. Nada que fosse assim tão deslumbrante, é verdade, pois quem daria crédito a uma contemplação insossa em que sobressaía apenas a uniformidade simétrica de um simples casal de montículos sendo um de areia e outro colado a este de pedrinhas acinzentadas como se estivessem aguardando a construção de uma provável residência assim como que abandonada a uma esquina de uma suntuosa Alameda do Planalto Paulista?

EXTERIOR. ALAMEDA SUNTUOSA. DIA.

Vemos um casal maduro - ele negro e ela branca - olhando admirados o outro casal que lembrava mais a visão de um recorte de vale montanhoso perdido numa área baldia cujo terreno era tão vermelho quanto os vasos daquele par de olhos interessados.

DORIVAL: Podia jurar que fosse uma obra de arte saída de uma pintura naturalista. Eu ainda sinto o sangue pulsar... Minha lembrança dói quando lembro aquela tela....

NEUMA: E eu juraria que minha imaginação condensou a própria matéria prima para concretizá-la à minha frente. Você nunca pintou nada tão divino, Dorival.

Dorival vira-se a ela e frisa o cenho de encontro aos olhos como que não gostando da observação sincera.

DORIVAL: Eu sou um projetista, Neuma! Você deveria lembrar-se sempre deste detalhe.

NEUMA: Mas você me disse que pintava. E eu só tenho cinquenta anos, ora!

DORIVAL: E o que isto quer dizer? Que não está velha e esquecida, é isso?

NEUMA: Sim senhor! Nada mais me incomoda do que ser chamada de estúpida! Isso eu não sou!

DORIVAL: Que é isso, Neuma? Nervosa de novo? E a pressão? Quer voltar para o hospital?

NEUMA: Ora, Dorival! Você me deixa nervosa até os tímpanos! Não aguento quando me confunde.

DORIVAL: Eu não confundo você coisa nenhuma. Estou apenas corrigindo uma falha de sua memória.

NEUMA: Já disse que me lembro muito bem de que o senhor me falou que pintava. Projetista do que, posso saber?

DORIVAL: Do quê, você pergunta? Não sei se merece uma resposta civilizada a esta altura...

NEUMA: O que está querendo dizer? Que vai baixar o nível ao ponto de se animalizar? E o estudo de engenharia, já esqueceu?

DORIVAL: Que tem o estudo de engenharia a ver com isso, Neuma? Você ficou débil mental?

NEUMA: Mas não foi você que disse que era projetista, santo Deus? O que está acontecendo com sua sanidade?

DORIVAL: Com a minha? Você tem certeza que é com a minha?

NEUMA: Sim, claro. Com a sua. Porque a minha, meu querido, está tão em forma que eu me lembro exatamente as suas palavras quando me disse que pintava. (ENGROSSANDO A VOZ EM IMITAÇÃO À DELE) "Pinto desde quando vi um quadro de Monet no Masp. Tinha quinze anos. Foi numa excursão com a escola. Isso faz tempo, claro".

Dorival não esconde a sua expressão furiosa e deixa Neuma ali plantada na esquina.
Ele anda na direção do casal de montículos, chafurdando os sapatos de verniz preto igual à sua pele na terra vermelha.


Tem horas que me dá vontade de... Não, não. Não quero pensar nisso, não posso. Mas ela provoca e me dá vontade de... Mas se eu fizer alguma coisa contra ela posso arrepender-me. Olha só como ela me chama: "Dorival, meu amor! Vem aqui, querido! Eu estava enganada, juro!" É ou não é pra estourar todos os miolos da desgraçada? Mas não posso, não devo, embora queira, esteja atiçado, com o corpo formigando de raiva. Ela sempre foi assim, desde o dia do nosso casamento. Sabe que pinto apenas com o meu pinto, mas essas coisas de pincel, tela, guache e o escambau, não são comigo. Por que ela faz isso? Talvez tenha envelhecido e se esquecido disto. Não admite, mas é a pura a verdade. Como encontrar respostas lógicas no meio de tanta insanidade? Eu devia ter pagado aquela terapia que tanto ela queria, e o filho da puta do psicólogo também. Encheu tanto o saco nosso que quase eu o mandei tomar caldo de cana com uma pitada de alho pra ver se é bom pra tosse. Filho da mãe. Acho que só queria o nosso dinheiro. O problema continuou, não pagamos, Neuma ficou esquisita, trocando as coisas, esquecendo outras, e eu aqui. Bonzinho da silva. É ou não é pra ficar puto? No fundo estou com inveja desses dois aí na minha frente. Uma união tão sólida, sem brigas, embora diferentes... E uma união tão sólida só podia mesmo vicejar um sólido projeto de construção. Que inveja desses montes pascoais que ainda resistem ao tempo dos meus antepassados! Sim, eu sou português. Português nascido em São Tomé e Princês com muito orgulho. Sabe, eu nem sei se posso dizer que sou de lá. Faz tanto tempo que estou aqui! Brasileiro... Alguém que fala português brasileiro. Sou este amor de pessoa, que ela não reconhece porque é uma burra! Ou será esquecida? Não sei mais... Estou farto. Só me resta usar a cabeça agora.

Instantes.
Momento de tensão.
A imagem capta o olhar de Neuma incrédula olhando para o terreno baldio onde está o seu Dorival agora sem cabeça.
Depois de um instante de paralisação, ela começa a correr.
Grita com horror e pânico.
Plano em movimento próximo acentua a sua agonia.
Instantes.
Ela entra no terreno chafurdando seus sapatos de salto relativamente altos.
A terra vermelha tinge rapidamente a película creme de seu sapato.
De repente, ela tropeça em seus próprios pés e cai sobre um dos montes, o de areia.
Corte.

INTERIOR. QUARTO DE CASAL. NOITE.

Vemos Dorival e Neuma abraçados numa cama de tubos um de frente a outro.
O quarto tem uma cortina em forma de painel cobrindo a janela.
Eles conversam intimamente.

DORIVAL: Como eu ia esquecer, Neuma? Foi o dia mais engraçado da nossa vida...

NEUMA: Engraçado? Como engraçado se ficamos todos sujos, você até se machucou com as pedrinhas...

DORIVAL: Que importa isso; ficaria muito mais feliz se alguém tivesse registrado o fato.

Neuma se solta dele e vira para o seu lado na cama, colocando um chinelo para levantar-se.
Está apenas de baby-doll rosa e sem sutiã.
Passa a mão pelos cabelos desgrenhados.

NEUMA: Pelo amor de Deus, Dorival! Aquela cena foi muito ridícula para ser registrada.

DORIVAL: Eu não achei. Aliás, foi uma cena fálica; os dois enterrados com a cabeça até o fundo!

Neuma ri mas não esconde um ar de repulsa.

NEUMA: Que baixeza, Dorival! Não acredito que possa sentir alguma coisa excitante com aquilo tudo. (TOM) Sabe, tem horas que imagino que o ser humano não nasce sujo por acaso. Acho que é por isso que chora ao nascer: de vergonha pelo que traz, desde aquela massa nojenta de placenta ensanguentada. Por isso não quero ter filhos!

Neuma veste um penhoar e sai para o banheiro da suíte.
O quarto só tem uma iluminação vaga vinda de um insólito abajur oriental posto no criado-mudo ao lado de Dorival.

Temos que aprender a ser civilizados desde pequenos, quando, na verdade, não queremos. O que tem de mais enterrar uma ou duas cabeças em um monte de areia ou de pedrinhas inocentes? Precisamos estar sempre nos trilhos sem nada a nos acontecer de engraçado ou exótico? Por quê? Tem de ser assim tão bonitinha e certinha a nossa vida?Mesmice cansa e eu não sou chegado. Veja agora, por exemplo, eu ouvindo o barulho da água do chuveiro caindo no corpo de Neuma, a imaginação sonda possibilidades e então fico que não me aguento de fazer alguma bobagem... Com a vida de Neuma... Não, não é isso; não é essa de transar com ela naquele terreno baldio em meio aos montículos... Originalidade seria pintá-la. Dessa maneira, pela primeira vez, eu não a contrairia dizendo que não sou pintor.

O casal vivia relativamente bem e em harmonia. Seguia inconscientemente o duplo sentido (como meio de expressão) ditado por Freud para o bem-viver, isto é, amavam-se e trabalhavam como Deus manda (embora Freud fosse ateu). Conheciam-se desde adolescentes da época do colégio Jesuíno Maciel, escola pública onde tiveram toda a formação regular com vistas a uma faculdade que não chegou devido a opções vitais de sobrevivência, em que o trabalho tinha largado na frente dos estudos, ou, antes, a necessidade de ganhar dinheiro para ajudar as suas respectivas famílias veio primeiro e a puro galope.

A vida era realmente uma caixa de surpresas, porque Dorival e Neuma fizeram treze pontos na loteria esportiva havia pelo menos vinte e cinco anos e ganharam uma bolada tão grande que não voltaram para a casa dos pais, mas sim, se mudaram para uma casa de praia onde ficaram até há alguns anos atrás.

Neuma era uma loira bem branca, quase transparente, e mesmo com muitos anos morando no litoral, ainda permanecia leitosa, agora mais rechonchuda, punhos largos e roliços, gorduras localizadas e doidas procurando novos espaços, enquanto Dorival era alto, bem preto, com uma força de pedreiro, os dentes muito brancos, cara de boa praça, porém um pouco embrutecido, talvez por não conseguir ser o pintor que gostaria, ou, apenas um projetista sem a reputação idealizada. Coisas da vaidade humana por certo.

INTERIOR. BOX DE CHUVEIRO. SUÍTE DO CASAL. NOITE

Neuma toma banho de touca.
Está tão imersa no prazer daquela água quente que tem uma expressão cálida e muito agradável.
Instantes.
Aos poucos, a fumaça do chuveiro vai embaçando todo o toalete.

Ela era uma grande mulher. Grande no sentido de alma, coragem, fidelidade. Havia encarado o preconceito familiar por ter se casado com um negro de uma forma notável. Sentara-se com todos de sua família de origem polonesa e falado francamente do seu amor por Dorival. Evidente que levantaram questões, sendo que a principal foi: "como foi gostar de alguém tão diferente de você? Em nossa família nunca houve um caso desses!".

Neuma nunca se intimidara com argumentos convencionais que se sustentavam em pontos de vista arcaicos. Ela sempre negara sua condição de branca para ser mulher de todas as raças, por isso tinha feito amigas de todos os credos e cores. Isto a orgulhava sobremaneira. Queria ter tido condições de enfrentar os preconceitos e as culpas de suas amigas também, se fosse possível.

No fim, a vida lhe sorrira com um amor verdadeiro, já que uma simples tonalidade diferente de pele jamais pudera ofuscar e deprimir aquele sentimento avassalador e irresistível que sentiu quando viu aquele negro alto, capacete enterrado na cabeça, prancheta nas mãos e um olhar calmo que ia e voltava pelas vigas de um edifício em construção, e pensou: "nossa, que torre encapada mais linda, meu Deus!"

Evidente que havia muita fantasia de sua parte em tudo isso, afinal torre encapada para ela correspondia não só ao tamanho de Dorival, mas a postura reta e sinuosa que lhe saíam pela camiseta branca colada ao corpo e aquele capacete cor de sangue na cabeça. Ela não pensava tratar-se de um projetista, mas de um carregador de tijolos tamanho a forma que ele aparentava.

Não sei por que tenho estado tão crítica ultimamente; talvez seja porque esteja enjoada do meu casamento. Ele tem tentado mudar alguma coisa com suas maluquices, mas mesmo assim não sei... Acho que estou ficando com depressão... E nem sei se preciso reagir. O mundo não merece minha recuperação. Já estou velha, cinquentona, no auge da menopausa, então por que deveria modificar aquilo que sinto em função apenas do que poderiam pensar de mim? Dorival também não está nem aí; pensa que sou estúpida, esquecida, mas tenho pena dele. É um homem combalido, com pressão alta, frustrado com o que faz. Talvez se aposente logo; talvez não. Ele merece essa dúvida. Não teve coragem de mudar nada em sua vida. Se queria pintar desde adolescente, por que não o fez até agora? Por que insiste em mentir para si próprio? Será que o mal da civilização o pegou?

O registro foi fechado depois de uma hora. Neuma tinha o corpo fumegando, com uma aura de fumaça que se espraiou por toda a toalete. Os vidros e espelhos embaçaram e deram um tom blasé ao seu astral já sentido. Ela queria virar água, escorrer pelo ralo e refletir pelo encanamento de seu prédio. "Qualquer trajeto é melhor que voltar a ser eu de novo".

INTERIOR. QUARTO DE CASAL. NOITE.

Plano abre em Dorival com um olho grudado na fechadura da porta da toalete.
Está com a respiração presa, tenso e preocupado.
De repente, ele relaxa e volta-se ao quarto pegando um peso de musculação.
A porta se abre e aparece Neuma metida num roupão, cabelos molhados e muito cheirosa.
Dorival disfarça fazendo exercício.

NEUMA: Não vai tomar banho?

DORIVAL: Daqui a pouco.

NEUMA: Não demore que eu quero sair.

Dorival pára seu exercício e vira-se surpreso a ela.

DORIVAL: Sair para onde?

NEUMA: Para o teatro. Tem uma comédia com Dolores Costa que dizem é muito engraçada. Quero dar risadas...

DORIVAL: Mas são duas da manhã, Neuma! Que Teatro está aberto à uma hora dessas?

NEUMA: Não sei, mas deve ter um. A vida noturna não pára nessa cidade. (TOM) E você: o que está fazendo com esse pesinho a uma hora dessas hein? Se pode fazer ginástica de madrugada, eu posso ir ao teatro também!

DORIVAL: Mas eu estou fazendo isso em casa. Aliás, o que você tem contra o pesinho? Não preciso ficar em forma para dar conta de você?

NEUMA: Que presunção meu Deus! Acha mesmo que um pesinho desses pode mudar alguma coisa a esta altura da sua vida? Quer dizer... da nossa né?!

DORIVAL: Não sei por que anda tão infeliz ultimamente, Neuma. Sinto muito se você está pouco à vontade depois de vinte e cinco anos de casamento.

NEUMA: Vinte e sete. Muito tempo. Precisamos fazer coisas diferentes, Dorival. Quer envelhecer assim? Nunca imaginei que ia ficar velha e entocada num apartamento. Oh! Que vida ingrata!

DORIVAL: Você tem tudo, mulher! Que ingratidão é essa, ora! Vamos, vamos sair então, vai. Vou tomar banho e me trocar.

NEUMA: (ABRAÇANDO-O) Oh! Querido! Você é o máximo! Ainda...

Dorival olha para ela com desconfiança.
Instantes.


E eles saíram. Foram a um motel em vez do teatro. Dorival convenceu Neuma que de nada adiantava procurar um teatro próximo das quatro da matina. Não que Neuma não soubesse disso, mas ela havia encasquetado que havia alguma sessão na madrugada, pois lera em alguma revista de variedades a respeito. O mundo corria solto fora, ela argumentava. "Só a gente é que fica sem fazer nada em casa"...

Dorival levou-a àquela alameda suntuosa. Naquela esquina onde havia um terreno baldio e um casal de montículos. Estava amanhecendo e pelo menos poderiam se inspirar neles, na diferença que confere harmonia, uma vez que isso parecia terem deixado de lado faz tempo.

Neuma assustou-se quando não reconheceu a esquina. Havia um muro de tijolos vermelho ladeando todo o espaço, mas podia se ver o interior do terreno onde somente uma parte do monte de areia ainda subsistia. O monte de pedrinhas cinza havia desaparecido. O casal que dois dias atrás aparecia exuberante e quase de mãos dadas naquele terreno, hoje era o retrato de uma imagem ceifada, abortada da visão de quem buscava harmonia nas diferenças, de quem estava atrás de algum sinal que mostrasse ser ainda possível viver lado a lado o restante de seus dias.

Plano próximo de Neuma. Ela tem um ar de desolação.
Praticamente nem se mexe, mas sente quando Dorival toca seu braço.

DORIVAL: Você está bem, meu bem?

Neuma vira-se e olha Dorival.
Tem um olhar tão profundo quanto triste.
Desaba num choro e agarra-se aos braços do marido.

DORIVAL: Que aconteceu, Neuma? Eram só dois montes ora! Vem me dizer que você não sabia que eles iam servir para fazer cimento?

Neuma pára de chorar e olha Dorival com ternura.

NEUMA: Quero ir para a casa, Dorival. Estou muito triste, muito triste...

Compreender a alma humana e de mulher sempre foi o meu fraco. Talvez porque sempre quis ser um cara compreensivo, embora não tenha tanta aptidão assim. Vendo-a assim tão frágil e insegura, pude compreender que ela era sensível a ponto de chorar por dois montes que viraram concreto. Engraçado mesmo. Ela não chorava por mim, mas chorava por eles. Por isso eu queria compreender o incompreensível, a emoção ilógica que acompanha o coração da alma feminina. Queria tanto que acabei sem ela. Quero acreditar nisso e não na influência daqueles dois montículos de merda, que viraram pedra. Porque eles não têm sentimento. Nem Neuma, que me deixou. Hoje falo daqui, dessa esquina suntuosa, da casa, que foi comprada e edificada por mim. Não ia deixar tudo isso em branco. Preto eu sou, e um grande projetista. Ou vocês acreditaram nela que achava que eu pintava? Agora sozinho, meu sonho tornou-se realidade. Pintei o quadro de Neuma e o coloquei na parede da sala. Alguma coisa pelo menos para lembra-la. Se você souber onde ela anda, chame-a para ver o seu retrato pelas minhas mãos. Ela não vai acreditar. Porque a alma feminina eu não procuro mais entender. Só contemplo de longe, através de uma tela de concreto.

FIM

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