A Garganta da Serpente
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Persistência do Rio a correr Verde

(Felipe Luis Melo de Souza)

Letícia, formosa de constituição, loira de cabelos e professora sabia bem ter os dias. Erma naquela intensidade de terras de fazendas sobranceiras cresceu ela perto de Jeová. Tanta era a ignorância de São Sebastião, que ambos, ela e Jeová, só tardiamente descobriram a grandeza do nome que seus tios paternos tinham dada ao seu primo.

Ignoro se os abnegados pais conhecessem as origens daquele nome bíblico, que mais do que um nome carrega o peso de um e para alguns é o próprio Deus.

Nossa psique ocidental sempre em busca de causas não aceita que tenhamos um caso mal explicado. Por isso, por diagnóstico narrativo se pensa que o fascínio surgiu em Jeová em virtude de haver herdado tal nomeação.

Cabeça nas nuvens e gordo de formas, não trabalhava. Nas ruas, no meio dos carros de boi, cheiro de bosta e gente mais estranha que ele mesmo achou como iluminação e desígnio dominar as palavras e a palavra de Deus.

Na mesa de madeira ao lado do forno de lenha e bolo de fubá, arrumou metodicamente um caderno, um lápis, uma borracha.

Como tinha ganhado anos antes na crisma, de seu padrinho de batismo, sua Bíblia, que ficava na cabeceira ao lado de sua cama, o único problema seria arranjar um dicionário.

Com grandes propósitos correu o mais que pode até chegar à casa do padrinho sem fôlego pela gordura, pelo peso e pelo cigarro de palha.

- O que foi Jeová? Seu pai ta bem? - lhe perguntou seu padrinho

- Não, não, não.

- O que ele tem?

- Não... não... não. Só quero o dicionário.

- O que? Ce ta ficando louco?

- Não, não, não. Tá tudo bem, o pai tá firme e forte.

Tenho atingido seu primeiro objetivo necessário, com sorriso no rosto e firmeza de ideais sentou-se. Mas em sua mente, uma dúvida surgiu. Primeiro o dicionário ou a Bíblia iria decorar?

A Bíblia era a palavra de Deus. O dicionário a palavra de todos, que todos usavam ou não, e que Deus usou para dizer.

Pareceu-lhe claro que primeiro deveria aprender as palavras dos homens para aprender o que Deus havia dito atrás das palavras deles. Mas o padre Petri não falou no domingo que Deus antes de todas as coisas?

Deus primeiro, começou pelo Gênesis.

"No começo..."

O que é Gênesis? Lógico, em sua cabeça de caipira que havia concluído o grupo, foi ao dicionário, mas antes de se lembrar as ordens das palavras no abecedário, folheando as páginas de letras miúdas achou por bem começar pelo dicionário. Como não conseguiu recordar a ordem, redefiniu sua proposição. O dicionário, pelo começo.

A, a primeira letra do alfabeto.

Aluminado por aquela descoberta súbita, como a possibilidade de um ser inanimado responder de presteza e de pronto uma dúvida, sentiu-se contente. Isso lhe pareceu surpreendente. Ninguém nunca lhe havia respondido uma pergunta sua. (Verdadeiramente sua).

Se o café tinha acabado, se o dia estava triste ou calor, se já era tarde eram perguntas que os outros lhe tinham feito, sempre, todo dia. Ele, por não ter nada que fazer (antes de seu propósito divino), já tinha feito as mesmas perguntas. Mas uma pergunta que vem para a busca de um saber, essa só o dicionário na letra A tinha lhe respondido.

Por treze horas ininterruptas leu as letras agrupadas lentamente, teve certeza que sua missão havia sido revelada por Deus.

Para encontrar a palavra Dele pediria à Ele perdão, por primeiro precisar procurar as palavras dos homens. Seguiria o caminho de Deus, que escreveu certo por linhas tortas.

Depois de duas semanas, uma pouco mais magro de barriga e rosto, pelo seu desinteresse à mesa, já havia algum progresso.

- Mais café Jeová?

- ... hum...não...algoritmo...hum... sequência finita de regras, raciocínios ou operações que, aplicada a um número finito de dados, permite solucionar classes semelhantes de problemas...hum...

O silêncio sepulcral da resposta não importou à Jeová. Nem notou os rostos de espanto e a certeza íntima da família, de Letícia, da cidade - quando esta veio a confirmar dali a cinco minutos- de que Jeová estava louco.

Mas inofensivo, do comentário na missa sobre Jeová, do zum zum zum nas esquinas desertas a loucura de Jeová foi esquecida quando a fofoca seguinte sobre a traição de Josefina, confirmada pela confissão do padre, substituiu-a.

Dois anos depois, da sua memória assombrosa da definição e classe gramatical das palavras de A a F, era ele considerado um gênio, mas era, em verdade, um daqueles gênios que humildes sorriam da loucura. Embora para o povoado riocorrendoverdense seu conhecimento fosse estapafúrdio, ainda mais quando em sua confissão, Jeová das poucas palavras habituais, não foi pelo padre Petri entendido.

Sua loucura diagnosticada era certa então, como o nascer do sol ou as formigas na plantação de milho, pois o padre parecia ter escutado Jeová falando em línguas. Rezou em seu coração para que Jeová continuasse temente a Deus.

Naquela mesma terça-feira de agosto havia escutado dele que o seu plano era conhecer a palavra de Deus. Isso tranquilizava o coração jesuíta de Petri.

Doze anos depois, cabelos gris, Jeová (de sua cadeira ao lado esquerdo do mesmo bolo de igual receita de sua bisavó Diovina) fechou com felicidade a letra Z, do Alpha ao Omega, com seu sorriso, de coração aberto, com paciência mineira e tranquilidade poderia finalmente reabrir a Bíblia desde aquele dia fechada no começo e começar.

Letícia sentada ao seu lado, bela como era, conversando sobre quando eram pequenos e andavam de mãos dadas. Não conhecia o coração de seu primo. Não sabia as palavras que agora sabia ele de cor. Sentiu a felicidade que ele sentia.

Sentia os dias se sucedendo lentamente. Não sabia aonde aquilo ia dar. Devagar e sempre. O pássaro voava.

Acabado o Gênesis. Sorria e repetia. Acabado o Gênesis. Agora poderia descansar.

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