A Garganta da Serpente
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Cooper.blig

(Fernanda Lizardo)

Ela fazia planejamentos intensos a cada aproximação de passagem de ano. Seguia o calendário cristão, mesmo sem entender suas modificações ao longo dos séculos, pouco se importando se o mesmo já começou em 1o de março ou se já durou 304 dias. Não ligava para as modificações de Pompílio, Júlio César e muito menos para as do Papa Gregório XIII. Era uma católica superficial, que pouco se importava com Papas e Santos. Na verdade, nem católica deveria ser. Acostumou-se com Natal, Páscoa, essas coisas.

Só sei que após o desespero de novembro e ao fim de cada mês de dezembro, fazia resoluções sobre a nova vida que viria no primeiro dia de janeiro. Saberia por intuição_ ou uma expectativa furada_ que tudo seria diferente, que seu mundo mudaria, que aquele emprego sonhado seria seu, que perderia os últimos quatro quilos... E desejava aos outros paz, amor e dinheiro de maneira tão mecânica quanto seu ato de receber estes votos.

Quem teve a brilhante ideia de tornar a passagem de ano em um marco de renovações, nunca imaginou que criaria tantos novos virtuosos no início de cada ano cristão. As primeiras segundas-feiras de novos anos são dotadas de boas intenções, as ruas abrigam seres humanos cheios de virtudes, com novos desejos, realizações que parecem tão próximas e simples. Pena que isso só dure até o fim da primeira quinzena do mês, onde a expectativa desaba junto à rotina que parece tão similar à do ano anterior...

Ela começava todo ano fazendo dieta, correndo na praia, estudando mais, perdoando.. Tudo isso se perdia ao longo do ano, mas ela se sentia bem com a sensação de ter tentado ser melhor por pelo menos uma semana.

Um dia, conheceu um judeu_ desses fiéis às suas crenças, circuncidado e tudo. Apaixonou-se, sem maiores explicações, assim, essas paixões que vêm, sem aviso, sem nexo, até mesmo sem amor verdadeiro, mas vêm e ninguém quer explicar muito para não tornar o momento menos interessante.

Seu desespero veio quando ela enfrentou o Rosh Hashaná pela primeira vez, em pleno mês de setembro_ ou seria outubro? Que tontura_ e percebeu que não havia preparado resoluções para aquele momento. Sabia que continuaria a ter a mesma vida após a festa, mas precisava do conforto de tentar ser melhor, mesmo sabendo que não o faria.

Pensaram que ela enlouqueceria, mas que depois de seu surto cairia na real e perceberia que resoluções de ano novo nada mais são do que decisões tomadas na hora errada_ e que passam junto com a ressaca do champanhe.

Não foi bem assim... Hoje, ela comemora a entrada do novo ano duas vezes. E faz resoluções duas vezes também. Sabe que não irá cumpri-las, mas sente-se cheia de virtudes duas vezes por ano. Privilégio de poucos.

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