Era a segunda vez esta semana que Saeb precisava mudar de endereço.
A tarefa ficou particularmente difícil depois que Ariel parou de caminhar.
Suas pernas não estavam necessariamente feridas, ainda que houvesse vestígios
de estilhaços próximos aos joelhos e nas panturrilhas; o menino
só não podia mais ouvir qualquer referência à guerra
que se desenrolava lá fora. O zunir de helicópteros, ainda que
distantes, eram suficientes para deixá-lo catatônico. Não
corria. Ficava parado em algum ponto dos escombros, cantarolando algo como se
fosse uma música. Então Saeb o pegava nos braços e atravessava
a rua.
Sempre trocavam de lado. Saeb carregava Ariel como se fosse um aleijado e escondia-se
com ele do outro lado do beco. Os tanques bombardeavam por zona, escolhendo
um conjunto de edifícios específico para os ataques. A infantaria
vinha em seguida, apenas para fazer um reconhecimento. Os soldados sabiam que
os moradores fugiam como podiam. Do outro lado da rua, se amontoavam em porões.
Ficavam ali, esperando uma nova investida, para então mudar novamente.
Era um ziguezague sem fim. Saeb gostaria de tirar Ariel dali. Queria tratá-lo.
Mas o garoto respondia pouco a ele. Estava comendo cada vez menos, não
necessariamente por falta de comida. Parece que havia desistido.
Nos últimos dias, os bombardeios se intensificaram. Era o pior período
da guerra em quase dois anos. Chegavam notícias do agravamento da crise,
de soluções cada vez menos prováveis no campo diplomático.
Saeb chegou a fazer parte de um grupo de apoio civil, mas foi aconselhado a
desistir em função da idade. E, além do mais, tinha o neto
para cuidar. Seu pai havia morrido na explosão da Sbarro, na esquina
da Yaffo. Era jornalista, mas morreu enquanto comprava uma pizza. A mãe
perdera-se na Ramallah ocupada. Talvez tenha se exilado, mas não sabiam
dela há seis meses. Não tinham mais endereço, telefone.
Não havia irmãos, primos, tios. Os dias se repetiam. Era difícil
de acreditar, mas a guerra havia chegado a Jenin.
Saeb vivia há muitos anos no acampamento. Era praticamente um jardim
de infância: a maioria dos habitantes era de crianças e jovens,
que brincavam pelas ruas. Ariel tinha mais dois amigos, Yossef e Yehuda, que
também tinham origem judia, apesar de serem filhos de mães palestinas.
Como ele, ambos viveram em Jerusalém boa parte de suas vidas. Mas com
a guerra chegando aos shoppings, muitas famílias resolveram proteger
suas crianças de algum infortúnio em locais menos perigosos. Jenin
tinha sido um deles. Agora o campo era um monte de casas retorcidas e fumaça
fedorenta.
Cada um deles, e de todos os outros, tinha uma história para contar.
Ariel perdera o pai e, quem sabe, a mãe; Yossef e Yehuda tinham trajetórias
semelhantes, ainda que particularmente mais dramáticas. O primeiro fora
queimado numa explosão há poucos dias; mantinha parte do rosto
enfaixado de forma precária, mas a ferida teimava em não cicatrizar.
Às vezes tinha febre. Em outros dias, parecia feliz e despreocupado.
Enxergava agora apenas com um olho e passou a se refugiar com o velho Saeb e
Ariel quando o pai foi assassinado pela Fatah. Até que encontrou abrigo
com um judeu-alemão que fazia trabalho voluntário. Não
o viram mais, desde então.
Yehuda tivera mais sorte. Não havia sido ferido nem uma única
vez, corria como uma lebre pelos destroços de casas e podia ser visto
rondando os Merkava israelenses que faziam o bombardeio pesado por terra. Não
se sabe o que podia acontecer com o menino, que era o mais velho dos três.
Chegava à adolescência com uma dúbia curiosidade pelos apetrechos
da guerra. Não demonstrava medo nem aversão à violência.
Pelo contrário. Mais de uma vez foi visto arremessando pedras contra
tanques e mesmo contra moradores indefesos. A ausência da família
o deixara um tanto atordoado.
Ariel era o mais frágil dos garotos. De certa forma, a perda do pai lançou-o
num abismo que ele não entendia. Queria saber principalmente por que
teve de abandonar Jerusalém, os colegas de escola, as lojas de discos,
a vida urbana, para se enfiar numa vila de ruas tortas com o avô. Saeb
tinha muita afeição pelo menino. Se pudesse, levava-o de volta
à capital. Pagava seus estudos. Dava-lhe uma profissão. Mas o
velho sabia que isso não aconteceria. Se escapassem de Jenin, iriam para
Tulkaren. Se ali também não desse, rumariam para Nablus, depois,
contornando Ramallah, poderiam chegar a Jericó. Certamente não
passariam dali. Seria impensável que rumassem em direção
ao Mediterrâneo, um velho palestino e um garoto judeu, ou quase. Não
havia outra saída para eles.
O mal maior, pensou Saeb, é que a guerra não produz mártires.
Depois de enterrado, o corpo de um homem apodrece sem holofotes. E os diplomatas
tampouco comparecem a velórios ou mandam condolências. O ferimento
de Yossef não apareceu na televisão, nem o choro contido do pequeno
Ariel que, talvez, fosse uma espécie de expiação pela morte
do pai. Ele parara na Sbarro, naquele início de tarde, com o intuito
de comprar pizzas para o filho. Saeb gostaria de dizer ao menino que a morte
podia ter surpreendido o pai em casa, num ônibus. Podia tê-lo encontrado
sozinho, sem se preocupar com nada, apenas fazendo o gesto mecânico de
acender um cigarro. Pensar no filho, por isso, não o tinha arrastado
a seu destino.
Assim como Ariel queria dizer ao avô, ainda que não soubesse como,
que a culpa por aquela matança inútil não era dele. Que
não precisava deixar de comer para alimentá-lo. Que ele também
lhe daria, se pudesse, uma casa ao pé de uma colina, às margens
plácidas do Jordão.