Todos os dias passo por aquela rua estreita do Grajaú e vejo a velha na
janela.
Nunca a deixa.
Ela e uma xícara velha.
Sempre me questiono acerca do conteúdo.
A curiosidade me consome.
Não mais do que a de entender a velha na janela.
Sempre lhe digo o tradicional "dia!!!" e nada me responde.
Assim concluí os estudos, cresci, me fiz homem, casei e tive filhos, os
quais seguiram a mesma trilha e viram todos os dias aquela senhora e sua xícara
acostadas no parapeito daquela janela.
Toda a vizinhança curiosa indagava sobre a cena, mas ninguém ousava
aproximar-se muito porque havia comentários dando conta de que era bruxa.
E só podia ser.
Tantos anos na mesma posição, explicação plausível
deveria haver.
E o povo especulava.
Um dizia que ficava assim porque matou o marido de tanta ordens que lhe dera.
O pobre desgostou e morreu.
Outro dizia que destruíra a felicidade da filha matando o genro em um grande
poço.
Sim, por tratar-se de um plebeu deu venenos de encantamento inverso ao moço
que, entorpecido, não viu a fossa e ali mergulhou profundamente e permaneceu
para sempre.
Há quem diga que ainda nestes dias ouvem-se gritos no escuro, apesar do
escuro.
A neta tomou para si e logo botou em um internato só para moças,
onde permanece, com previsão de saída aos vinte e um anos, para
casar com o neto do banqueiro.
E só com ele, porque dinheiro é bom e a tradição familiar
há que ser mantida.
Assim, depois de tantos felizes e bons arranjos, em um dos seus preparativos para
uma nova empreitada, desta feita tentar contra a empregada, com quem o velho,
antes de morrer, a havia traído muitas vezes, inclusive com filhos, bastardos,
mas filhos, um acidente provocou-lhe a cegueira.
Pó de maldade vendou-lhe os olhos para sempre, mas ressoa em sua mente
até os dias de hoje, o que a faz desvairada e insana, os gritos desesperados
daqueles que desgraçou.
No inferno das horas que teimam em passar tudo se ouve.
Merece, portanto, a serpente a cegueira, a janela e a velha xícara.
A primeira para que se perca.
A segunda para que a vejam perdida.
E a terceira, vazia.
(São Paulo, 30.11.2004)