Ele havia de viver com a mínima dignidade, não era possível!
Para tal, além de outros serviços concomitantes, Antônio
metera-se com esta espécie de ofício: pilotar motocicletas sem
rodas, sem selim, compostas só de um guidão trepidante dos infernos.
Lenha das bravas defender o pão à britadeira.
Depois de cumprir o dia, mal chegou a casa - na realidade um microscópico
apartamento enxertado na boca podre dos arredores da zona portuária -
pôs para tocar o Allegro inicial da Primavera de seu homônimo veneziano.
Há tempos vinha fazendo assim: tentava compensar o aço da lida
com a maciez de um opus célebre. Se não vivaldiasse, beethoveneria,
porque, não fossem as afamadas Estações, ser-lhe-ia útil
a bucólica Sexta de Ludwig, com sol, chuva, tempestade; estava era disposto,
como de costume, a desfazer-se em poesia bucólica. Tinha lá seus
bons discos clássicos, adquiridos nos sebos cujos corredores escarafunchava
como rato à procura de migalhas, uma das poucas vaidades a que se dava
direito.
Gostava de experimentar, mesmo que artificialmente, um pouco de natureza dentro
daquela caixa de sapatos onde se ocultava do mundo, entregar-se à classe
dos animais livres, mas despindo-se da bestialidade inerente, administrando-a
no instinto. Fosse qual fosse a condição atmosférica proporcionada
por seus velhos discos, desejava naquele momento o pisar de mato, ou uma bela
caminhada na areia, fizesse calor ou frio, um quebrar do paradigma urbano.
"Ah se eu tocasse violino..." meditava no chuveiro frio, enlevado
tal qual todo mortal com o mínimo de alma fica na presença de
arte fina, "Ah se eu tocasse... seria capaz neste instante de compor músicas
primorosas..." Seria nada, pois o peão, embora de certa sensibilidade
dentre a maioria dos broncos com que lidava no cotidiano, não tinha muito
de dons intelectuais, só apreciava. Mas voltemos ao que interessa: o
caso é que Antônio, para tentar o paliativo, punha as orelhas sobre
o erudito do tema, acústica de qualidade a tímpanos massacrados
pela maldita arma de trabalho. Já lhe era isso algum alento.
Saiu do chuveiro e tomou a cama toda com a abertura dos braços, pernas
e cabeça. Cabeça? Sim, pois o mais difícil de "abrir"
ele abriu, a mente cheia de estorvo, como há muito não fazia,
e o arrebatamento do gênio prosseguia com suas cordas perfeitas, tornando
o cubículo mais afável, e sua respiração assim a
equalizar-se gostosamente na barriga: "Que bonito, como esses caras criam
coisas assim?..." Ordenou aos olhos a morte passageira dos santos, tentou
relaxar as mãos de pedra. No início não deu, dava era uma
aflição nos pulsos, nas juntas gerais do corpo. Foi difícil,
mas após muito martírio acabou por dormir.
As mãos da mulher de sua vida entrelaçaram-se às suas,
os olhos dela no cerne dos seus, vez em quando um beijo a borboletar-lhe adolescentemente
o peito, o livre-arbítrio conjunto num lugar fabuloso, amplo e natural
como deveria ser vasto e puro o mundo só dos dois: riachos límpidos,
gramados e frescores, o azul todo feito de céu; então mais beijo,
a juventude encapelada no âmago, a entrega plena, e agora era um salão
enorme, um concerto lindo, primeiros violinos, segundos, violinos intermináveis,
delirantes, e ele a admirando aderente, gemendo "Como é linda, meu
amor, como é perfeita", e a amada em resposta sorrindo, regozijando,
que demais, oh! era quase uma dor.
Esteve com ela a noite toda. Mais uma vez. Porém desta feita o sonho
fora mais intenso, espirituoso, mais real que o real. Acordou suado, feliz.
Era o sinal, sentia ser aquele o dia de conhecê-la, sua luminosa fêmea,
senhora de sua vontade. Sabia dela o desenho do rosto e o contorno do corpo,
conhecia nela os menores detalhes, o riso alegre, o formato dos dentes, as delicadas
maneiras das mãos, o tremular nervoso das pálpebras, o jogar sutil
dos cabelos, as nuances da voz. Caprichou no banho, saiu ao trabalho, a intuição
lhe gritava "Sim, era o dia".
Virou estátua. A máquina, calada de seu ruído de bomba,
acompanhava-lhe a imobilidade ridícula: era ela, seu amor, seu apego
futuro, a figura com quem sonhara todos esses anos. Estava ali, viu-a inteira,
tão perto, com o mesmo sorriso, mesma aura, mesmo tudo, adorável,
à sua frente.
Mas a moça nem sequer o notou.
Ao saltarem do luxuoso carro, porta traseira aberta pelo motorista de paletó
e quepe impecáveis, quem de relance viu Antônio foi o cavalheiro
que a acompanhava, envolto num admirável terno de jeito italiano, um
brasão todo complicado colado no peito; o rico percebeu de relance o
homem empunhando aquele aparelho rude, de macacão encardido, a mirar-lhe
boquiaberto a esposa. Não sabia que o coração do operário
é que fazia as vezes da ora inerte ferramenta de trabalho, dando-lhe
duras pancadas por dentro, latejo de aflito.
O casal, abotoado num abraço fino e prazenteiro, após cumprimentar
o gerente geral, que o recebia com gestos de honra, entrou na agência
do banco de sua propriedade para a visita anual de praxe.
Allegro nenhum. Naquela noite, estava decidido: iria se entupir de desgosto
e aguardente. No canto escuro de um bar, onde um velho rádio rangia canções
descartáveis, Antônio não chorou pouco, e lembrou em lampejos
que na manhã seguinte teria novamente de domar a bendita britadeira,
sua impetuosa companheira do asfalto.
Balbuciando dentre as lágrimas, perguntava a si mesmo por que sua "outra
metade" não podia ser uma simples trabalhadora, comum como ele,
por exemplo aquela moça ali que, silenciosa e de olhos tristes, passava
com a vassoura um pano úmido entre as mesinhas. "Bonita ela",
pensou, "só está um tanto maltratada, a pobre... assim como
eu".
Antônio foi ao lavatório do bar e reconstruiu o rosto. Tomou
coragem:
- Ei, com licença...
- Pois não?
- Perdoe-me a indiscrição... mas... você é sozinha?
- Desculpe-me, amigo, mas... pra que você quer saber?
- É que estou meio triste, sabe? precisando conversar um pouco, e a última
coisa que quero é arrumar confusão com o marido de alguém,
o namorado..., você sabe.
- ... Eu e Deus.
- Prazer, meu nome é Antônio.
- Sério? O meu é Antônia - contou a moça rindo do
acaso.
- Que coincidência! Só falta agora você me dizer que gosta
de música clássica - disse um Antônio descrente e constrangido
por fazer comentário tão improcedente. Temia ser tomado por louco.
Mas ali, naquele instante, queria ser ele mesmo, direto, sincero, rasgado.
- Como você sabe? Só ouço isso, cara - expressou a moça,
admirada.
- Está me gozando? Você gosta mesmo?
- Estou dizendo...
A partir daquela noite, Antônio tinha outra mulher a protagonizar-lhe
os sonhos. E desde então o som da britadeira se lhe tornou tão
bonito de ouvir quanto um violino de Vivaldi.