A Garganta da Serpente
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Violinos e britadeiras

(Fabbio Cortez)

Ele havia de viver com a mínima dignidade, não era possível! Para tal, além de outros serviços concomitantes, Antônio metera-se com esta espécie de ofício: pilotar motocicletas sem rodas, sem selim, compostas só de um guidão trepidante dos infernos.

Lenha das bravas defender o pão à britadeira.

Depois de cumprir o dia, mal chegou a casa - na realidade um microscópico apartamento enxertado na boca podre dos arredores da zona portuária - pôs para tocar o Allegro inicial da Primavera de seu homônimo veneziano. Há tempos vinha fazendo assim: tentava compensar o aço da lida com a maciez de um opus célebre. Se não vivaldiasse, beethoveneria, porque, não fossem as afamadas Estações, ser-lhe-ia útil a bucólica Sexta de Ludwig, com sol, chuva, tempestade; estava era disposto, como de costume, a desfazer-se em poesia bucólica. Tinha lá seus bons discos clássicos, adquiridos nos sebos cujos corredores escarafunchava como rato à procura de migalhas, uma das poucas vaidades a que se dava direito.

Gostava de experimentar, mesmo que artificialmente, um pouco de natureza dentro daquela caixa de sapatos onde se ocultava do mundo, entregar-se à classe dos animais livres, mas despindo-se da bestialidade inerente, administrando-a no instinto. Fosse qual fosse a condição atmosférica proporcionada por seus velhos discos, desejava naquele momento o pisar de mato, ou uma bela caminhada na areia, fizesse calor ou frio, um quebrar do paradigma urbano.

"Ah se eu tocasse violino..." meditava no chuveiro frio, enlevado tal qual todo mortal com o mínimo de alma fica na presença de arte fina, "Ah se eu tocasse... seria capaz neste instante de compor músicas primorosas..." Seria nada, pois o peão, embora de certa sensibilidade dentre a maioria dos broncos com que lidava no cotidiano, não tinha muito de dons intelectuais, só apreciava. Mas voltemos ao que interessa: o caso é que Antônio, para tentar o paliativo, punha as orelhas sobre o erudito do tema, acústica de qualidade a tímpanos massacrados pela maldita arma de trabalho. Já lhe era isso algum alento.

Saiu do chuveiro e tomou a cama toda com a abertura dos braços, pernas e cabeça. Cabeça? Sim, pois o mais difícil de "abrir" ele abriu, a mente cheia de estorvo, como há muito não fazia, e o arrebatamento do gênio prosseguia com suas cordas perfeitas, tornando o cubículo mais afável, e sua respiração assim a equalizar-se gostosamente na barriga: "Que bonito, como esses caras criam coisas assim?..." Ordenou aos olhos a morte passageira dos santos, tentou relaxar as mãos de pedra. No início não deu, dava era uma aflição nos pulsos, nas juntas gerais do corpo. Foi difícil, mas após muito martírio acabou por dormir.

As mãos da mulher de sua vida entrelaçaram-se às suas, os olhos dela no cerne dos seus, vez em quando um beijo a borboletar-lhe adolescentemente o peito, o livre-arbítrio conjunto num lugar fabuloso, amplo e natural como deveria ser vasto e puro o mundo só dos dois: riachos límpidos, gramados e frescores, o azul todo feito de céu; então mais beijo, a juventude encapelada no âmago, a entrega plena, e agora era um salão enorme, um concerto lindo, primeiros violinos, segundos, violinos intermináveis, delirantes, e ele a admirando aderente, gemendo "Como é linda, meu amor, como é perfeita", e a amada em resposta sorrindo, regozijando, que demais, oh! era quase uma dor.

Esteve com ela a noite toda. Mais uma vez. Porém desta feita o sonho fora mais intenso, espirituoso, mais real que o real. Acordou suado, feliz. Era o sinal, sentia ser aquele o dia de conhecê-la, sua luminosa fêmea, senhora de sua vontade. Sabia dela o desenho do rosto e o contorno do corpo, conhecia nela os menores detalhes, o riso alegre, o formato dos dentes, as delicadas maneiras das mãos, o tremular nervoso das pálpebras, o jogar sutil dos cabelos, as nuances da voz. Caprichou no banho, saiu ao trabalho, a intuição lhe gritava "Sim, era o dia".

Virou estátua. A máquina, calada de seu ruído de bomba, acompanhava-lhe a imobilidade ridícula: era ela, seu amor, seu apego futuro, a figura com quem sonhara todos esses anos. Estava ali, viu-a inteira, tão perto, com o mesmo sorriso, mesma aura, mesmo tudo, adorável, à sua frente.

Mas a moça nem sequer o notou.

Ao saltarem do luxuoso carro, porta traseira aberta pelo motorista de paletó e quepe impecáveis, quem de relance viu Antônio foi o cavalheiro que a acompanhava, envolto num admirável terno de jeito italiano, um brasão todo complicado colado no peito; o rico percebeu de relance o homem empunhando aquele aparelho rude, de macacão encardido, a mirar-lhe boquiaberto a esposa. Não sabia que o coração do operário é que fazia as vezes da ora inerte ferramenta de trabalho, dando-lhe duras pancadas por dentro, latejo de aflito.

O casal, abotoado num abraço fino e prazenteiro, após cumprimentar o gerente geral, que o recebia com gestos de honra, entrou na agência do banco de sua propriedade para a visita anual de praxe.

Allegro nenhum. Naquela noite, estava decidido: iria se entupir de desgosto e aguardente. No canto escuro de um bar, onde um velho rádio rangia canções descartáveis, Antônio não chorou pouco, e lembrou em lampejos que na manhã seguinte teria novamente de domar a bendita britadeira, sua impetuosa companheira do asfalto.

Balbuciando dentre as lágrimas, perguntava a si mesmo por que sua "outra metade" não podia ser uma simples trabalhadora, comum como ele, por exemplo aquela moça ali que, silenciosa e de olhos tristes, passava com a vassoura um pano úmido entre as mesinhas. "Bonita ela", pensou, "só está um tanto maltratada, a pobre... assim como eu".

Antônio foi ao lavatório do bar e reconstruiu o rosto. Tomou coragem:
- Ei, com licença...
- Pois não?
- Perdoe-me a indiscrição... mas... você é sozinha?
- Desculpe-me, amigo, mas... pra que você quer saber?
- É que estou meio triste, sabe? precisando conversar um pouco, e a última coisa que quero é arrumar confusão com o marido de alguém, o namorado..., você sabe.
- ... Eu e Deus.
- Prazer, meu nome é Antônio.
- Sério? O meu é Antônia - contou a moça rindo do acaso.
- Que coincidência! Só falta agora você me dizer que gosta de música clássica - disse um Antônio descrente e constrangido por fazer comentário tão improcedente. Temia ser tomado por louco. Mas ali, naquele instante, queria ser ele mesmo, direto, sincero, rasgado.
- Como você sabe? Só ouço isso, cara - expressou a moça, admirada.
- Está me gozando? Você gosta mesmo?
- Estou dizendo...

A partir daquela noite, Antônio tinha outra mulher a protagonizar-lhe os sonhos. E desde então o som da britadeira se lhe tornou tão bonito de ouvir quanto um violino de Vivaldi.

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