Foi um casamento à moda antiga. Daqueles em que a hora do 'sim' era
considerada um ato de sintonia cósmica incomensurável. O noivo
fazia pose para foto em preto-e-branco com terno estilo risca de giz alinhado,
bigode a la Clark Gable e cabelo engomado com brilhantina. A noiva, toda orgulhosa,
tinha o rosto coberto pelo véu, e ainda guardava algum resquício
sólido de uma suposta 'pureza', traduzida em uma pele alva e cabelos
lisos, muito lisos...nada muito ousado.
Abreu e Lucinha se uniram oficialmente em 1950, passaram a lua-de-mel em Santos
e ficaram juntos mais de 45 anos. Momentos intensos e de descobertas foram a
tônica nos primeiros meses dos primeiros anos juntos. Mas nunca se entregaram
completamente, porém, ao tão esperado jogo do amor.
Timidez, hesitação, insegurança ou pura comodidade? Viviam
pelo básico e com o básico de cumplicidade, em um ciclo metódico
cada vez mais engessado pela ação do tempo.
O amor, então, terminou com o nascimento do segundo filho. Daí
pra frente, a convivência lasciva se resumiu a meros carinhos ocasionais,
que se concretizavam na forma de um quase frio agradecimento por algum presente
de aniversário, e em algumas tentativas vãs de conseguir algo
mais íntimo. Dádivas e conformismos. Devaneios e desilusões
não- declaradas.
Abreu nunca deixou faltar nada para sua família. Mas também não
era o que se poderia se chamar de 'marido ideal'. Nas rodinhas de amigos, gabava-se
de nunca ter precisado trair a mulher para ser feliz. Suas escapadas noturnas
constantes se resumiam a rodadas de cacheta e de cachaça, nos fundos
do bar do 'seo' Pedro. Lucinha ficava em casa todas as noites, e se contentava
com seu papel de submissão não-declarada.
Filhos criados, missão cumprida. Abreu adoeceu aos 60 e faleceu um ano
depois, quando sucumbiu a um enfisema pulmonar, causado pelo tabagismo de muitos
anos. O velório foi aquela coisa de sempre. Um misto entre sentimentos
de alívio, momentos do mais puro pastiche e sonoros reencontros de entes
familiares há tempos distantes.
Como foi dito, Lucinha tinha dois filhos e, posteriormente, dois netos. Firme
de suas convicções e munida de um senso ainda imaturo de independência
e solidão, após o enterro preferiu viver sozinha, em um pequeno
conjugado alugado próximo à casa de sua filha primogênita.
- Mamãe, tem certeza disso? Não acho uma boa ideia. Posso
acomodar o Marcelo
nosso escritório. A senhora fica com o quarto dele. Não tem problema.
- Claro, filhinha. Vai ser melhor pra mim. Não quero me tornar um estorvo.
- Mas, mãe, isso não tem nada a ver.
- Shhh...se aquiete, menina, sei o que faço...já falamos sobre
isso. Tchau. E vê se cuida direito daquele meu neto bonitão.
E assim foi. A porta da pequena nova casa se fechou pela primeira vez com Lucinha
dentro. O ar ainda guardava um cheiro acre típico dos lugares que passam
muito tempo fechado. A casa havia sido adquirida às pressas pela recém
viúva. Os primeiros cinco minutos duraram horas, e as primeiras horas,
dias. Ela tentou chorar e não conseguiu. Passou um café bem forte
e ligou a televisão, para assistir mais um capítulo da novela
de sempre.
Às dez horas, Lucinha fechou a janela, vestiu sua camisola e se deitou.
Pensamentos mil. Tentou se ajeitar, sem sucesso, em todos os lados da cama.
Parecia que buscava um novo ângulo para o que, dali pra frente, se tornaria
um velho dilema: o de quem fica.
Após finalmente conseguir entrar nos primeiros estágios do sono,
diversas vezes sussurrou o nome do marido. De repente, uma luz de consciência
em seu estado de torpor a fez sentir os pés frios. Percebeu que havia
mais alguém ali junto ao seu corpo, na cama. Não abriu os olhos,
e mesmo assim conseguiu enxergar apenas um contorno familiar, que há
mais de quatro décadas estava acostumada a contemplar...mesmo que de
longe. Sussurrou mais algumas vezes o nome do marido, e finalmente apagou.
No dia seguinte, Lucinha acordou bem disposta. Atendeu ainda diversos telefonemas
de condolências. De tarde, visitou a filha, o filho, e deu um beijo nos
netos. Negou com veemência que se sentia sozinha. À noite, repetiu
o mesmo ritual 'café-televisão-camisola', mas desta vez, adicionou
uma boa quantidade e variedade de pílulas calmantes e coloridas na sua
rotina de todas as noites. Deitou-se e esperou pelo sono. Não se achou
egoísta, nem tão pouco inconsequente pelo ato. Queria continuar
seu padrão de felicidade. Tinha certeza de que, dali pra frente, ainda
iria descobrir o amor, alimentado e desenvolvido do mesmo jeito durante toda
sua vida...apenas por um semblante...