A Garganta da Serpente
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Vai amar a liberdade

(Felipe Cerquize)

Como se não bastasse a morte pela rotina, agora tínhamos que ficar atentos vinte e quatro horas por dia. A cidade estava realmente violenta. Não importava mais nada. Qualquer um poderia ser roubado a qualquer hora do dia ou da noite. Ninguém confiava mais em ninguém. Nem as relações instintivas sobrepunham o medo reinante. No meio dessa neurose, a inevitável luta pela sobrevivência. Por isto, todos os dias, lá estava eu no ônibus da linha 7653, que saía da zona norte para o centro da cidade. O destino, a sapataria na qual eu trabalhava há mais de vinte anos. Uma boa parte desse período, eu viajei de trem, mas os constantes atrasos e os surfistas ferroviários me desencorajaram de continuar viajando nele. Sem contar a superlotação, as drogas e os assaltos, é claro.

Bom. O fato é que, naquele dia, não sei por que, acordei com um sentimento diferente, com a pulga atrás da orelha. Suburbano normalmente não tem tempo para essas coisas. Acorda às quatro e meia da madrugada, põe uma calça e uma camisa no corpo e segue para pegar a condução, assim, meio como se fosse um robô. A verdade é que não havia muito que fazer em função daquela palpitação. Fui para o ponto, peguei o velho 7653 e procurei o lugar de sempre para ver se recuperava um pouco do sono perdido. Consegui tirar uma boa soneca. Tive até um sonho mau, com dois mal-encarados assaltando a condução. Quando o ônibus chacoalhou um pouco mais, eu acordei, olhei para frente e pude ver a realização do meu pesadelo. Estranhamente, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi aquela propaganda da TV Globo, que aparece quando estão chegando o Natal e o Ano Novo, e diz "Nossos sonhos serão verdade, o futuro já começou". Coisa de louco. Porém, a segunda coisa que me veio à mente já era consequência dos gritos dos marginais, que mandavam todo mundo ficar calado e com a cabeça para baixo. Tremi na base e comecei a rezar. Acho que todos os passageiros estavam tremendo e rezando. Dizem que todo mundo pensando a mesma coisa ao mesmo tempo cria uma espécie de corrente telepática que faz a coisa acontecer. Pois é. Quando os ladrões estavam terminando de fazer a faxina, apareceu uma blitz na avenida, que obrigou o motorista a parar para revista. Os dois malandros, acuados, gritaram, dizendo que a polícia não entraria no ônibus. Pegaram dois reféns. Adivinha quem era um deles? Sofri um bocado, mas o fim não foi trágico. A polícia conseguiu, através de uma negociação paciente, convencer os bandidos a entregarem as armas. Finalmente, os passageiros se livraram daquele pesadelo medonho. Fomos depor e depois nos liberaram. Eu e o camarada, que estava sentado ao meu lado no ônibus, saímos conversando sobre as atrocidades da vida urbana nas grandes metrópoles. O que era surreal há trinta anos, agora era parte da nossa rotina. O meu amigo estava revoltado com tudo aquilo, inclusive com a situação pela qual eu passei. Quando já estávamos bem longe de qualquer coisa que pudesse lembrar o episódio, falei para o companheiro de cadeira de ônibus que seguiria dali para o meu trabalho. Levantei a mão para me despedir, olhei para o seu rosto e encontrei um sorriso amarelo, numa boca que dizia que estava desempregada há três anos e, por isso, estava fazendo aquilo. A arma em punho sacramentou a intenção. Tirei a carteira, tirei o tênis, tirei o relógio de feira. A mão trêmula do ex-camarada pôs os objetos numa sacola e ele saiu correndo.

O pesadelo real havia terminado. Sentei-me no meio-fio, pensei no meu filho e verti algumas lágrimas. Dessa vez, me veio à mente um trecho da letra de uma música da década de setenta, que dizia "Vai amar a liberdade, só vai cantar em tom maior. Vai ter a felicidade de ver um Brasil melhor". Limpei a água salgada que já batia nos meus lábios e segui a pé para a sapataria.

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