Como se não bastasse a morte pela rotina, agora tínhamos que ficar
atentos vinte e quatro horas por dia. A cidade estava realmente violenta. Não
importava mais nada. Qualquer um poderia ser roubado a qualquer hora do dia
ou da noite. Ninguém confiava mais em ninguém. Nem as relações
instintivas sobrepunham o medo reinante. No meio dessa neurose, a inevitável
luta pela sobrevivência. Por isto, todos os dias, lá estava eu
no ônibus da linha 7653, que saía da zona norte para o centro da
cidade. O destino, a sapataria na qual eu trabalhava há mais de vinte
anos. Uma boa parte desse período, eu viajei de trem, mas os constantes
atrasos e os surfistas ferroviários me desencorajaram de continuar viajando
nele. Sem contar a superlotação, as drogas e os assaltos, é
claro.
Bom. O fato é que, naquele dia, não sei por que, acordei com um
sentimento diferente, com a pulga atrás da orelha. Suburbano normalmente
não tem tempo para essas coisas. Acorda às quatro e meia da madrugada,
põe uma calça e uma camisa no corpo e segue para pegar a condução,
assim, meio como se fosse um robô. A verdade é que não havia
muito que fazer em função daquela palpitação. Fui
para o ponto, peguei o velho 7653 e procurei o lugar de sempre para ver se recuperava
um pouco do sono perdido. Consegui tirar uma boa soneca. Tive até um
sonho mau, com dois mal-encarados assaltando a condução. Quando
o ônibus chacoalhou um pouco mais, eu acordei, olhei para frente e pude
ver a realização do meu pesadelo. Estranhamente, a primeira coisa
que me passou pela cabeça foi aquela propaganda da TV Globo, que aparece
quando estão chegando o Natal e o Ano Novo, e diz "Nossos sonhos
serão verdade, o futuro já começou". Coisa de louco.
Porém, a segunda coisa que me veio à mente já era consequência
dos gritos dos marginais, que mandavam todo mundo ficar calado e com a cabeça
para baixo. Tremi na base e comecei a rezar. Acho que todos os passageiros estavam
tremendo e rezando. Dizem que todo mundo pensando a mesma coisa ao mesmo tempo
cria uma espécie de corrente telepática que faz a coisa acontecer.
Pois é. Quando os ladrões estavam terminando de fazer a faxina,
apareceu uma blitz na avenida, que obrigou o motorista a parar para revista.
Os dois malandros, acuados, gritaram, dizendo que a polícia não
entraria no ônibus. Pegaram dois reféns. Adivinha quem era um deles?
Sofri um bocado, mas o fim não foi trágico. A polícia conseguiu,
através de uma negociação paciente, convencer os bandidos
a entregarem as armas. Finalmente, os passageiros se livraram daquele pesadelo
medonho. Fomos depor e depois nos liberaram. Eu e o camarada, que estava sentado
ao meu lado no ônibus, saímos conversando sobre as atrocidades
da vida urbana nas grandes metrópoles. O que era surreal há trinta
anos, agora era parte da nossa rotina. O meu amigo estava revoltado com tudo
aquilo, inclusive com a situação pela qual eu passei. Quando já
estávamos bem longe de qualquer coisa que pudesse lembrar o episódio,
falei para o companheiro de cadeira de ônibus que seguiria dali para o
meu trabalho. Levantei a mão para me despedir, olhei para o seu rosto
e encontrei um sorriso amarelo, numa boca que dizia que estava desempregada
há três anos e, por isso, estava fazendo aquilo. A arma em punho
sacramentou a intenção. Tirei a carteira, tirei o tênis,
tirei o relógio de feira. A mão trêmula do ex-camarada pôs
os objetos numa sacola e ele saiu correndo.
O pesadelo real havia terminado. Sentei-me no meio-fio, pensei no meu filho
e verti algumas lágrimas. Dessa vez, me veio à mente um trecho
da letra de uma música da década de setenta, que dizia "Vai
amar a liberdade, só vai cantar em tom maior. Vai ter a felicidade de
ver um Brasil melhor". Limpei a água salgada que já batia
nos meus lábios e segui a pé para a sapataria.