A Garganta da Serpente

Francis Bret Harte

Como Papai Noel chegou a Simpson's Bar

(Francis Bret Harte)

Chovera copiosamente por todo o vale do Sacramento. O North Fork transbordara, e era impossível passar pela baía de Rattlesnake. As estacas que marcavam o vau durante o verão, na passagem para Simpson, estavam encobertas por imenso lençol d'água que chegava até o pé dos outeiros. A diligência fora obrigada a parar em Grangers, e o último correio ficara abandonado, salvando-se o carteiro a nado.

"Uma superfície igual à do Estado de Massachusetts", informava o Sierra Avalanche com orgulho local um tanto melancólico, "acha-se agora debaixo d'água."

O tempo, na serra, para bem dizer, não estava melhor. No caminho do monte, o lamaçal era profundo. Vagões, que nem força física nem os mais inflamados discursos podiam tirar dos atoleiros em que tinham caído, atravancavam o atalho, e a vereda para Simpson's Bar era indicada pelos equipamentos amontoados dos mineiros e por pragas de meter medo. E mais adiante, isolada do mundo, inacessível, batida pela chuva e enlameada, fustigada pelo vendaval e ameaçada pelas enchentes, Simpson's Bar, na véspera daquele Natal de 1862, parecia um ninho de andorinhas agarrado ao entablamento e aos capitéis lascados da serra da Mesa, e tremia entre as rajadas do temporal.

Ao cair da noite, começaram a rebrilhar através do nevoeiro, na povoação, algumas luzes, que vinham das janelas das barracas plantadas ao longo da rua principal, cheia agora de barrancos, cortada de riachos caprichosos e varrida por uma ventania medonha. Por felicidade, a maior parte da população estava reunida no armazém de Thompson, aninhada à volta duma lareira em chamas, cuspindo silenciosamente nas brasas, com um tal sentimento de solidariedade, que tornava mais que inútil a conversa. Na realidade, os numerosos meios de diversão há muito estavam esgotados em Simpson's Bar; as enchentes proibiam as ocupações regulares nos filões e no rio, e a consequente falta de dinheiro e de uísque tinha tirado o gosto para outras recreações menos legítimas. Até Hamlim ficara felicíssimo por partir com cinquenta dólares no bolso, a única quantia que conseguira economizar depois de ter ganho consideráveis somas no lucrativo exercício da sua penosa profissão!

- Se alguém me perguntasse - observou ele algum tempo depois -onde é que existe um cantinho no mundo onde uma pessoa que não ligue muita importância ao dinheiro possa divertir-se pacatamente e à vontade, eu diria logo: Simpson's Bar! Mas para mim, pobre-diabo, que tenho de ganhar para o sustento da família, não presta!

Como a família do sr. Hamlim se compunha, na maioria, de pessoas adultas do sexo feminino, cita-se esta observação mais para mostrar o seu gênio humorístico do que para medir a extensão das suas responsabilidades.

Seja lá, porém, como for, o certo é que os inconscientes alvos desta sátira estavam, naquele momento, sentados à roda da lareira, na descuidada apatia filha da preguiça e da falta de estimulantes. Nem mesmo o repentino barulho das patas de um cavalo, para o lado da porta, fez com que se mexessem. Só Dick Bullen parou um instante de escarafunchar o seu cachimbo e ergueu ligeiramente a cabeça. Na roda ninguém mais demonstrou interesse pelo homem que entrava, nem deu nenhum sinal de reconhecimento.

O sujeito, personagem muito conhecida naquela assembleia, era chamado na terra pelo apelido de "Velhote". Teria uns cinquenta anos; o cabelo era escasso e grisalho, mas conservava ainda uma compleição sadia e jovem. Brilhavalhe no rosto uma simpatia pronta mas não muito intensa, com uma capacidade. camaleônica de adotar as cores e cambiantes dos modos e do sentir das pessoas que o cercavam.

Com certeza acabava de deixar camaradas brincalhões, e a princípio não notou a gravidade do grupo, porque malhou uma palmada valente, galhofeira, no ombro do companheiro mais próximo e atirou-se estrondosamente numa cadeira vazia.

- Acabo de ouvir agora mesmo uma formidável, rapazes! Vocês conhecem Smiley, Jim Smiley, que é o sujeito mais engraçado destas bandas? Fala pelos cotovelos, e estava me contando a melhor piada...

- Smiley é um bobo! - interrompeu uma voz soturna.

- É um patife! - emendou outro, num tom sepulcral.

Um silêncio pesado se seguiu a essas afirmações tão positivas. O Velhote derramou um olhar rápido pelo grupo, e pouco a pouco a expressão do seu rosto mudou.

- É, é isso - disse ele refletidamente, depois de uma pausa -, não há dúvida que é um bobo e tem o seu tanto de patife. Não resta dúvida.

E ficou silencioso por um minuto, como se interiormente contemplasse, com piedade, a insipidez e a imbecilidade do tão impopular Smiley.

- Que tempo levado do diabo, não é verdade? ajuntou ele, já agora arrastado pela corrente dos sentimentos dominantes.

- Nada fazemos, rapazes! E a respeito de dinheiro é melhor não falar.. . E amanhã é dia de Natal.. .

A essas palavras houve um silêncio entre os homens, sem se distinguir se era de satisfação ou de ódio.

- Pois é isso - continuou o Velhote no tom lúgubre, que, sem querer, tinha adotado nos últimos momentos. Sim, senhores, dia de Natal, e hoje a linda noite de Natal, sem tirar nem pôr. E vocês sabem o que mais, filhos? Passou-me de repente uma ideia pela cabeça, que estava na conta; se vocês todos viessem para minha casa, para tomarmos uma aguardente juntos? Hein? Que tal, rapaziada? Vamos, minha gente! Não lhes tenta a ideia? - ajuntou com uma ansiosa simpatia, espreitando a fisionomia dos camaradas.

- Por mim, tanto se me dá - respondeu Tom Flynn, com certa alegria. - Talvez pudéssemos. Mas a sua mulher, Velhote... o que ela irá dizer disso?

O Velhote hesitou. Sua experiência conjugal não tinha sido das mais felizes, e o fato era sabido em Simpson's Bar. A primeira esposa, de saúde delicada, frágil, bonitinha, tinha padecido aguda e secretamente os ciúmes e as suspeitas do marido, até que um dia este convidara em massa toda a população do lugar para mostrar, a todos os olhos, a infidelidade dela. Ao chegar, porém, encontraram a meiga criaturinha tratando sossegadamente dos arranjos da casa, e voltaram todos envergonhadíssimos e confundidos. Ela, porém, coitadinha, muito sensível, não recobrou com facilidade a calma depois do choque daquele extraordinário ultraje! E foi com dificuldade que recuperou ânimo suficiente para ir soltar o amante, apertado no vão em que estava escondido, e fugir com ele! Um garoto de treze anos foi a consolação que ela deixou ao marido, privado dos carinhos conjugais. A atual esposa do Velhote tinha começado por ser sua cozinheira. Era enorme, barulhenta, mas fiel.

Antes de qualquer resposta, Joe Dimmik lembrou, pondo a coisa em pratos limpos, que o Velhote era senhor do seu nariz e da sua casa, e que, se se tratasse de sua pessoa, nem Deus nem o Diabo o impediriam de convidar quem muito bem ele quisesse, ainda mesmo que arriscasse com isso a salvação da alma. O próprio Satanás, insistiu ele, não prevaleceria ante tal decisão. Isso tudo dito em estilo elegante, forte, retumbante, de que a melhor tradução não poderia dar a menor ideia.

- Mas é lógico! É como está dizendo - concordou o Velhote, franzindo as sobrancelhas. - Quanto a isso não se incomodem. A casa é minha. Cada barrote, cada estaca, fui eu mesmo que fiz e plantei com os meus braços. Nada de medo, rapazes! A pobre de Deus poderá torcer o nariz, não fosse ela (que diabo) mulher, mas no final das contas tudo há de acabar bem.

Interiormente o Velhote contava com a exaltação das bebidas e com o poder do exemplo corajoso para se aguentar com firmeza no lance.

Até então Dick Bullen, oráculo e chefe de Simpson's Bar, não dera uma palavra. Mas agora tirara o cachimbo da boca:

- Mas, escute, Velhote, como vai o seu Johnny? Parece-me que o menino não estava com a boa cara do costume a última vez que o vi na rocha, jogando pedra nos chinas. A brincadeira não parecia diverti-lo muito, logo se via. Ontem boiava por aí uma turma deles, que se afogaram no rio, e eu até pensei em Johnny, coitado, que havia de gostar. Talvez nós o incomodemos. O menino está doente...

O Velhote, evidentemente comovido, não só pela patética descrição do que o filho havia perdido como ainda pela circunspecta gentileza do orador, apressou-se em afirmar categoricamente que Johnny estava melhor e que até um pouquinho de farra não lhe podia fazer senão bem.

Foi quando Dick se levantou, sacudiu-se com fúria e disse:

- Então, por mim estou pronto! Vá na frente, Velhote. Vamos indo!

E com um pulo e um berro, que lhe eram peculiares, saiu porta afora. Ao passar, porém, pelo compartimento externo, tirou da lareira uma acha em chamas, ato que foi repetido por todos, saindo juntos ombro a ombro, e, antes que o surpreso proprietário do bar percebesse qual era a intenção dos seus fregueses, a sala estava vazia.

A noite estava escura como breu. Logo à primeira raja­da do vento forte, os improvisados archotes se apagaram, e somente as brasas rubras, cortando rápidas a treva como cambaleantes fogos-fátuos, indicavam o lugar por onde se­guiam. O caminho ia dar em Pine Tree Canyon, à frente do qual uma choupana larga, acachapada, com teto de cascas de árvore, se encravava como uma toca no flanco da mon­tanha.

Era a moradia do Velhote e, ao mesmo tempo, a entra­da do túnel onde ele trabalhava, quando trabalhava, haja por bem dizer. Aí a turma parou um instante, em delicada deferência pelo dono da casa, que vinha atrás, arquejando.

- Não seria de todo mau, talvez, se vocês esperassem aqui um pouquinho enquanto eu vou ver lá dentro como andam as coisas - disse o Velhote com uma indiferença que estava muito longe de sentir. Essa ideia foi gentilmente recebida; a porta abriu-se e fechou-se sobre o dono da casa, e a turma, encostando-se à parede para defender-se das go­teiras, esperou, pondo-se à escuta.

Durante alguns minutos nada se ouviu, a não ser o ruído da água que escorria no teto e o ramalhar das árvores agitadas pelo vento.

Depois os homens começaram a se inquietar, e de ou­vido em ouvido correram os cochichos suspeitos que lhes vinham à cabeça.

- Aposto como ela já lhe deu na cara.

- E eu, como o enfiou pelo túnel adentro e lá o entaipou.

- Para mim, atirou-o no chão e fincou-lhe o joelho no pescoço.

- Com certeza está fervendo alguma coisa para nos escaldar. Arredem da porta, rapazes.

Nesse momento o trinco rangeu, a porta abriu-se de­vagar e uma voz disse:

- Saiam da chuva. Entrem aqui!

Não era o Velhote, nem a mulher. Era uma voz infantil, cujo falsete débil era quebrado pela rouquidão característica da vagabundagem e do hábito prematuro da independência. Era o rosto de uma criança que os fitava, rosto que seria bonito e mesmo delicado se não tivesse sido toldado interiormente por maus princípios, e externamente por uma grosseira e dolorosa experiência.

O menino tinha um cobertor jogado sobre os ombros e acabava evidentemente de se levantar da cama.

- Entrem - repetiu -, mas nada de barulho. O velho está aí dentro falando com mamãe - continuou ele, indicando um quarto contíguo que parecia ser a cozinha, de onde vinha a voz do Velhote em tom de súplica.

- Largue-me! - ajuntou o menino, zangado, para Dick Bullen, que o tinha segurado com o cobertor e tudo, e fingia querer lançá-lo na lareira.

- Largue-me, seu maluco, não está ouvindo?

Interpelado dessa maneira, Dick Bullen pousou o pequeno no chão, abafando a custo uma risada, enquanto os outros, entrando mansamente, se sentavam à volta da mesa tosca, que ficava bem no meio da sala. Johnny, cheio de gravidade, encaminhou-se para um armário e trouxe vários objetos que espalhou sobre a mesa.

- Aqui temos uísque, biscoitos, arenques e queijo. -E do queijo foi tirando um pedaço para si. - Aqui está também o açúcar. - E metendo a mãozinha muito suja no açucareiro, tirou um punhado. - E tabaco. Ali na prate­leira há maçãs, mas é coisa com que embirro: entalam! Muito bem, agora é mastigar e nada de medo! Por mim, pouco me importa o demônio da velha. Ela não é nada mi­nha... Até logo.

E o menino dirigiu-se para o quartinho, pouco maior que um armário, separado da sala por um tabique e que continha unicamente uma cama. Ficou um momento de pé, olhando para as visitas, com os pés nus aparecendo sob o co­bertor, e balançou a cabeça.

- Como é, Johnny, então vai se deitar outra vez? - perguntou Dick.

- Vou, sim - respondeu Johnny decididamente.

- Ora essa! Que é que você tem, garoto?

- Estou doente.

- Como, doente?

- Tenho febre. E calafrios, sabe? Reumatismo tam­bém! - retorquiu Johnny, desaparecendo no esconderijo.

E depois de uma pausa, ajuntou, lá do escuro, prova­velmente já deitado:

- E furúnculos!

Houve um silêncio cheio de embaraço. Os homens olhavam uns para os outros e depois para o fogo. Mesmo com a gostosa ceia à sua frente, parecia que iam mergulhar outra vez na pasmaceira do armazém de Thompson, quando a voz do Velhote, que nem sequer se alterara, veio implorante da cozinha:

- Você tem toda a razão. É isso mesmo. É claro que são. Uma corja de bêbados e vagabundos. E esse Dick Bullen é o pior de todos. Não tem juízo para se meter aqui, sabendo que há doença em casa e que não temos nada para oferecer! Eu ainda disse: "Dick, é preciso que você esteja doido ou embriagado para pensar em tal coisa. E você, Stapples, que diacho, homem, quer levar o inferno para a minha casa, sabendo que há doença por lá?" Mas que adiantou? Teimaram em vir. Não se pode esperar outra coisa dessa canalha de Simpson's Bar.

Uma gargalhada homérica dos convidados seguiu-se a essa infeliz exposição. Se o eco da risada chegou à cozinha ou se a irascível cara-metade do Velhote tinha justamente esgotado todos os meios e modos de exprimir a sua indignação e o seu desprezo, não se pode dizer, mas o certo é que uma porta bateu com estrondo, e um minuto depois surgiu o Velhote, felizmente sem perceber a causa da explosão da hilaridade e sorrindo mansamente.

- A patroa teve a ideia de fazer uma visitinha de cortesia à nossa vizinha, sra. Mac Fadden - explicou com uma gentil indiferença, ao sentar-se à mesa.

É notável, mas parece que bastou aquele incidente para extinguir o embaraço que principiava a revelar-se, e a natural audácia dos convidados reapareceu com o dono da casa.

Não me atrevo a narrar minuciosamente a jovialidade daquele serão. O leitor, se é curioso, há de aceitar a afirmativa de que a palestra teve como característica a mesma exaltação intelectual, as mesmas cautelosas reverências, a mesma delicadeza meticulosa, a mesma precisão retórica e o mesmo discorrer coerente e lógico do discurso pelas horas adentro, que distinguem semelhantes reuniões do sexo masculino em lugares mais civilizados e sob auspícios mais favoráveis. Copos partidos não houve porque não havia copos, nem líquidos inebriantes derramados no chão ou na mesa, graças à escassez desses artigos.

Devia ser meia-noite quando a 'festa se interrompeu.

- Silêncio! - exclamou Dick Bullen, levantando a mão.

A voz queixosa de Johnny vinha do cubículo:

- Papai!

O Velhote levantou-se de um pulo e precipitou-se no cubículo, mas pouco depois reapareceu.

- É o reumatismo do menino que está pior - expli­cou. - Precisa de uma fomentação.

Levantou o garrafão de uísque de sobre a mesa e sa­cudiu-o. Estava vazio. Mas Dick Bullen deu-lhe logo o seu pichel de lata, com um sorriso meio confuso. Os outros o imitaram. O Velhote examinou o que restava e disse com esperança:

- Parece que chega. Não é preciso muito. Vocês me esperem, num minuto estarei de volta. - E sumiu-se atrás do tabique, levando uma velha camisa de flanela e o uísque.

A porta não se fechou direito, e ouviu-se distintamente o seguinte diálogo:

- Diga, meu filho, onde é que dói mais?

- Às vezes aqui, outras vezes deste lado, mas o pior é daqui até aqui. Pode esfregar com força, pai.

Um silêncio indicou uma boa esfregadela. E Johnny outra vez:

- Que tal, papai, está se divertindo muito?

- Sim, meu filho.

- Amanhã é que é dia de Natal, não é mesmo?

- É, filho. Mas como se sente agora?

- Estou melhor. Esfregue um pouco mais para baixo. Que diabo de coisa é o Natal, papai?

- Ora essa! É um dia como outro qualquer.

Esta cabal definição foi aparentemente satisfatória, porque a ela se seguia um silencioso intervalo de esfregação. Mas Johnny continuou:

- Mamãe disse que todo mundo, menos a gente, dá presentes uns aos outros no Natal. Disse mais: que um velho chamado Papai Noel, e que não é branco, sabe?, que é assim uma espécie de chinês, vem pela chaminé abaixo e deixa brinquedos nos sapatos das crianças e também nos dos ra­pazes como eu. Nos sapatos, imagine! E ela queria me im­pingir isso! Mais devagar agora, pai! Mas onde é que o senhor está esfregando? A uma légua do lugar! Ela disse aquilo de propósito, só para nos amolar, não é? Aí não, pai!... Que foi, papai?

O solene silêncio que parecia ter caído sobre a cabana deixava ouvir nitidamente a brisa suspirando entre os pi­nheiros e as folhas rolarem lá fora. A voz de Johnny tam­bém baixou quando ele continuou:

- Não fique zangado, papai, já estou melhor. Que faz a rapaziada lá fora?

O Velhote abriu um pouco a porta e espreitou. Continuavam sentados no mesmo lugar, mas havia sobre a mesa algumas moedas de prata e uma magra bolsa de camurça.

- Estão fazendo alguma aposta, ou jogando qualquer coisa. Deixe-os - respondeu ele, e recomeçou a esfregar.

- Eu gostaria de ir jogar também, para ganhar algum dinheiro -disse Johnny, refletindo depois de uma pausa.

O Velhote, com muita volubilidade, repetiu algumas palavras que eram certamente uma velha fórmula familiar. Que seria melhor esperar um pouco até ele dar com um bom filão no túnel, porque então não faltaria riqueza, etc. e tal.

- Bem sei - tornou Johnny -, mas é que não há meio de o papai encontrar o tal filão. E achá-lo ou ganhar eu o dinheiro vem tudo a dar no mesmo. Tudo é questão de sorte. Mas quer saber de uma coisa? Essa história de Natal é que não me sai da cachola! Por que é que lhe chamam Natal?

Talvez por uma instintiva deferência pelos seus convidados, que podiam ouvi-lo, talvez por um vago sentimento de inconsciência, o Velhote falou tão baixo que suas palavras não chegaram até a sala.

- Sei - disse Johnny um pouco menos interessado. - Já ouvi falar nele. Está bem, por hoje, chega, papai, já não sinto tantas dores. Pode me cobrir agora com o cobertor. Isso, assim. Olhe - acrescentou ainda, num cochicho abafado -, sente-se aqui junto de mim até eu dormir. - E para estar certo de que era obedecido, tirou uma mão de dentro das cobertas e, agarrando a manga do pai, preparou-se para adormecer.

Por alguns minutos o Velhote esperou com paciência. Mas a desacostumada quietude da casa avivou-lhe a curiosidade, e, sem se levantar do catre, abriu cautelosamente a porta com a mão livre e espiou a sala. Com infinita surpresa achou-a deserta e às escuras. Mas uma acha de lenha estalou na lareira, e ao seu clarão pôde ver -Dick Bullen sentado junto às brasas agonizantes.

- Alô!

Dick teve um estremecimento, levantou-se e dirigiu-se para ele, meio cambaleante:

- Onde está o pessoal? - perguntou o Velhote.

- Foram ao alto do morro para um pequeno passeio, mas não demoram muito a vir me buscar. Estou à espera deles. Por que diabo você está olhando para mim como um bobo, Velhote? - ajuntou, num riso forçado. - Está pensando que bebi demais?

Bem que se poderia perdoar ao Velhote tal suposição, porque Dick estava com os olhos úmidos e o rosto afogueado. Pôs-se a vaguear pelo quarto, voltou indolentemente para junto da lareira, bocejou e sacudiu-se, abotoou o paletó e começou a rir:

- A bebida não era tanta assim, Velhote! Mas não se levante -continuou ele, vendo que o Velhote fazia um leve movimento para soltar a manga da mão de Johnny. Nada de cerimônias. Fique onde está. Não me demoro. Olhe, aí estão eles.

Bateram mansamente na porta. Dick Bullen correu a abri-Ia, deu boa-noite ao dono da casa e sumiu. O Velhote bem que teria voado atrás dele se não fosse aquela mãozinha que inconscientemente o prendia. Com facilidade poderia ter-se soltado; era pequenina, fraca, descarnada, mas talvez por isso mesmo mudou de ideia e, arrastando a cadeira para mais perto, encostou a cabeça na cama. Nessa atitude, sem defesa, o poder das suas primeiras libações o apanhou desprevenido. O quarto começou a rodar e a desaparecer diante dos seus olhos; depois reapareceu para sumir outra vez; tornou a aparecer e deixou-o afinal dormindo.

Enquanto isso, Dick Bullen, fechando a porta, viu-se no meio dos companheiros.

- Você está pronto? - perguntou Stapples.

- Estou - respondeu Dick -, mas que horas são?

- Passa um pouco da meia-noite - responderam. Você dá mesmo conta do recado? Veja bem: são nove quilômetros, ida e volta!

- Não há problema - retorquiu Dick, com secura. - Onde está a égua?

- Bill e Jack estão segurando-a ali embaixo, na passagem.

- Pois que a segurem mais um pouco - disse Dick.

Voltou-se e entrou novamente na casa, sem rumor. A luz da vela, quase derretida, e do fogo quase extinto, viu que a porta do cubículo estava aberta. Caminhou para ela na ponta dos pés e espreitou. O Velhote tinha caído para trás na cadeira e roncava, com os pés espalhados, os ombros envergados e o chapéu sobre os olhos. Ao seu lado, numa caminha estreita de madeira tosca, dormia Johnny, todo enrolado no cobertor, que o escondia completamente, menos parte da testa, sobre a qual se desmanchavam alguns cachos, úmidos de suor.

Dick Bullen deu um passo à frente e hesitou, olhando por sobre os ombros a sala deserta. Estava tudo quieto. Numa súbita resolução, apartou com ambas as mãos o enorme bigode e inclinou-se sobre o menino que dormia. Mas, ao fazê-lo, uma rajada perversa e traiçoeira embarafustou-se pela chaminé, na lareira, e encheu o quarto de um clarão tão impudente que Dick fugiu, transido de terror.

Os camaradas já o esperavam na passagem. Dois deles estavam no escuro, lutando com uma massa informe, que, quando Dick se aproximou, tomou a aparência de uma grande cavalgadura de cor amarelada. Era a égua.

Não era uma bela figura, falemos a verdade. Do focinho romano até a anca muito alta, do dorso arqueado e escondido pelas duas mochilas de uma sela mexicana até as pernas ásperas, retas e ossudas, não se encontrava um vislumbre sequer de elegância equina no animal. Nos olhos brancos, quase cegos mas viciosos, no lábio inferior muito saltado, na cor horripilante, não tinha senão fealdade e manha.

- Pronto, rapazes! - disse Stapples. - Cuidado com as ferraduras, e você para cima, Dick. Não largue a crina senão quando a tiver na mão, e atenção, pé no estribo, depressa. Vamos!

Sucedeu-se o pulo do homem, uma relutância ao trepar, um salto do animal, uma debandada rápida dos que estavam em volta, um círculo de ferraduras pelos ares, dois coices doidos que fizeram tremer a terra, um rápido esporear, um derradeiro par de coices para as estrelas, e a voz de Dick na treva:

- Tudo bem.

- Não volte pelo caminho de baixo, a não ser que a pressa o obrigue! E não puxe o freio nas descidas! Estaremos todos no vau às cinco horas! Toca! Upa!

Um esparramar de lama, uma faísca arrancada à beira da estrada, um estrépito na curva mais adiante, e Dick desapareceu.

Canta, ó Musa!, a carreira vertiginosa de Dick Bullen! Canta, ó Musa, esses homens cavalheirescos!, a sagrada missão, os altos feitos, a turba de miseráveis vagabundos, a heróica expedição e os contínuos perigos a que se expõe a fina flor de Simpson's Bar! Mas valha-me Deus!, tão melindrosa é a Musa, que nada quer ter de comum com a manhosa cavalgadura e seu esfarrapado cavaleiro, de sorte que somos obrigados a segui-los em prosa e a pé!

Era já uma hora da madrugada; Dick Bullen tinha apenas chegado ao monte Rattlesnake, porque durante aquele tempo Jovita tinha feito, em sua honra, um ensaio geral de todas as suas imperfeições, pondo em prática todas as suas manhas. Três vezes tropeçara. Duas vezes erguera o focinho numa linha reta com as rédeas, e, resistindo à espora e ao freio, precipitara-se loucamente pelos campos afora. Duas vezes empinara e caíra para trás; outras tantas Dick, ágil, tinha montado novamente antes que Jovita recomeçasse suas manhas. E um quilômetro e meio adiante, no sopé de uma extensa serra, estava a angra de Rattlesnake. Dick sabia que ali o esperava a prova decisiva de sua habilidade naquela empresa. Cerrou os dentes, apertou bem os joelhos e transformou sua tática de defesa numa rápida ofensiva.

Mortificada e enfurecida, Jovita começou a descer o morro. Aí o ardiloso Dick fingiu tentar detê-la com altas exclamações e bem imitados gritos de medo. É inútil ajuntar que no mesmo instante Jovita tomou o freio nos dentes. Nem é preciso mencionar o tempo que durou a descida, consta dos anais de Simpson's Bar. Basta dizer que, ao cabo de um instante, pareceu a Dick que a égua estava chapinhando nas inundadas margens da pequena baía.

Como Dick calculara, a velocidade adquirida levara-a até o ponto de não mais poder retroceder, e, segurando-a firmemente para um salto tremendo, foram, cavaleiro e animal, cair no meio da forte e rápida corrente. Durante alguns minutos, a égua escoiceou, galopou e nadou; depois Dick soltou um suspiro de alívio: estava na margem oposta.

A estrada, da angra do Rattlesnake até o monte Vermelho, era sofrivelmente plana. Ou bem o mergulho apagou o fogo de Jovita, ou bem a arte com que Dick a conduzira havia demonstrado a superior perícia do cavaleiro; o certo é que, daí por diante, ela não se lembrou mais de gastar o seu ardor em vão.

Escoiceou ainda uma vez, mas foi só para não perder o costume; e de outra espantou-se, saltando para o lado, mas foi por causa de uma igreja recém-pintada, numa encruzilhada da estrada real.

Valas, buracos, depósitos de areia, pedaços de relva macia e tenra, tudo fugia sob as suas patas retumbantes. Começou a resfolegar ruidosamente e, por uma ou duas vezes, tossiu ligeiramente; mas não diminuiu a força nem a velocidade.

Por volta das duas horas, Dick tinha passado o monte Vermelho e começava a descer para a planície. Dez minutos depois, o postilhão da diligência rápida, o Pioneer Coach, via passar à sua frente, a toda a brida, um homem sobre uma descomunal cavalgadura amarela, acontecimento suficientemente notável para ser relembrado depois.

As duas e meia, Dick ergueu-se nos estribos com um brado de glória!

Estrelas cintilavam pelas fendas das nuvens, e, em frente, já fora da planície, alteavam-se duas torres, dois paus de bandeira e uma linha dispersa de objetos escuros.

Dick cravou as esporas e brandiu o chicote. Jovita precipitou-se, e, decorrido um instante, entravam ambos em Tuttleville e estacavam diante da arcada de madeira do Hotel de Todas as Nações.

O que aconteceu naquela noite em Tuttleville não faz estritamente parte desta história. Resumirei, contudo, dizendo que Jovita foi entregue a um sonolento empregado de estrebaria, que ela acordou completamente com um bom coice, e que Dick saiu acompanhado do hoteleiro para dar uma volta pelo povoado adormecido.

Brilhavam luzes ainda em alguns salões e casas de jogo; mas, evitando a tentação desses lugares, pararam os dois em algumas lojas fechadas e, à força de persistentes batidas e de razoável berreiro, fizeram pular da cama, estremunhando, os respectivos proprietários, a quem obrigaram a destrancar as portas e mostrar os seus artigos.

Algumas vezes tiveram como resposta pragas e maldições, porém, mais frequentemente, eram atendidos com interesse e consideração, e a entrevista acabava infalivelmente com uma boa aguardente.

Eram quase três horas quando acabou a brincadeira, e, com um saco de borracha a tiracolo, Dick regressou ao hotel. Mas ali lhe preparou o Amor uma cilada. Amor de soberbas formas, vestido luxuosamente, e de sotaque espanhol. Em vão lhe repetiu o convite do Excelsior. O Amor, por felicidade, foi de todo desprezado pelo jovem. A repulsa foi porém acompanhada de um sorriso complacente e a última moeda de ouro.

Dick montou novamente e empreendeu a volta pela rua triste e pela planície mais triste ainda. Bem depressa, as luzes, a linha escura das habitações, as torres e os paus de bandeira afundaram-se atrás dele como que perdidos na distância. A tempestade cessara, o ar estava vivo e frio, o perfil do terreno recortava-se distintamente, mas já eram quatro e meia quando Dick alcançou a igreja da encruzilhada da estrada real.

Para evitar a subida cada vez mais íngreme, tinha cor­tado por um atalho, em cuja lama viscosa Jovita se enterrava até os joelhos. Era um mau princípio para uma subida con­tínua de mais de nove quilômetros, mas Jovita, num dos seus costumeiros arrancos, abalou-se por ali acima em cega e louca fúria, e meia hora mais tarde galopava na vasta planí­cie que conduz a Rattlesnake; mais meia hora, e estavam em frente da angra.

Dick largou as rédeas sobre o pescoço de Jovita, inci­tou-a imitando o chuchurrear de um beijo e começou a cantar.

Subitamente, a égua espantou-se e deu um tremendo pulo, que teria feito perder as estribeiras a um cavaleiro me­nos experiente. Agarrado às rédeas, estava um vulto que saltara da valeta da estrada, e ao mesmo tempo desenhava-se na frente, meio apagado nas trevas, outro vulto a cavalo.

- Mãos ao alto! - ordenou a segunda aparição, pra­guejando.

Dick sentiu a égua tremer-lhe entre os joelhos e vacilar, como se fosse cair. Sabia o que isso significava e preparou-se.

- Saia daí, Jack Simpson, bem o conheço, maldito ladrão. Deixe-me passar, senão. ..

Não acabou a frase. Jovita empinou-se no ar com um salto de meter medo, atirou para longe, com uma sacudidela viciosa da cabeça, o homem que lhe prendia o freio e caiu a fundo, numa carga mortal, sobre o outro que lhe impedia o caminho.

Ouviu-se uma praga, um tiro de pistola, e cavalo e sal­teador rolaram no chão. Num instante Jovita estava a cem metros de distância, mas o valente braço direito de seu cava­leiro pendia sem força, varado por uma bala.

Sem diminuir a velocidade, Dick passou as rédeas para a mão esquerda. Pouco depois, porém, teve de parar, porque as cilhas, com aquele puxão formidável, tinham-se alargado. No estado em que estava o seu braço, essa operação levou muito tempo.

Não temia a perseguição, mas, levantando os olhos, viu que as estrelas do oriente empalideciam e que os cerros dis­tantes tinham perdido a sua espectral brancura e recortavam-se agora, escuros, num céu mais transparente. Era a manhã -que ia romper! Então, completamente absorvido numa ideia única, esqueceu-se da dor da ferida e, montando de novo, partiu em desfilada para a passagem de Rattlesnake. Mas agora Jovita resfolegava, convulsa. Dick arquejava sobre a sela, e o dia ia clareando cada vez mais.

Meta as esporas, Dick! Corra, Jovita! Espere um pouco, ó luz da madrugada!

Nos últimos arrancos do galope, Dick sentiu um ruído surdo nos ouvidos. Seria fraqueza, do sangue que perdera? Ao descer veloz pelo monte, sentiu-se atordoado, cheio de vertigens, não percebendo bem onde estava. Teria errado o caminho ou era ali mesmo a angra de Rattlesnake?

Era. Mas a estreita faixa de água revolta, que poucas horas antes a égua atravessara a nado, tinha aumentado prodigiosamente, dobrado de volume, e era agora um rápido e irresistível rio que o separava do monte de Rattlesnake.

Pela primeira vez naquela noite; Dick sentiu desfalecer o coração. Rio, montanha, clarão da aurora, tudo lhe fugia dos olhos.

Fechou-os para melhor recuperar os sentidos. E naquele rápido intervalo, por algum fantástico processo mental, veiolhe à mente o quartinho de Simpson's Bar e as figuras do pai e do menino que dormiam. Abriu os olhos desmesuradamente, atirou fora o casaco, a pistola, as botas e a sela, apertou fortemente às costas o precioso volume, cingiu bem os flancos da égua em pêlo e, com os joelhos nus e um berro, atirou-se à água amarelenta. Um grito veio da margem oposta, enquanto acima da água a cabeça de um homem e a de um cavalo lutaram alguns momentos contra a violência da correnteza, para serem depois atirados no meio das árvores desarraigadas e dos pedaços de madeira que tinham descido redemoinhando pelo rio.

O Velhote estremeceu e acordou.

O fogo na lareira estava apagado. A vela expirava no fundo do castiçal, e alguém sacudia a porta.

Abriu-a, mas, com um grito, recuou logo diante da figura seminua, que escorria, arquejante, encostada ao portal.

- Dick? !

- Cale-se! O menino já acordou?

- Não. Mas... Dick!

- Cale-se, animal. Dê-me um pouco de uísque, e depressa!

O Velhote foi num pulo e voltou com uma garrafa... vazia. Dick lembrou-se de praguejar, mas suas forças não estavam à altura das circunstâncias. Cambaleou, agarrou-se à maçaneta da porta e fez um sinal ao Velhote.

- Olhe, aqui neste saco há um remédio para Johnny. Tire-o, que eu não posso.

O Velhote desafivelou o saco e colocou-o em frente do pobre Dick.

- Abra-o depressa, ande!

O Velhote obedeceu, com os dedos trêmulos. Continha apenas alguns pobres brinquedos - baratos, muito toscos, louvado seja Deus!, mas reluzentes de pintura e de ouropéis.

Um deles estava quebrado, outro, irremediavelmente estragado pela água, e no terceiro... ah! Pai dos Céus!, no terceiro havia uma dolorosa mancha.

- Não valem um caracol, é verdade - comentou Dick, num tom lamentoso. - Mas foi o melhor que se pôde arranjar. Leve-os, Velhote, ponha-os num dos sapatos do garoto, e diga-lhe, olhe bem, diga-lhe... Segure-me, ho­mem!...

O Velhote amparou-o nos braços.

- Diga-lhe. . . - continuou Dick, com um sorriso desfalecido - diga-lhe que Papai Noel, de que lhe falaram, veio aqui esta noite, o que desce pela chaminé na véspera de Natal, com brinquedos para as crianças, sabe?

E mesmo assim, rasgado, esfarrapado, com um braço pendente inerte, Papai Noel chegou a Simpson's Bar e caiu desmaiado no limiar da primeira porta.

A aurora do Natal surgiu depois, suavemente, tingindo os píncaros mais distantes com o hálito róseo de um amor inefável. E era tal a ternura com que inundava de luz Simpson's Bar, que a montanha inteira, como se fosse sur­preendida no meio de uma ação generosa, corou até o alto dos céus...

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