A Garganta da Serpente
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É Natal

(Fernando Barreto)

Noite de Natal é sempre uma merda, um pesadelo melancólico que traz à tona todas as nossas frustrações e todos os nossos problemas, os financeiros, os amorosos e os outros.

Na noite de Natal de 1999 eu estava escrevendo uma carta para ver se o tempo passava mais rápido e recebi um telefonema por volta das onze da noite, e não era exatamente para me desejarem um feliz natal.

Úrsula era mulher de um velho amigo meu, Elvis, que eu conheci anos antes quando trabalhávamos como frentistas num posto de gasolina no centro da cidade. Estava nervosa, bêbada e chorando. Disse-me que Elvis havia saído de casa.

Ele sempre fazia isso,mas ela nunca me ligava pra avisar sobre esse tipo de coisa.De vez em quando ele vinha pra minha casa, caso contrário eu ficava sabendo depois, pelo próprio Elvis ou por alguém da vizinhança. Estávamos morando próximos.

Na época em que conheci Elvis, ele dizia estar juntando dinheiro pra comprar um apartamento, mas nunca conseguiu. Acabava gastando com pó, whisky e mulheres. E vivia reclamando que estava com o saco cheio daquele emprego de merda.

Mas era um cara engraçado. Saíamos do trabalho e bebíamos nos bares das redondezas. Um dia ele simplesmente largou o emprego porque tinha conhecido uma garota de programa que era bancada por um velho cheio da grana que só vinha para São Paulo comê-la a cada 15 dias. Nos dias em que o velho não estava, ele ficava com ela.

O ócio e a vida fácil evidentemente trouxeram o tédio, que misturado a rios de goró e montanhas de cocaína resultavam em brigas monumentais.

Separaram-se.Uma pena, pois de vez em quando eles me chamavam para umas festinhas com amigas deles e eram verdadeiramente divertidas.

Dias depois do fim do relacionamento, ele havia me dito que estava bastante arrependido, pois havia descoberto ser uma gigolô em potencial e que na ocasião não soube ser profissional. Mas decidiu que esse era o seu caminho.Sabia que provavelmente não teria tanta sorte novamente, mas achava que mesmo assim valeria a pena continuar.

Do ponto de vista de Elvis, bastava que a mulher fosse comível e que lhe garantisse um lugar pra morar. Esse era seu preço.

Mas a primeira que ele pegou era uma mulher de 52 anos, não comível para os meus padrões, mas cheia da grana. Ele nunca pôde abandoná-la de verdade, assim como nunca esteve de verdade ao lado dela.Chamava-se Eloá.

No decorrer dos anos Elvis sempre teve momentos em que desceu baixo o bastante para precisar do tipo de segurança que Eloá podia lhe proporcionar. Isso acontecia quando seus relacionamentos paralelos o levavam à condição de trapo. Se envolveu com garotas de programa e um dia conheceu Úrsula, dona de um salão de beleza.

Ela não ligava a mínima para o fato dele ser um vagabundo.Gostava dele e viveram um período que o próprio Elvis considerou o mais tranquilo de sua vida.

Mas isso foi até Úrsula anunciar uma gravidez que até então estava fora de cogitação para Elvis. Foi um choque e um susto ao mesmo tempo.

Isso causou em Elvis uma espécie de medo repentino quando olhou para seu estilo de vida sob a ótica de um pai. Imagino que aconteça com todos que tenham que encarar a notícia de uma paternidade não planejada, até mesmo para o bancário careta e engravatado que namora sério e ouve Supertramp e Dire Straits.

Mudaram-se para a casa da mãe de Elvis, na Pompeia,convencidos por ela de que o Centro não era um lugar bom para se criar um filho.

Durante quase dois anos, no decorrer da gravidez e no primeiro ano de vida do garoto, Elvis e Úrsula entraram num ritmo de vida diferente e esqueceram um pouco de como eram como pessoas antes. Era como se Úrsula estivesse vivendo como sempre sonhou e Elvis estivesse anestesiado.

Mas à medida que Elvis foi se recompondo e assimilando melhor toda a nova situação, passou a voltar a seguir seus velhos instintos de vira-lata.Viu sua carreira de gigolô o fazer virar exatamente o contrário disso: um pai de família cansado e velho.

Nesse período Elvis já estava retomando seus contatos no Centro, e tinha arrumado um emprego num banco para sustentar o filho.Colocava dinheiro em casa e via nisso uma permissão para viver sua vida livremente.Quando a coisa ficava mais séria ele saia por uns dias para ficar na casa de Eloá, que nem sequer sabia do fato dele ter se tornado pai de família. Ela nunca sabia de nada.

Mesmo antes da gravidez de Úrsula, quando as coisas estavam calmas,Elvis me falava sobre algumas desvantagens da profissão de gigolô. Falava sobre o fato de gigolô não ter férias, nem décimo terceiro salário e coisas assim. Mas sempre terminava dizendo que isso era como ser um profissional autônomo.

Passaram a brigar todas as noites e a mãe de Elvis os colocou na rua, enquanto o garoto ficou na casa da avó.

Voltaram para a kitnet no Centro, só que agora mais desgastados e odiando um ao outro.

Estava sem falar com eles havia várias semanas, talvez meses, quando Úrsula me ligou naquela noite de Natal.Conversamos um pouco, desligamos e eu comecei a olhar minha vida com um otimismo e um entusiasmo que fizeram com que aquela noite se tornasse maravilhosa de repente.

Eu não tinha filho pra sustentar, nem uma ex-mulher me assombrando.Eu tinha meia garrafa de Whisky, cigarros e uns baseados.Tinha também uma janela com vista para a Avenida São João. E tinha ainda um monte de histórias toscas de desventuras de um alucinado pra me lembrar.

Elvis era um bom contador de histórias. Não era criativo nem precisava ser. Apenas relatava as situações que vivia.

Então fui para a janela, acendi mais um cigarro, reabasteci o copo e fiquei olhando uma viatura que aparentemente estava dando voltas no quarteirão. E me lembrei que não tinha muito do que reclamar da vida.

O disco do Dave Clark Five tinha acabado e eu coloquei Nick Drake para ouvir.

A noite estava tediosa e um simples telefonema a fez ficar mais fácil de ser vivida.

Só que uma história que contenha Elvis não pode terminar com um final feliz.

Conheci o verdadeiro final da história 3 dias depois. O dono do bar do meu quarteirão me contou.

Na noite de Natal Elvis havia planejado ir visitar o filho, mas começou a beber antes do previsto, por causa de uma briga matinal com Úrsula. Brigaram o dia todo e ele tinha então mais uma razão para sair de casa além da visita para o filho que já estava programada.

Só que ele foi a pé até a Pompeia e no caminho teve tempo de apreciar as coisas de que gostava. Elvis conseguiu chegar no prédio da mãe, mas foi encontrado morto na escada, vestido de Papai Noel.

O atestado de óbito indicava overdose de heroína, morfina, cocaína, lidocaína e álcool.

Tinha 34 anos.

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