Noite de Natal é sempre uma merda, um pesadelo melancólico que
traz à tona todas as nossas frustrações e todos os nossos
problemas, os financeiros, os amorosos e os outros.
Na noite de Natal de 1999 eu estava escrevendo uma carta para ver se o tempo
passava mais rápido e recebi um telefonema por volta das onze da noite,
e não era exatamente para me desejarem um feliz natal.
Úrsula era mulher de um velho amigo meu, Elvis, que eu conheci anos antes
quando trabalhávamos como frentistas num posto de gasolina no centro
da cidade. Estava nervosa, bêbada e chorando. Disse-me que Elvis havia
saído de casa.
Ele sempre fazia isso,mas ela nunca me ligava pra avisar sobre esse tipo de
coisa.De vez em quando ele vinha pra minha casa, caso contrário eu ficava
sabendo depois, pelo próprio Elvis ou por alguém da vizinhança.
Estávamos morando próximos.
Na época em que conheci Elvis, ele dizia estar juntando dinheiro pra
comprar um apartamento, mas nunca conseguiu. Acabava gastando com pó,
whisky e mulheres. E vivia reclamando que estava com o saco cheio daquele emprego
de merda.
Mas era um cara engraçado. Saíamos do trabalho e bebíamos
nos bares das redondezas. Um dia ele simplesmente largou o emprego porque tinha
conhecido uma garota de programa que era bancada por um velho cheio da grana
que só vinha para São Paulo comê-la a cada 15 dias. Nos
dias em que o velho não estava, ele ficava com ela.
O ócio e a vida fácil evidentemente trouxeram o tédio,
que misturado a rios de goró e montanhas de cocaína resultavam
em brigas monumentais.
Separaram-se.Uma pena, pois de vez em quando eles me chamavam para umas festinhas
com amigas deles e eram verdadeiramente divertidas.
Dias depois do fim do relacionamento, ele havia me dito que estava bastante
arrependido, pois havia descoberto ser uma gigolô em potencial e que na
ocasião não soube ser profissional. Mas decidiu que esse era o
seu caminho.Sabia que provavelmente não teria tanta sorte novamente,
mas achava que mesmo assim valeria a pena continuar.
Do ponto de vista de Elvis, bastava que a mulher fosse comível e que
lhe garantisse um lugar pra morar. Esse era seu preço.
Mas a primeira que ele pegou era uma mulher de 52 anos, não comível
para os meus padrões, mas cheia da grana. Ele nunca pôde abandoná-la
de verdade, assim como nunca esteve de verdade ao lado dela.Chamava-se Eloá.
No decorrer dos anos Elvis sempre teve momentos em que desceu baixo o bastante
para precisar do tipo de segurança que Eloá podia lhe proporcionar.
Isso acontecia quando seus relacionamentos paralelos o levavam à condição
de trapo. Se envolveu com garotas de programa e um dia conheceu Úrsula,
dona de um salão de beleza.
Ela não ligava a mínima para o fato dele ser um vagabundo.Gostava
dele e viveram um período que o próprio Elvis considerou o mais
tranquilo de sua vida.
Mas isso foi até Úrsula anunciar uma gravidez que até então
estava fora de cogitação para Elvis. Foi um choque e um susto
ao mesmo tempo.
Isso causou em Elvis uma espécie de medo repentino quando olhou para
seu estilo de vida sob a ótica de um pai. Imagino que aconteça
com todos que tenham que encarar a notícia de uma paternidade não
planejada, até mesmo para o bancário careta e engravatado que
namora sério e ouve Supertramp e Dire Straits.
Mudaram-se para a casa da mãe de Elvis, na Pompeia,convencidos
por ela de que o Centro não era um lugar bom para se criar um filho.
Durante quase dois anos, no decorrer da gravidez e no primeiro ano de vida do
garoto, Elvis e Úrsula entraram num ritmo de vida diferente e esqueceram
um pouco de como eram como pessoas antes. Era como se Úrsula estivesse
vivendo como sempre sonhou e Elvis estivesse anestesiado.
Mas à medida que Elvis foi se recompondo e assimilando melhor toda a
nova situação, passou a voltar a seguir seus velhos instintos
de vira-lata.Viu sua carreira de gigolô o fazer virar exatamente o contrário
disso: um pai de família cansado e velho.
Nesse período Elvis já estava retomando seus contatos no Centro,
e tinha arrumado um emprego num banco para sustentar o filho.Colocava dinheiro
em casa e via nisso uma permissão para viver sua vida livremente.Quando
a coisa ficava mais séria ele saia por uns dias para ficar na casa de
Eloá, que nem sequer sabia do fato dele ter se tornado pai de família.
Ela nunca sabia de nada.
Mesmo antes da gravidez de Úrsula, quando as coisas estavam calmas,Elvis
me falava sobre algumas desvantagens da profissão de gigolô. Falava
sobre o fato de gigolô não ter férias, nem décimo
terceiro salário e coisas assim. Mas sempre terminava dizendo que isso
era como ser um profissional autônomo.
Passaram a brigar todas as noites e a mãe de Elvis os colocou na rua,
enquanto o garoto ficou na casa da avó.
Voltaram para a kitnet no Centro, só que agora mais desgastados e odiando
um ao outro.
Estava sem falar com eles havia várias semanas, talvez meses, quando
Úrsula me ligou naquela noite de Natal.Conversamos um pouco, desligamos
e eu comecei a olhar minha vida com um otimismo e um entusiasmo que fizeram
com que aquela noite se tornasse maravilhosa de repente.
Eu não tinha filho pra sustentar, nem uma ex-mulher me assombrando.Eu
tinha meia garrafa de Whisky, cigarros e uns baseados.Tinha também uma
janela com vista para a Avenida São João. E tinha ainda um monte
de histórias toscas de desventuras de um alucinado pra me lembrar.
Elvis era um bom contador de histórias. Não era criativo nem precisava
ser. Apenas relatava as situações que vivia.
Então fui para a janela, acendi mais um cigarro, reabasteci o copo e
fiquei olhando uma viatura que aparentemente estava dando voltas no quarteirão.
E me lembrei que não tinha muito do que reclamar da vida.
O disco do Dave Clark Five tinha acabado e eu coloquei Nick Drake para ouvir.
A noite estava tediosa e um simples telefonema a fez ficar mais fácil
de ser vivida.
Só que uma história que contenha Elvis não pode terminar
com um final feliz.
Conheci o verdadeiro final da história 3 dias depois. O dono do bar do
meu quarteirão me contou.
Na noite de Natal Elvis havia planejado ir visitar o filho, mas começou
a beber antes do previsto, por causa de uma briga matinal com Úrsula.
Brigaram o dia todo e ele tinha então mais uma razão para sair
de casa além da visita para o filho que já estava programada.
Só que ele foi a pé até a Pompeia e no caminho teve
tempo de apreciar as coisas de que gostava. Elvis conseguiu chegar no prédio
da mãe, mas foi encontrado morto na escada, vestido de Papai Noel.
O atestado de óbito indicava overdose de heroína, morfina, cocaína,
lidocaína e álcool.
Tinha 34 anos.