capítulo de esperma:
lei de diretrizes e bases
No espaço entre meus olhos e os teus, o desejo inconfessável de um beijo. No abraço do silêncio elétrico entre nossos olhares insinuantes e nossos lábios frementes atravessa uma distância secular. Na agonia dilacerada dessa dor espacial repousa minha pele dilatada entre a pausa de tua hesitação e o tesão de tocar-te ou não. Nenhuma negativa nunca satisfaz. Nenhuma dimensão, ou lei universal, agente químico, satisfaz a imaginação. Por que nossos dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo? Por que somos quase uma antítese e assim mesmo te amo com a simplicidade do Guardador de Rebanhos? Não se pode mensurar a distância entre ninguém, principalmente nós dois. A que distância estamos realmente? Chego a pensar, ou, fico a pensar, se a distância existe. Você existe, e isso já faz uma vida, a minha, valer a existência. Mais do que isso. A tua existência justifica e atesta a felicidade, esse suco abstrato alucinógeno e vicioso. Sei que terminarei feliz (seja lá o que isso for) porque sei da tua presença na Terra. O amor é saber, seja lá o que for, aquilo que satisfaça a nossa dor de existir e nos faça querer ser. E eu quero ser, com ou sem você. E você, o que quer?
capítulo de carícia:
lindação
dessa manhã que se anuncia eu quero a carícia mais macia, o sorriso
mais leve, a beleza mais calma. O beijo mais breve, o teu olhar impreciso, Esse
olhar da manhã espreguiçosa e indelével, o desejo incoercível
de narciso. tudo o que preciso é dessa manhã descabelada. tangível.
pretérito-mais-que-perfeito. Pra cada peito que pulsa disforme nada mais
cafunético do que a carícia de uma brisa matutina e serena, indistinta.
Sonolenta, lenta E morena..., ..., ...,
Tudo houve o tempo... tudo ouve o tempo
capítulo de separação:
retalhos do lar
encontrar as palavras embaixo do sofá atrás dos retratos subindo as escadas ou no travesseiro jogado Perder a noção dentro do computador fora da geladeira entre a penteadeira e o olhar da cômoda Contar a história do liquidificador da poltrona do som do nosso amor da nossa dor se esvaindo lentamente pelo ralo da pia da cozinha ou a saudade sozinha e sorridente Uma ex-paixão calada e vizinha ao lado pedindo um pouco de açúcar ou ternura um fado Dentro do armário me escondi e nas gavetas me fechei solitário de mim Otário solista da melodia da amargura Amar o que não dura porque não tem estrutura Que desaba e permanece no chão Essa paixão que logo se esquece e acaba
capítulo de confirmação:
recomeço
Exatamente. Foi assim. No dia em que nos separamos, olhei para o espelho do
bar. Bar que usávamos pra colocar livros ao invés de bebidas.
Não levávamos jeito pra elegância pura. Não, estou
me confundindo de novo. Eu não ligava pra elegâncias materiais,
mas você ligava. Mas gostávamos de ler. Líamos muito. Sabe,
não gosto muito de lembrar de vê-la indo embora. Sempre que tento
obstinadamente entender como foi que tudo aconteceu, como o seu carro, dela,
(putz, ainda falo como se ela estivesse diante de mim) sempre que tento lembrar,
eu acordo. o que estou pensando agora é meio desconexo porque isto é
um sonho. eu só consigo escrever enquanto sonho. FaZ sete anos que não
escrevo, então não reparem se não fizer muito sentido o
que digo e o que escrevo, é que não existe computador ou máquina
de escrever ou caneta no meu sonho, eu apenas vou pensando e as letras vão-se
grudando no papel ou na tela, seja lá o que for isso diante dos meus
olhos (olhos?! que bobagem, estou sonhando, então estou com os olhos
fechados!!!) Enfim, como eu dizia, minha esposa morreu no dia em que nos separamos.
ela Pegou o carro, estava chorando, mas decidida, triste, mas confiante, eu
via a dor explodir em seu corpo monolítico, mas ela caminhava como só
uma mulher consegue fazer quando decide algo pra valer, , , , , ,
a partir daí meu sonho pára. tudo fica escuro. Meus olhos se abrem
e acordo numa cama onde tudo ao redor, inclusive a cama, é branco. eu
odEio branco.
- Você não está bem - diz o doutor - tem uma perfuração...
Ah, esse papo de médico me enche!! perfuração o caralho
!! eu sofro porque ela me deixou e eu não consegui aceitar o fim do que
parecia eterno. não consegui aceitar que ela morresse assim, tão
repentinamente, e de forma tão brutal, naquele assalto na estrada
- Você não está bem, Bagé
vá pra puta-que-o-pariu, Sócrates !...
capítulo de relatório:
a morte é o fim
Soledade entrou no carro e saiu. Foi e foi e quando na saída para outra
rodovia desacelerou para pegar novo caminho, oito pessoas, todos homens, entraram
na frente do carro. Ela parou. Mandaram-na sair. Levaram-na para um matagal.
Ela estava sem dinheiro. Explicou, disse que podiam levar o carro. Os assaltantes
ficaram nervosos, não sabiam bem o que fazer, se sequestravam a mulher
para que ela sacasse dinheiro dos caixas eletrônicos, ou se deixavam-na
ali mesmo, intacta. não podiam ficar de mãos abanando. Dois entraram
no carro com Soledade e foram em busca de caixas eletrônicos vazios e
sem muita gente por perto. Acharam um, quatro horas depois. Cansados e irritados,
os ladrões queriam que o saldo bancário de Soledade justificasse
tanta espera. Mas não justificou. Só havia dinheiro pra comprar
uma cômoda em loja do centro da cidade. Levaram a mulher para um esconderijo.
Os outros seis estavam lá. Oito homens e uma linda mulher, morena, de
refém. Claro que alguém sugeriu: vamos comer essa vadia...
Soledade foi varada em todos os lugares, em todas as posições
que a imaginação deles lhes permitia desenvolver. Estupro em nome,
número, gênero e grau. Espancaram-na com socos e pontapés.
Fizeram dela um bichinho de estimação durante três dias.
Depois a espancaram até a morte. Jogaram álcool no corpo nu de
Soledade e tocaram fogo. Depositaram o corpo queimado no Tietê quando
eram três e quarenta e dois da madrugada. Amarraram um peso nela. Só
deram azar numa coisa. Eles abandonaram o carro, no dia que a sequestraram,
num lugar aparentemente baldio. Aparentemente. Alguém viu. Quando o caso
chegou nas manchetes dos jornais, José Bonifácio, pedreiro, homem
de boa memória, que adora telejornais policiais, lembrou que viu uns
homens saindo de um carro igual ao dito pela imprensa com uma mulher igual ao
que disseram. Denunciou. A polícia achou o carro. Achou impressões
digitais. Identificou um dos assaltantes pelas impressões. Foi em busca
do homem. Daí levou um mês até pegar todos os oito. Mais
um mês até que confessassem que a mataram. Mais um mês até
a polícia encontrar o corpo, ou o que restou dele. E mais um mês
para a imprensa esquecer o caso.
capítulo de reflexão:
tudo um dia vira bosta
- Você não está bem, Bagé
O doutor Sócrates é meu amigo, mas às vezes eu gostaria
que ele não fosse. Um médico amigo te trata como se fosse tua
mãe. Porra, eu tive mãe, e a minha era superprotetora. Ter um
médico assim que lhe dá conselhos a cada três palavras...
- BAgé, você precisa aceitar que...
- B
agé
você tem
de
en
tendr
qoe as co
coisas
m u d a r a m
CAlaboca, Sócratedes, cê tá falando esquisoto
SAbe, doutor. Eu tenho a impressão de que às vezes eu não
sou eu mesmo. de que minha mulher não morreu, De que sou louco de pedra,
de que vou levantar e olhar pela janela e perceber que estou num hospício.
Isso é normal, Sócrates?
Eu sinto menos dor quando fecho os olhos. eu vejo você e eu grudados na
parede: éramos duas imagens sorridentes em um cenário litorâneo.
éramos um casal. estávamos protegidos pela sombra de uma árvore.
eu te abracei. uma ave pousou num galho da árvore. nós olhamos,
achamos lindo, nos beijamos, e a ave cagou. a meleca pingou na minha cabeça
e outra na sua testa, Soledade. lelmbra? Você correu pra se limpar, eu
chutei a árvore, peguei uma pedra e atirei na ave. Acertei. ela caiu.
Peguei-a e a esfolei. matei uma ave cruelmente porque ela cagou na minha cena
romântica com minha esposa.... turvaliando de novo.
Soledade é tão linda. tão morenamente bela. tem uma moça
parecida com minha mulher. às vezes, quando converso com Sócrates,
ela aparece, me cumprimenta, sorri educada e senta-se na sala de espera. esperando,
talvez, o doutor.
capítulo de lembranças remotas:
chifre só é bom nos outros
doutor. outro dia lembrei - o senhor pediu pr"eu me lembrar desses fragmentos
- de uma briga entre mim e Soledade.
ela estava particularmente irritante naquele dia. era fim de tarde. sabe aqueles
dias em que a mulher não sabe o que quer, mas quer desesperadamente alguma
coisa e como você é homem e não tem o poder adivinhatório
de descobrir o que ela quer, você se ferra bonitinho, sabe? em menos de
quinze minutos após o pôr-do-sol eu já havia sido xingado
de treze nomes diferentes, nomes que reduziam a minha condição
masculina a níveis inaceitáveis de humanidade. eu, besta, demorei
pra perceber a situação atípica - atípica o cacete!
a mulher só tem cinco dias normais dentro de um mês inteiro! -
e disse: " vai começar..." E aí fiz aquela cara de "essa-mulher-é-um-saco".
Foi o suficiente pra eu ouvir todo bestiário feminista blá-blá,
blá-blá, blá-blá, blá-blá...
- eu vou te trocar por outra vinte anos mais nova
- se a minha boceta perdeu o prazo de validade pra você então eu
também posso mudar de pinto porque o teu acaba de perder a soberania
sobre minha região. vou proclamar independência, transformar minha
boceta em refugiada e buscar abrigo em países amigos pra ela
- eu odeio suas metáforas pretensiosamente sarcásticas, machadianas.
pára de fazer poesia e vê se fala como gente normal brigando, porra!!
- machado de assis nunca escreveria os palavrões que eu quero te dizer.
Talvez nelson rodrigues, ou plínio marcos...
- foda-se
- TAlvez a vaca da sua irmã que vive jogando você pra cima das
amiguinhas dela
- ah, então o problema é esse. É difícil arrancar
uma informação objetiva de uma mulher, hein!!
Como ela estava linda naquele fim de tarde. Mais morena que nunca, ou sempre,
com os olhos vivos mais abertos, em fogo, pela raiva e ciúme. Os braços
nus, braços fortes, um belo conjunto de ossos. os braços sacudiam
colericamente pensando ainda em me acertar, mas apesar disso, tudo o que eu
pensava naquele momento era em agarrar aquela gostosa e arrancar-lhe a roupa
ali mesmo. e não haveria muito esforço, ela estava de roupão
branco, quase transparente e sem nada por baixo. o nó do roupão
estava frouxo...o zíper da minha calça estava aberto havia vinte
minutos. estávamos entre a cozinha e o banheiro. um sexo bem gostoso
em nossa banheira enorme era tudo o que eu precisava. mas ela não parava
de falar e de brandir suas indignidades e desonrarias.
o desfecho disso tudo foi prosaico. o telefone tocou. Ela atendeu - nem nessas
horas ela esquecia da eficiência irritante de ótima secretária
executiva que ela já havia sido. pois não. Um minuto. BAgé,
é pra você, uma tal de Amanda (disse o nome com uma careta de desdém,
caricaturando a voz da moça, algo que soava absurdamente nasalado): deu-me
o fone e rodopiou até o banheiro.
Serve essa lembrança, doutor sócrates?
capítulo de sou canalha e daí ? :
pós-autopsicografia
doutor, a mentira é o que há de mais nobre no ser humano. mentir
requer criatividade, estudo, rapidez de raciocínio, pré e pós-produção
e boa memória pra se manter a mentira tão viva que vire uma verdade.
a partir daí, quando se transformar em verdade, esquece-se, e procura-se
outra mentira que valha a pena. sabe por que a mentira tem perna curta? Não,
não é por isso. É porque com perninhas curtas ela passa
despercebida e vai ligeira, como os coelhos, se espalhando rapidamente nos mais
distantes lugares. Sabe aquele cachorro de perninhas curtas, corpo tipo salsicha?
então, ele é uma gracinha correndo. A mentira é assim:
uma gracinha enquanto se espalha como um vírus ou um tumor benigno.
Aí tudo fica escuro e eu só me lembro da minha mulher dizendo:
- uma frase solta, assim, viajando pelo ar, uma frase que já sei mas
que não sabe de mim, uma frase que me interroga e me exclama; eu vivo
esperando uma frase que me chame - que não tem jeito de se apagar ao
pé do ouvido, para senti-la estrela: não me deixa tão sozinha
no escuro mas da minha cama da minha casa nada tão específico,
sinto sua voz entrecortada pela emoção, essa frase solta sussurra
com uma voz nada específica; num brilho típico a frase sussurra:
"eu não sei", tudo é tão geral, tão sem
detalhes é como eu gostaria que fosse mas não, não é
assim, vou parar de falar; por que uma maldita frase voaria de tão longe
para vir até mim, e aí sussurrar apenas e simplesmente "eu
não sei"? essa é uma pergunta que eu vivo fazendo pra mim
mesma...
minha mulher é tão linda. quer dizer, era. Aí aqueles sonhos
voltam e eu fico esquisito
- Você não está bem, Bagé
O doutor Sócrates é meu amigo, mas às vezes eu gostaria
que ele não fosse. Um médico amigo te trata como se fosse tua
mãe... conselhos a cada três palavras...
- BAgé, você precisa aceitar que...
- B
agé
você tem
de
en
tendr
qoe as co
coisas
m u d a r a m
AS COISAS MUDARAM. A-S C-O-I-S-A-S M-U-D-A-R-A-M
CAlaboca, Sócratedes, cê tá falando esquisoto ESQUISOTO
ESQUISOTO, ITO
SAbe, doutor. Eu tenho a impressão de que às vezes eu não
sou eu mesmo. de que minha mulher não morreu, De que sou louco de pedra,
de que vou levantar e olhar pela janela e perceber que estou num hospício.
Isso é normal, Sócrates?
Eu sinto menos dor quando fecho os olhos. sorridentes em um cenário litorâneo.
éramos um casal. e a ave cagou. a meleca pingou na minha cabeça.
lelmbra? Você correu, peguei uma pedra e atirei. Acertei. ela caiu. Peguei-a
e a esfolei. matei cruelmente porque ela cagou na minha cena romântica...
turvaliando de novo.
Soledade é tão linda.
capítulo de metáforas :
um saquê de vez em quando é bom...
eu só consigo escrever enquanto sonho. mas no sonho as palavras, letras,
tudo se conecta ao espaço em branco e constrói o texto que segue
e que vocês pacientemente leem. ler?!! Tem alguém aí
lendo o que estou escrevedizendo-sonhando??!!
o barulho do mar não me incomoda. Não é barulho, é
uma melodia cuja simplicidade provoca escândalo aos ouvidos dos ignorantes,
o som do mar é um sopro suave, um barulho em que nele mergulho sem medo,
sem respirar, sem nadar, sem nada que me pare, só a felicidade de ouvi-lo...
o BArulho do mar é o despejar do teu beijo em meu pescoço, Soledade.
Aquele beijo inevitável, imprevisível, inexorável, gracioso
e apaixonado era também um jeito doce de me tragar ao fundo de tua alma
oceânica...
de vez em quando bate o desespero
capítulo de putas-que-os-pariu:
ausências
o calor cobria-me com seu manto invisível. sufocava-me como ausência.
mas não mais que uma presença. esse calor me parece um espelho.
e não tenho como fugir dele. ou de mim. espelhos não existem.
são nossos olhos que refletem o que podemos ver. algo dentro de nós
recebe ou devolve aquilo que percebemos. posso chamar de alma? inconsciente.
subconsciente? dever ser sub. tem de estar bem abaixo de tudo o que é
tangível. há pessoas cujo olhar é um refletor. você
olha, e se vê. olha bem fundo, querendo decifrar aquela pessoa, mas ela
devolve exatamente o que você mais teme : devolve seu eu escondido. seu
sub disfarçado. por isso, quando olhei para Soledade, compreendi o que
eu era, compreendi meus ataques de ausência. meu medo de ver meus segredos
inconfessáveis. Meus defeitos mais terríveis fizeram com que desistisse
de encará-la. mas ela, suavemente, com um beijo terno no rosto, a mão
erguendo meu queixo, me fez vê-la. na verdade, ver-me. e o que vi surpreendeu-me.
no reflexo invertido de sua íris, vi-me uma sombra disforme. senti-me
incompleto, enquanto eu a via concreta, fixa, inabalável. você
era ao mesmo tempo a luz e o edifício e você no meio. eu, a sombra.
Você era três. concresia, carne e poesia. eu: nem sei. sei que espelhos
não existem.
Quando abri os olhos, pela primeira vez achei que estava sonhando acordado.
Eu via Soledade chorando, não aquele choro desesperado, descarnado, à
flor da pele, mas aquele choro de Capitu, contido, verdadeiro, profundo, e por
mais reprimido, mais dolorido. Mas Soledade não reprimia por vergonha
ou aparências, ou porque Bentinho achava que a esposa deliberadamente
assim o estivesse fazendo por ser amante do morto, mas a contenção
era fruto de uma dor intensa, tão intensa que supunha-se maior do que
o próprio corpo. ERa esse o choro. O doutor Sócrates, sempre fleumático,
apoiava a mão na parede, como que para ter certeza de que tudo o que
era matéria ainda estivesse ali. O doutor não queria perder a
noção científica das coisas. Eu tentava acalmar Soledade,
mas ela nem me ouvia. O doutor estava impassível, só via-se o
sobrolho mexer-se vez em quandíssimo. Eu dizia palavras de amor, de carinho,
de confiança e de fé, mas Soledade estava inconsolável.
Finalmente, Soledade se acalma quando as outras pessoas saem da sala (havia
outras pessoas? nem reparei !). Minha mulher abraça o doutor Sócrates
e pára de gritar. Apenas chora suavemente. Em suspiros. Em soluços.
O calor cobria-me com seu manto invisível. Sufocava-me como ausência,
mas não mais que uma presença. Esse calor me parece um espelho.
E não tenho como fugir dele, ou de mim. Espelhos não existem.
São nossos olhos que refletem o que podemos ver. Ou o que queremos ver.
capítulo de tudo um pouco:
chegou a hora, tem de ser agora
Eu tenho um problema na vista. qualquer luz me cega. Por isso sempre fujo da luz. E uma claridade bem forte vem me incomodando há dias. alguém deve estar usando um luminoso intenso, provavelmente meus vizinhos da frente que adoram chamar a atenção com as coisas estrambólicas que eles compram, as festas exóticas e povoadas que eles dão todo mês... Como eles construíram um anfiteatro no pequeno quintal gigante deles, devem ter colocado um sistema de iluminação para estádios de futebol, para que pudessem apresentar as encenações durante a noite. ESsa luz me dá dor de cabeça, prefiro o escuro. Sou meio vampiro, sabe. Acho que Soledade não me perdoou porque tive um caso com uma aluna dela. Soledade nunca desconfiou porque nunca me encontrei com a menina dentro da faculdade ou nos arredores. O nosso casamento, meu e de Soledade, não ia bem. Fiquei sete anos sem escrever, isso mexeu comigo, minha autoestima e com meu humor e com meu romantismo. Soledade sentiu que algo havia mudado. Aquele casinho foi um aviso. Eu exagerei: não precisava ter comido a aluninha da minha esposa no sofá de casa. ERa pra ser uma rapidinha, mas quando Soledade nos pegou, parecia "a vida como ela é", de Nelson Rodrigues.
capítulo de repetição combinada:
carícia
E eu quero ser, com ou sem você. E você, o que quer?
- eu quero a carícia mais macia, o sorriso mais leve, a beleza mais calma.
O beijo mais breve, o teu olhar impreciso.
Nunca entendi o que Soledade queria dizer com isso. Uma mulher tão eficiente,
tão secretária executiva, tão mãe perfeita, tão
professora exemplar, tão, enfim, matemática, como ela poderia
desejar o simples, a leveza de uma carícia?! SErá que durante
catorze anos eu não conheci minha mulher? é verdade que não
me lembro de umas marcas no pescoço dela. Na verdade ela não quis
me contar, mas eu desconfiei que ela tentou se machucar, em desespero, pelo
que fiz a ela, com essa coisa de traição e tal... Agora me lembro,
no quarto do hospital, enquanto Soledade chorava nos braços do doutor,
eu vi uma cicatriz percorrendo a parte da frente do pescoço, do queixo
até onde termina o pescoço e começa o colo, naquele buraquinho,
ali, na garganta. coisa enorme. era um rasgo feio. Mas como a pele de Soledade
é moreníssima, às vezes engana um pouco a vista alheia.
Eu queria tanto que ela estivesse aqui pra me dar um afago no rosto! O contato
da mão no rosto é algo tão mágico, tão protetor,
e ao mesmo tempo íntimo. Intimidade tal que provoca certo constrangimento
quando somos tocados, acariciados, afagados pela mão de alguém.
Parece coisa de mãe. De qualquer forma, parece coisa que só uma
mulher sabe fazer. Quando um homem faz, se não tem conotação
sensualíssima, é coisa de pai ou avô. Papai Noel. Aliás,
odeio Papai Noel.
- Bagé, sua mulher está preocupada com você...
Doutor Sócrates, eu sei que ela está morta.
- Bagé, o acidente com o carro...
doutor, eu sei, acabaram com ela naquele assalto... doutor, eu estou lúcido.
Os meus olhos, eu podia vê-los saltando do rosto. a lucidez era só
o que me restava.
capítulo de agonia:
espelhos d"água
eu fecho os olhos e não vejo a imagem do rosto seu. Não consigo
descrever as formas e nuances daquela face nua. Não sei se o nariz é
grosso, grande, aberto, aquilino ou estúpido. Os olhos vesgos serão
estrábicos acinzentados. Quem sabe úmidos de sofrimento ou fundos
de melancolia. Quando fecho os olhos não me vem à mente nada,
não consigo desenhar nem onde fica a sua boca bendita, maldita. Quando
penso no rosto, meu orgulho expõe através dos meus desenhos todo
escárnio deste não-lembrar. Eu sei que este rosto já sentiu
meu gosto azedo e meu carinho cego. Mas, que cara, rosto, face, pele, ossos
são esses, que não me esqueço e só me lembro que
existiu? Eu fecho os olhos e peço que você desapareça: não
quero me lembrar do que nem posso ver.
- não faz tanto tempo assim, o acidente só aconteceu há
algumas semanas...
Mas por que você insiste em chamar de acidente, Sócrates, caralho
!! Não foi acidente. E olhe pra mim enquanto falo contigo, porra. PARE
de olhar essa prancheta de merda!
- A senhora está bem?
Quem é essa mulher, Sócrates? Eu não quero ninguém
aqui, só quero ficar só. Essas conversinhas de lado me incomodam,
esse branco todo, essa gente me olhando e essa dor que eu sinto no peito e ninguém
me diz o que é...!!
capítulo de dor:
a voz
em meu sonho eu não consigo ver minhas mãos. mas eu olho - e
eu sei que estou de olhos fechados - e vejo meus pés na cama, fora do
lençol. Soledade se aproxima e acaricia meu rosto e diz
POr favor me perdoe
Um homem se aproxima de Soledade e põe a mão no ombro dela. Pô,
que história é essa de colocar a mão na minha mulher, seu
safado? eu nem te conheço!
POr favor me perdoe, Ba
perdão do que, mulher? Você deu pr"esse cara, por acaso?
VAmos Soledade, você precisa descansar
o tipo era bem atrevido, dono da situação, a cara não me
era estranha, acho que já o vi numa das redações de jornal
por essa vida afora.
Você não tem que se arrepender de nada
- Mas, Taiguara, eu também tenho culpa. Eu queria uma coisa que ele não
podia me dar. Bagé é um homem difícil. Extremamente ciumento,
possessivo. A posse se misturava ao ciúme numa amálgama fria,
ele perdia completamente a noção de controle, equilíbrio
e percepção. Bagé tentava me dizer isso em seus poemas,
mas eu não percebia. Até que ele parou de escrever... Passou a
discutir comigo... eu não via o processo de esquizofrenia adiantado -
como poderia? - não sou especialista... depois do ódio que sentia
por mim, por eu não entendê-lo, ele passou a ter medo de que alguém,
algum homem me possuísse. Num jantar que demos em casa, há alguns
anos, ele quase matou o doutor Sócrates. E sabe por quê? Porque
Bagé havia me visto abraçada com o doutor. Claro, eu estava chorando
!!! e chorando porque Bagé tinha tentado me matar ! Taiguara, o Bagé
me viu fazer um carinho no rosto de um adolescente - vizinho nosso, e nem cabe
aqui dizer o motivo do carinho, que foi gratuito, um menino sempre muito gentil
- e Bagé veio como um louco com a tesoura de jardinagem na mão
- pra matar o garoto!! Eu tomei a frente. Ele gritou: - Saia daí ou eu
te mato também ...!!! Oooh... Não, não, deixe-me terminar,
deixe-me terminar... Eu agarrei meu marido, mas ele, ensandecido, brandiu a
tesoura contra mim e rasgou meu pescoço. Quando ele me viu sangrando
para morrer, paralisou-se todo e chorou como um bebê. O adolescente, corajoso,
rasgou a própria camisa, fez um curativo improvisado e chamou a ambulância.
Bagé ficou três meses internado. Ficou mais três meses quando
atirou um bisturi na direção do Sócrates... Aí eu
conheci você, minha vida mudou, reaprendi a ser feliz, mas eu ainda gostava
de meu marido. Mesmo sabendo que ele podia surtar de novo, eu fui até
ele e pedi o divórcio. Falei a verdade, falei que estava com você,
Taiguara. E aí aconteceu tudo isto. Ele pegou o carro - sei lá
o que ele ia fazer, me perseguir, te matar, se matar - o fato é que antes
de que qualquer coisa sem propósito pudesse ser feita, ele tentou uma
ultrapassagem, e uma carreta que vinha em sentido oposto o pegou em cheio. Um
pulmão ficou perfurado, uma perna es-ma-ga-da... sei lá quantas
fraturas. Mas ele ainda esteve um tempo consciente, mas depois entrou em coma...
NÃO !!! me deixe chorar !!! me deixe chorar !!! me deixe chorar... Ele
vai e volta, eu acho que ele vai morrer, mas ele não pode morrer, ele,
ele não tem culpa de ser assim...
- Soledade, seu marido, quando estava consciente, inventava histórias
sobre vocês, ele dizia que você tinha morrido num assalto e sequestro,
algo fantástico, com requintes de crueldade...
- Ele é escritor e jornalista, como você, Tai, como você.
Ele criou a própria morfina: as ficções. São elas
que o mantinham lúcido, mesmo que essa lucidez fosse imaginária,
fantasiosa. Além do mais, tudo refletia muito mais um desejo dele do
que outra coisa. Pra ele, seria melhor se eu tivesse morrido.
MAasss o qu e que euqu eque elea ela está vla a laFALANDO?>!11!
mas o OQQUE QUE ELEA ESTÁ FALANDOFALANDOFALANDO¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨*
eU mORRI? como? morri?
Não. foi ela que morreu. foi ela que morreu eu estou bem. é claro
que no hospital, talvez pra curar a a , pra curar a ...
- Doutor?
- Sim, Soledade, é definitivo. Seu marido está morto. Dessa vez
não volta. Sinto muito
Eu estou... Não, como? como? o sinal, aquele sinalzinho de que o coração
está batendo, deixa ver... parou. mas não sou eu que estou na
cama? Não !! deixa ver... espera, porque estou levantando? Meu deus,
estou com medo, pára, parem tudo, o que éisso.??? Quem é
qele lá em baixo? Sou eu Minha nossa, estou estou num quarto de hospital,
aquele é o médico, aquela é minha mulher, aquele é
o namorado de minha mulher, aquele sou eu, mas se aquele sou eu na cama, o que
sou eu aqui no teto? Aaahh!!! de novo aquela luz !! Odeio branco, odeio luz...
é isso? Então é isso? Eu inventei tudo? Tudo? a história
da luz, do barulho, da dor no peito, d?/? o calor me devora, saio da casa pra
ouvir a noite sorrindo em latim, o calor me persegue ainda que eu navegue pela
rede do meu jardim, o pavor eu bebo antes do jantar com duas pedras de gelo
e o gelo em teu olhar, bebo pra me lembrar que bebo pra me esquecer dessa conversa
de bêbado, que o calor me sufoca como teu beijo dissimulado, sorriso de
Capitu, cabelos de Iracema, quando me beijas vivo o dilema de amordaçar-me
no vento ou de deixar-me solerte em teus braços, inerte, abraços
refrescam-me deste maldito calor, deste súbito amor, deste estúpido
eu . ... às vezes sim, eu quero gritar no silêncio da noite, às
vezes assim, a noite me quer...às vezes não. porque dói
tanto quando te olho como se visse a mim mesmo num espelho da verdade, e você
deitada um quadro expressionista pura carne viva cores fortes sangue e glória
minha história minha dor. Soledade, eu te amo. vou sentindo tua ausência
e tua presença como sentirias a minha, vou vivendo assim acompanhado
pela demência, pelo silêncio e a lua, pela música, pelo cinema,
pela dor e pelo poema. houve o tempo. ouve o tempo. Tudo agora está...
todas as cores, está branco... branco... suave... e agora... Escurece,
e minha mente não morre... só desaparece.
(14 de dezembro de 2003, 01h24 da madrugada)