A Garganta da Serpente
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Levei um susto imenso
ou
Também sei a dor de me lançar

(Erika Zaituni)

Algum dia eu pedi que me entendessem? Já alguma vez prometi respeito e amor a todos? Jurei felicidade por algum falso momento ? Não. Então que me deixem. Que me esqueçam. Que me odeiem. Tenho meus anseios, não sei dar gritinhos de alegria e não gosto de sorrisinhos gentis. Minha angústia é minha e não quero explicá-la a ninguém. Não, não me importo mesmo com o mundo, mundo esse que só faz a cada dia duvidá-lo mais e mais. Circos, atores de plástico, oficinas de arte, tristes palhaços, políticos, assistentes sociais, cantores egocêntricos... como sinto nojo e desprezo por toda essa classe aparentemente preocupada com a humanidade. Fingem! Não se importam com nada que não seja satisfazer o próprio ego. O homem, bem sei, não está preparado para ser recipiente de doação e entrega de luz. Porque o homem é todo trevas, porque o corpo é todo dor e porque a mente é toda incompreensão e a alma, a alma é vazia. Vazia de verdades. Vazia de dúvidas. E o que me preenche? A loucura. Essa lúcida loucura, loucura comestível, doce, amarga, loucura que me faz andar. Instinto. Eu o aceito, o admito e, por isso, louco e, por isso mesmo, verdadeiro. Parece sem nexo? Ainda assim eu triste porque nada aqui supera minhas expectativas, porque nada aqui me faz simplesmente acreditar. E escrevo na sombra e nada vejo. Vejo tudo. Tudo o que não se deve ver. Mas, uma pena, nada acontece. Os astros... tão perfeitos em seus mistérios e suas vidas escondidas. Ficam lá em cima, tal qual loucos diamantes a brincar coma vida de tudo o que está abaixo de sua beleza completa. Astros titeireiros. E nós aqui, feito bichos, comendo, dormindo, acasalando, cagando e pagando contas. Raça mais estúpida. E aqui estou, a ser cúmplice de tamanha enfermidade. O corpo, sempre em chaga, nunca em chamas, vai caindo, caindo e acaba. Morre sem que saibam o que realmente deve se fazer com ele. Procriar? Isso, entupam ainda mais esse lugar de insignificâncias. Lambam suas crias, fechem suas pequenas feridas e veja transformarem-se em monstros, tal qual suposto criador, e veja-os ter o mesmo fim de quem os pariu. Cemitérios... eis o teatro mais divertido que se pode encontrar aqui dentro. Gosto do figurino, todos ficam elegantes de preto, até os que exalam um pouco mais de suja gordura. Gosto das lamentações, tão dramaticamente bem performáticas, das velas, ao menos elas tem o fogo em si. Aquelas camas acimentadas com carimbos e falsos elogios, os vermes, tão certeiros e ágeis. As flores, imóveis, pensativas como inquietos filósofos, coloridamente tristes. São como os palhaços, alegres por fora e choro por dentro. Quem dera todos fossem como eles, mas são piores, se enganam. Alguém pode me dizer como conseguem fingir tão bem a alegria de dentro? Tenho raiva, raiva de tamanha conformidade, de tantas ilusões, de tantas crenças inventadas, sem fundamento, para não admitirem: estão sós. Sozinhos nessa grande bola de merda em que infelizmente me encontro. O que vocês querem de mim? Não cheguem perto, mordo com os olhos da alma. Sai muito sangue. Eu sinto o que você é por dentro e não gosto do que sinto. Poucas pessoas falam e isso muito me entristece. As palavras... tão belamente perfeitas, tão distraídas esperando que as pesquem, tão sérias, tão chuvas, tanta luz. Um dos únicos prazeres mundanos. O único que me interessa falar agora. Brincar com as palavras! Mas há pessoas que as matam. Que as usam cordialmente, comumente, jogam-nas fora. Joguem-se fora vocês que nem uma utilidade me tem ou ao mundo. Que utilidade tem o mundo? Não sei. Mas sei que nele, as palavras me alimentam, me encantam, me distraem, me destroem... bom passar minha dor e culpa junto a elas ao papel, dançar com as mesmas a comemoração de escrever o sentir. Sentir o que se sente e vomitar o que se escreve. Muitas outras coisas já tentei, entretenimentos e artes já me saltaram aos olhos, mas não me alcançaram o coração. Não me tocaram a alma. Tudo lama. Mas, lama ? se mostraram pequenos demais pra mim. Porque poucas coisas me libertam, mas a escrita fixa, feia e dura me faz voar. E tem mais: o que escrevo aqui e ali é repleto de má literatura, em todos os sentidos. Mas faz sentido. Não é vão. Pintar, cantar, cozinhar, dançar, bocejar, amar, modelar, curar, jogar, desenhar etc. meros exercícios e não me acham e me entediam. Despertar desprezo também é cansativo. Volto então a falar das flores... violeta gramas do meu ser que murcham com o despertar do sol. É realmente muito estranho, o mal do homem é a memória, memória de um passado desse presente, memória da memória de outras pessoas que interessam menos ainda que suas próprias. Lembranças da vida de agora é um erro enquanto não sabemos o que fomos, e se fomos, ou se iremos ser. estar e viver, isto nos basta? me basta? Bosta em pasta. Papoulinhas de julho, não não fazem mal. Ficam tranquilas a olhar um ponto e fico eu a pensar o que devem elas estar pensando. Escrever o pensar. Sem correções nervosas, sem preocupações inexoráveis. Certas obrigações do homem me passam despercebidas. Nego todas. E o divertimento me parece chato e sem graça. Engano. Talvez o canto não me cante, mas quando exausta de escrever ou de não escrever me ponho a ouvir melodias dolorosas levadas por letra intensa, intrínseca em mim. Vejo-me agora viajando na harmonia milagrosa das asas da panair.

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