A Garganta da Serpente
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O gato

(Eugênia Ventura)

Arthur. Ela o chamou de Arthur.

A história recém descoberta sobre o rei lendário da Bretanha impressionou bastante a menina. E foi sob essa impressão que escolheu o nome para o gato.

A bem da verdade, ele não possuía, nem de longe, alguma qualidade de seu patrono: rajado, grande, vira-latas, ladino, gatuno e sem nenhum caráter, o bicho era conhecido na vizinhança por suas encrencas e roubos.

Ocorre que, mesmo para ele, tão bem versado nas artes da sobrevivência, o tempo andou passando: o pobre envelheceu e mesmo que tentasse manter o controle sobre seu território, só conseguia, com enorme sucesso, brigas inglórias e ferimentos horríveis.

Nessa situação, encolhido, murcho, quase sem poder caminhar é que pela primeira vez permitiu que a menina se aproximasse dele.

O gato já tinha visto a estranha criatura. Tal como ele, ela também era conhecida naqueles quarteirões.

Magricela, com duas enormes tranças de cada lado da cabeça, ela vivia atraindo com petiscos e chamamentos, todos os animais que zanzavam pelas ruas.

Evidente que isso nunca funcionou com ele, malandro contumaz, onde já se viu comer das mãos de uma menininha?!

Ele sinceramente a achava meio boba, mas ainda assim havia algo nela que, estranho, o enternecia: não era apenas por divertimento ou por gostar de bichos que a garota os procurava, havia uma sincera preocupação com os animais doentes, velhos, com as fêmeas recém paridas, os atropelados e os judiados por humanos.

Encarrapitado num muro o gato abria seus imensos olhos acinzentados e seguia, assim, do alto e de longe, a menina que abria uma sacolinha e de lá tirava gaze, mercúrio e carinhosamente limpava e enfaixava as dores dos necessitados.

Com movimento típico dos gatos ele inclinava a cabeça e mesmo roído de curiosidade, lá permanecia, inatingível pela altura e dignidade. Por muito tempo a observava dividir uma contrabandeada garrafa de leite entre os filhotes recém nascidos para depois os acomodar em improvisadas camas de caixas de papelão ou madeira

Até aquela manhã Arthur (que ainda não sabia que iria ser chamado assim) estivera imune aos encantamentos de Isabel.

Acontece que nem para ele, tão esperto e arisco, a situação estava das mais promissoras. O corpo dolorido, cheio de mordidas e sem grande parte dos pêlos, a boca cortada e bigodes praticamente estraçalhados, a fome e a sede e, pior, a total incapacidade de se defender, pesaram em sua decisão e assim foi que, aparentando uma fingida mansidão, permitiu que Isabel o pegasse nos braços.

Em, poucos segundos, Arthur considerou que talvez não tivesse tomado a decisão mais acertada. A sensação de proteção e ajuda que necessitava a ponto de abdicar de seu imenso orgulho felino, não vinha daquele colo: a uma menina era franzina demais e ele, gordo demais! Cada passo dela, mesmo murmurando palavras de carinho e afeto, o enchia de terror e acenava com a terrível possibilidade de despencar, se estatelar no chão e com as dores que sentia, certamente ficaria muito pior do que antes.

E foi assim, aos trancos e barrancos, que chegaram gato e menina, até a imponente casa.

Ali, depois de acomodá-lo entre almofadas Isabel tratou suas feridas e ofereceu um mingau morno com pedacinhos de pão.

Com os olhos semicerrados, ronronando, foi que ele ouviu, pela primeira vez, o nome que agora possuía: Arthur e, sinceramente não achou de todo mau.

Se o preço a pagar por morar naquela sala cheia de sofás forrados de veludo, tapetes que quase cobriam suas patas, leite e carne moída com arroz e ainda o colo da jovem dona, era apenas uma questão de palavras, tudo bem.

O bichano, com a sabedoria e pragmatismo da espécie, percebera que seus dias de valentão e dono do pedaço estavam acabados. Era agora maduro, menos ágil, alvo fácil de cães e antigas inimizades que cultivara durante a vida.

Nem mesmo o olhar de profundo desprezo da empregada ou da mãe de sua protetora, que nunca acreditariam na conversão de um velhaco como ele, seria empecilho para a vida boa que agora teria.

Aos poucos o gato recuperou a aparente saúde, mas nunca mais a forma física: a dieta rica em proteínas e em horários certos, os longos cochilos ao sol ou nas almofadas, os beijos estalados e cafunés de Isabel refletiram em seu corpo tornando-o quase do tamanho de um felino selvagem. Seu pêlo, graças aos cuidados e escovadelas, brilhava e adquiriu ar de raro casaco de pele, seus belos olhos acinzentados seguiam sua dona com carinho e admiração.

Arthur, o terror das cozinheiras, don Juan descarado e pai desnaturado de metade dos enjeitados da rua, era agora um lindo animal de estimação.

Os dias passavam calmos. Não mais a correria e os saltos pelos muros.

Apenas o ruído da rua que, de vez em quando, invadia a sala através das janelas abertas o lembrava da antiga vida de aventureiro.

Nesses momentos Arthur saltava num dos beirais e olhava, com olhos e pensamento de gato, o mundo lá fora. Por milésimos de segundo sentia certa melancolia, nostalgia mesmo, da liberdade, dos espaços abertos, do descompromisso com tudo.

As fêmeas no cio, as muitas cozinhas invadidas para saborear petiscos roubados, as latas de lixo reviradas, tudo desfilava em sua íris caleidoscópica. Era como se isso agora fizesse parte de outro mundo, num outro tempo que ele, qual observador distante, contemplava, não de todo sem dor, mas com sábio distanciamento.

Vivia agora pelo amor de Isabel. Aliás, nunca soube entender, mesmo com toda a perspicácia felina, como sobrevivera tantos anos, sem isso...

As horas que a menina não estava lhe eram mais penosas que as visões, pelos vidros, do mundo livre... Sabia-se prisioneiro do amor e mesmo com o sofrimento que sentia com a ausência dela, ainda assim o tempo compartilhado valia toda a liberdade e mil aventuras pelas ruas.

Os mimos, as palavras, mesmo incompreensíveis, sussurradas num tom doce e de segredo, o afago em seu pêlo, o contato quente quando adormecia entre os acolchoados da cama de Isabel, eram agora o seu ar, sua vida e nada mais queria.

Havia, no entanto, algo que o encantava tanto ou mais que todas as outras coisas juntas: as lições de piano.

Em determinados dias, uma moça franzina e morena entrava pela linda sala trazendo uma pilha de folhas numa pasta. A primeira vez que a viu, ele se assustou.

Quem era aquela que invadia seu território de veludos e mimos?

Que lindo gato? É seu, Isabel? Perguntou a estranha.

Sim e não, respondeu a menina. Eu o encontrei machucado, agora ele vive aqui até quando quiser. Chama-se Arthur.

Enquanto esse diálogo transcorria, a empregada destrancou um espaço até então desconhecido para o gato: uma pequena sala envidraçada onde magnífico piano a ocupava quase que totalmente. A sala de música.

Naquele dia, o felino descobriu outra enorme paixão: o som do piano. Mágica pura que saia daquele móvel esquisito e o atingia em cheio.

Desde então, como se fosse outro discípulo da professora, ele se sentava ao lado de Isabel e seguia atento e solene, o dedilhar vacilante dela.

Um novo mundo abriu-se, feito de sensações e sentimentos que não podia explicar, ora alegres, ora melancólicos... Como se sua vida de gato fosse contada ali, através da voz do instrumento imponente.

Passou a amar as horas de estudo, a repetição sem fim de um mesmo trecho da partitura, alternando infinita atenção com momentos de devaneio, com olhos quase fechados, onde se permitia, tal a felicidade que sentia, ronronar.

Arthur, enquanto viveu com Isabel, foi feliz. Mas não viveu muito.

Os anos de devassidão e vadiagem cobraram preço alto.

Em poucos meses foi embranquecendo os pêlos, ficou mais lento e letárgico, mal se alimentava. Vivia pela dona e só voltava a ser o Arthur com jeito felino e curioso, quando ouvia o som do piano.

A menina percebeu essa estranha reação e, numa tentativa desesperada de mantê-lo vivo, passou a dedicar mais e mais horas nos estudos de música.

O declínio dele coincidiu com o rápido progresso dela ao tocar partituras mais e mais complexas.

O som do piano invadia a casa por horas e horas sem fim, atrapalhava a rotina, entrava pela noite adentro, atormentava os vizinhos.

A estranha dupla, gato e menina, conectados pela música, pareciam viver num mundo à parte, especial, cujos símbolos e seus significados apenas eles podiam decifrar.

Arthur morreu numa manhã de inverno. Foi encontrado na banqueta do piano e parecia dormir.

Isabel o enterrou num canto do imenso jardim da casa, envolto em xales e colocado, junto com as partituras, numa caixa forrada de tecido.

Ela nunca mais abriu o piano. A sala de música permaneceu, por anos, trancada.

Existe uma foto de Arthur. Melhor, dele e de Isabel. Sentados diante do piano.

Ela, com o gato no colo, sorri para a câmera.

Parecem felizes.

(3º lugar no Concurso Literário para a terceira idade - 2007, realizado pela Diretoria de Cultura de São Caetano do Sul)

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