A Garganta da Serpente
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As Medidas Perdidas

(Eurico de Andrade)

Zequinha Faria estava pra lá dos 70 anos e tinha a vista cansada. Não acertava com os óculos comprados sem receita médica. Era famoso pela humildade e pela desordem que imperava em sua sapataria, a mais antiga e tradicional de Tabuí.

Mesmo desorganizado, os fregueses não o abandonavam devido aos preços camaradas que ele cobrava pelos seus serviços. Geralmente seus calçados eram feitos sob encomenda e sob medida.

Um dia chegou à sapataria o senhor Tonico Teixeira, lá das bandas da fazenda Toatoa. Tonico Teixeira, também pra lá dos 70, era homem sério, de semblante rude e voz arrogante. Cumprimenta o velho Zeca, pergunta pela noiva e pela data de casamento.

- Compade Tonico, a data do casamento só depende do meu irmão, o Padre Faria, que a quarqué hora entra de férias lá em Bambuí. Aproveitano sua pergunta, inté vô te convidá pra ocê ajudá a me amarrá!

- Uai, compade Zeca, é todo meu prazê! Inté vai interá treis veis que ti apadrinho, ne memo? Antão, compade Zeca, vamo aproveitá e tirá a midida dos meus pé pra ancê fazê uma butina bem bunita pro dia do seu casório!

Tonico Teixeira tinha os pés curtos e esparramados, formando um semicírculo. Zequinha Faria pegou caneta, papel e fita métrica. Media os pés do seu compade e cautelosamente anotava as medidas, coisa que outros sapateiros da cidade não se aventuravam a fazer. Eram sabedores de que não encontrariam formas adequadas para aqueles sofridos pés.

- Quando é que fica pronto, compade Zeca?

- Daqui uns 15 dias tão prontos compade Tonico!

Passados os 15 dias, tá lá o velho Tonico na porta da sapataria.

- Pronto, compade?

- Não!

- Pra mode quê?

- Perdi as mididas.

- Antão nóis tira outra, cumpade Zeca!

Tiraram outras medidas e marcaram o dia da entrega. Novamente o desorganizado sapateiro perdeu o papelinho onde anotara tudo. Começou a pensar nos coices, na arrogância e no falatório do compade. Fazer o quê? Numa breve reflexão, lembrou-se de São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis. A solução veio na hora. Pegou um prato esmaltado, um pedaço de vaqueta, afiou a faca, colocou dois óculos no seu rosto magricelo, olhou pra frente, olhou pros lados e falou:

- Seja o que Deus quisé!

Meteu a faca na vaqueta, cortou-a na forma do prato, solou os cortes, colou os saltos e pronto. Estavam prontas as benditas botinas. Parecia um rodeiro. No dia marcado chega o velho fazendeiro.

- Tão pronta as butina, cumpadre?

- Sim!

- Antão dexa eu isprementá, pra vê si é preciso de currigi!

O carrancudo fazendeiro enfiou os pés nas botinas, deu uma volta, repetiu o desfile, parou, olhou admirado pra elas, levantou os olhos em direção ao compade Zeca e admoestou:

- Cumpade Zeca, sê organizado! Num perca essa midida! Ancê tem mãos de fada pra tirá uma midida!

O velho sapateiro, com voz pausada e tímida, respondeu:

- Num tem perigo, compade Tonico ! Enquanto existir prato esmartado pra vendê, num vai fartá midida pros seus pés!

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