Adrem é um ser superior. Ou assim se julga. E não é um
julgamento ao acaso. Ele consegue encontrar razões irretorquíveis,
justificativas imbatíveis para ratificar seu sentimento de ser melhor.
A começar pela sua origem. Adrem nasceu numa refinada fazenda austríaca,
de interessantíssima família recém-alçada à
boa-vida dos novos-ricos; seus pais eram proprietários de vastas e férteis
extensões de terra, gente da melhor qualidade - ao menos assim
se achavam, e, a ser verdade que somos o que achamos que somos...
A própria terra que o vira nascer era das mais prodigiosas do planeta
inteiro. Impossível produto de terreno tão abençoado não
se distinguir, por essência, dos demais. Adrem estava plenamente convencido
do apogeu em que se instalara. E não admitia que lhe fizessem qualquer
tipo de comentário - questionamento, então, estava fora de cogitação.
Era intocável, encastelado em sua autossuficiência de semideus.
Algo que exacerbava seu ódio descomunal aos inferiores seres era ter
que conviver com vermes, essa gente pequena, feia, mesmo horrorosa, que não
tinha a menor ideia do que era nascer em berço privilegiado; essa
gente podre, que insistia em contaminar o mesmo ar que ele respirava; essa gente
insignificante, que se alimentava de restos e se virava em adubo, sem perceber
que fora esterco toda a vida.
O tempo que passa para todos, exigindo movimentos e decisões, ainda que
parecesse lhe pedir licença, também foi passando por Adrem. A
maturidade se fez presente em nosso pedante herói e este teve que deixar
a família e as poucas amizades (que eram mais capachos que amigos - meros
coadjuvantes de sua vida perfeita).
Tem início a longa viagem de Adrem. Transportes luxuosos, obsequiosos
criados a lhe dedicarem os mais ínfimos cuidados e atenção
integral. Muitos vassalos gratuitos abaixavam-se à superioridade que
espirrava por todos os poros daquele ser, esquecendo-se até mesmo de
si próprios, anulavam-se, para serem o que Adrem gostaria que fossem.
Naturalmente, havia os que resistiam e se recusavam a prestar-se a tão
vil papel. Eram rechaçados por Adrem e, por conseguinte, massacrados
pela grande sociedade, escrava das vontades do neurótico austríaco.
Não foram poucos os esmagados. Mesmo entre aqueles que o bajulavam, não
raro alguns cansavam-lhe a realeza, e o destino era sumário: eliminação
total.
Adrem estava no mais alto grau de sua particular escala de valores. Iria iniciar
a viagem mais importante da sua vida. Num lauto jantar, requinte e ostentação
aristocrática ditavam o clima daquele glorioso ponto de partida. Colegas
à altura de seu brilho, talento e riqueza eram seus companheiros naquele
momento. Finíssimos vinhos importados reforçavam em distinção
as roupas, que mais flutuavam que vestiam os corpos daquela gente que partilhava
ambiente tão seleto.
(Na verdade, nem tão seleto assim - sempre havia um bicão
que conseguia pular o muro que separa os ricos do mundo real. Assim, facilmente
se detectavam: um cronista social, pobre de berço mas bajulador da fina
casta; uma sorridente madame, "burra como uma porta", mas casada
com algum rico industrial, fabricante de fumaça; a amiga do amigo do
primo da empregada de confiança, que dera um jeito de entrar e derramava
seu charme fácil sobre algum casacudo carente e safado.)
Mas Adrem estava compenetrado demais em sua missão para dar cartaz a
mesquinharias dessa natureza. Ignorou a todos e se voltou ao seu objetivo: começar
a grande viagem. Os primeiros passos foram de um prazer, de uma delícia
indescritível. Deslizava mais que andava; flutuava mais que caminhava.
Degustava cada suspiro gemido de satisfação que provocava a sua
nobre passagem. E o melhor: a paisagem era-lhe particularmente cara - um verme
sequer notara, nem mesmo amontoados à beira da estrada, como costumam
ficar, eternos pedintes.
A segunda etapa da viagem pegou Adrem um pouco de surpresa. Rápida demais
para quem vinha se deliciando a vagar por entre cenário tão ameno.
Fizera-se escuro o caminho, agora, e, embora ainda suave, sentia maior velocidade
e certa perda de controle das ações. Na certa, alguma turbulência
sem importância, a tornar a excursão mais emocionante.
Edram fizera sua primeira parada. O amplo ambiente em que se encontrava brindava-lhe
com a companhia de convidados, velhos conhecidos de mundos de luxo e de riqueza,
ainda que lhe parecessem meio destoados, ali. Definitivamente, algo estava errado.
O austríaco sentia-se fatigado. Seu maravilhoso corpo de deus grego apresentava
sinais de cansaço e sua finíssima roupa estava um tanto amarrotada.
Súbito, Edmar recebeu o primeiro golpe. Uma torrente ácida arrancara-lhe
grunhidos bem pouco condizentes com sua digníssima posição
social. Nacos inteiros de seu corpo eram despedaçados e ele sentia-se
decompor e ser misteriosamente sugado para baixo, enquanto outras partes de
si - as mais nobres - entravam em processo de metabolismo, associando-se a partículas
de energia, que partiam, via expressa, a outros mundos.
O cérebro de Demar, entretanto, seguia viagem, ligando-se a outros corpos,
bem pouco dignos de sua companhia. Mas, se tivesse aprendido a se observar com
mais cuidado e olhasse, naquele momento, para si próprio, poderia ver
que não estava mais em condições de reclamar para si qualquer
dignidade.
Eram-lhe sugadas as últimas gotas que ainda poderiam lembrar a atrevida
figura que fora, vida inteira. Drame estava reduzido a um bagaço disforme,
num tubo rugoso que cada vez mais o espremia e o misturava a seres abjetos.
O olfato apurado de Radme detectou, a princípio quase imperceptível,
depois de forma cada vez mais incisiva, um odor forte característico,
que o ajudou a identificar com exatidão onde estava.
De repente, sentiu uma forte pressão, que o empurrava para adiante, no
meio daquela gente desprezível, que o envolvia por todos os lados. Era
mesmo difícil distinguir onde terminava Darme, onde começavam
os outros, tão entranhados estavam.
Marde era a perplexidade viva (ou semiviva), com relação ao desfecho
de sua viagem, e recusava-se a utilizar seu privilegiado cérebro para
tentar entender aquela inimaginável situação. Sua mente
estava um torvelinho. Não continha sua impaciência e ansiedade
de ver todo aquele aperto, aquele empurra-empurra acabar, aquela maldita escuridão
dissipar-se e ele voltar a reinar absoluto, acima de todos.
A pressão insuportável esmagava-o e o impelia para a frente. O
horrível cheiro que exalava aquele canal fétido o deixava tonto.
A mescla de suas entranhas às de tantos companheiros deformados enchia-o
de horror e ódio.
De repente, a luz. O fim do longo e torturante túnel e a intensidade
do sentir-se livre. A luz penetrou também no que restou de seu conturbado
cérebro e, num átimo, entendeu tudo. Compreendeu que de pouco
ou nada valera a vida de glórias e fausto que tivera antes. Que os valores
que lhe preenchiam o espírito eram-lhe vãos, naquele momento.
Que os companheiros faziam-se iguais naquele instante extremo, estavam impregnados
em seu corpo e, junto com eles, nada mais seria que o fedido adubo, no meio
do mato, atrás da mais reles touceira, à beira dalguma anônima
estrada.
E Merda compreendeu, finalmente, o seu destino e sua (por ele) tão temida
igualdade aos mais insignificantes e inexpressivos estrumes da terra fértil
que o vira nascer.