Desce. Descendo...
A caixa metálica estaciona sem ranger, ao contrário das suas
ancestrais movidas a cabos de aço e roldanas mal lubrificadas. Milagres
da Santa Tecnologia. Entretanto, quando precisa parar um ligeiro solavanco ainda
continua. Nada que anarquize suas mechas resplandecentemente negras tão
bem produzidas durante as horas e horas de vaidade. Espelho, sei que a inveja
de mim um dia ainda lhe mata, mas confessa: existe alguém mais do que
eu? Uma voz digital, amabilidade irritante, perfeita imitação
de mulher, ousa anunciar-lhe o completamente desnecessário: em qual dos
centos mil pavimentos ela estacionada. Pois se o painel eletrônico da
caixa já executara a tarefa, ao piscar luzes e acender setas, antes mesmo
que a porta silenciosa se destrancasse em duas partes ou a voz falsamente feminina
abrisse a boca!...
- Sei em qual das muitas antessalas do Inferno Center Residence eu estou, boçalidade!
Economiza placa de áudio comigo. Esta voz de mocinha bem educada que
lhe instalaram me mastiga os neurônios, se ainda não possui sensibilidade
feminina bastante para perceber.
Nariz empinado, postura característica de quem se coloca acima e além
dos outros, os alheios, pisa no corredor. Os pés elegantemente calçados.
Estreita passagem revestida com as preciosas e raras areia branca e conchinhas,
durante séculos, dizem pesquisadores, muito comuns na Superfície
em acidentes geográficos batizados "praias". Como teriam sido?
Enquanto permite-se imaginar, a alma ganha algum calor. Por vezes, dias em que
menos algoz consigo mesma e com outros em sua órbita, flagra-se. Interrogações
densas, filosofias... É quando a anêmica fagulha do humano que
ainda lhe habita ameaça enfogueirar labaredas altas como penhascos, o
que significaria seu exílio profissional, caso não as apagasse.
Mas, sempre ótima aluna das técnicas utilizadas na degola dos
Sentimentos-Retrocesso, ilegais na Sociedade Pós-Sobrevivente. Portanto,
sufocar-se para continuar sufocada no Ofício pelo qual nutre especial
nojo: Mãe-Aluguel de pirralhos que nunca foram filhos seus. O que se
há de fazer? O ordenado ao fim de cada trinta Dias Laborais justifica
tudo.
Onde a necessária disposição para caminhar corredor afora
até o apartamento? Nenhuma. Bem ao contrário. Aquela reta quase
infinda, arenosa, trinta e oito graus, desiluminada... Enche os pulmões.
Infla as bochechas, expulsa o ar. Caras e bocas. Profundo tédio, por
rediviver as cenas de todos os dias daquela vidinha pardacenta, insípida.
E ainda a obrigação de marchar léguas naquele beco até
o cubículo, três cômodos cedidos pelo Estado enquanto me
mantiver cem por cento produtiva no Ofício?! Necessário apaziguar
a negra e umbilical revolta, nunca se habituara ao feroz calor do subsolo. Algum
bicho, para viver entocada? No entanto, fazer o quê? Se inconfidência
é pena capital!... Melhor abrir e revirar sua bolsa à procura
da tranquilidade perdida durante um dia qualquer no passado, na amaldiçoada
floresta do cotidiano. Batom, não; preservativos... como é mesmo
sentir desejo ?; absorvente... mas o sangue do mês já escorreu,
estou seca; fragrâncias para o corpo... presentear-me deliciosa para Seu
Ninguém, raros homens se conservam viris num mundo cuja tísica
taxa de natalidade é dogma divino, salvo-conduto para o Nirvana, e relações
sexuais apenas se o Estado expedir a Autorização Para Um Orgasmo
De Casal Estável Por Quinzena? Aqui está! Desliza suave a escova,
ondulado e brilho. Movimento brusco, todo o cabelo para a direita, o mesmo ódio
de sempre se faz imortal. Lombriga famélica. Por entre as pernas, embrenha-se.
Devora-lhe as entranhas e encontra guarida no coração, muito além
de simples músculo estriado que pulsa e pulsa e pulsa e pulsa e pulsa.
É um verme, tanto ódio. Desde quase sempre parasita sua alma.
Mas até que ela gosta. Às vezes é doce o fel que, volta
e meia, volteia-lhe no céu da boca.
- É vida de gente tamanha fadiga, todo o dia?! Ainda preciso vencer
quilômetros e areias, corredor do Cão, antes de chegar ao compartimentozinho
mil setecentos e dezessete... Subdividido em cômodos, até parece
uma residência.
No fundo da sala, cortina veludo se abre. Recolhe-se aos bastidores. Ele surge
do quarto e espera os aplausos, que não se fazem presentes. Inexiste
plateia. Antes de executar ao piano a eterna música, antigo réquiem
grotescamente composto por seu pai até certo dia vivo, veste farrapos
sebentos em torno do pescoço, arremedo de cachecol para protegê-lo
contra os suores frios. Supostos ou reais? Irrelevante. Perseguidores inflexíveis,
eles. Iguais a praga de mãe quando mortalmente ferida em seu amor por
um filho ingrato. É tanta a febre... Tanta!... Os quarenta graus, pouco
mais ou menos, nunca abandonaram por completo seu corpo irresistente, seu corpo-graveto,
cupinzeiro de moléstias. E alucinações todo o santo dia.
E ainda piores nos dias consagrados (embora o Código tenha varrido as
sacralidades do Calendário Oficial): manifestam-se em horários
regulares. Às seis, doze, dezoito e vinte e quatro horas. Pontualmente.
Sem atrasos, nenhum segundo. Muito mais intensas quando os festejos de São
Lázaro, ocultos porque proibidíssimos, se aproximam. Hoje é
um dia assim. É quando ele enxerga num dos vértices da sala, o
velho nigérrimo. Banquinho de madeira, cachimbando, sorriso sem dentes,
o vira-lata sempre à direita, deitado, esquálida companhia. A
projeção de papai no futuro, se no futuro ele houvesse? Acaso
vivo, humor e inteligência ainda seriam o mais belo desenho de sua personalidade?
Não merecia ter sido suicidado, mas... apenas os covardes, como aquela
mulher, se qualificam para a sobrevida nesta galeria de esgotos que é
a Sociedade Pós-Sobrevivente. Justiça! Estivesse a um preço
razoável eu a compraria às dúzias, para guardar no bolso
em caso de uso imediato! Papai... estradas ainda a me ensinar... Persigna-se
durante o lamento surdo, os olhos para cima como quem procura estrelas, planetas
(não necessariamente habitados, porém mais humanos), respostas.
Mas o teto do apartamento, eis tudo o que há. E nele o pai. Suspenso
por uma corda no pescoço quebrado, nó carrasco, o chorume pingando
do corpo ao soalho, fetidez. Papai! Gostaria ele respondesse, embora saiba há
muito: o cadáver insepulto compõe a decoração, móveis
e utensílios, ativo imobilizado. Excentricidades da mulher.
Antes de maltratar o piano, o mesmo rame-rame que o instrumento não
aguenta mais ouvir, antigo réquiem grotescamente composto por seu
pai até certo dia vivo, acomoda-se na banqueta, fixa o interminável
olhar arregalado no preto e branco das teclas, algumas em silêncio, implorando
conserto. Que jamais. Por longos minutos, a indecisão: destruir mesmo
as várias teias que as minúsculas aranhas edificam entre o instrumento
musical e as carnes necrosadas do pai? Melhor não, como se nem estivesse
vendo. Meu tempo é substantivo, concreto demais para desperdiçá-lo:
estes bichos cheios de pernas sempre reconstroem suas tapeçarias para
enredar insetos, rigorosamente idênticas às anteriores, mesmo projeto
arquitetônico, quando demolidas. A fumaça, nuvem fétida,
cachimbo do velho, flutua e dança, bailarina no ar. Ocupa o território
recanto da sala, fantasmando Ascende e faz acender os archotes fixos nas paredes
vermelhas. Ainda mais quente o inferno doméstico, agora. Nem por isso
seus calafrios ardem menos. Os delírios tampouco. Ouve comigo, preto!
Mais uma das minhas certezas intuitivas, você as conhece bem. Distante
ainda, mas com certeza um par de sandálias esmagando as areias do corredor;
cabelos em ondas inquietas na percussão exausta dos passos; no íntimo...
vê, preto... um sentimento, que é caverna e frio, rasgou trincheiras
dentro dela. É ódio. Coisa antiga, raízes profundas...
É ela! Só pode ser! Você está rindo do quê?
Não é o desvario das dezoito horas, estou realmente ouvindo a
mulher. Cale este riso banguela! Apenas mantenha a fumaceira, as tochas acesas...
Nós sabemos que estamos os dois aqui para preservar o corpo da necrose.
No entanto, ele continua a se decompor, e a cada dia mais!
Polegar esquerdo, dispositivo ótico. A porta corrediça se abre,
velocidade quase nenhuma. À sua fisionomia de mulher linda e sequestrada
pelo ódio, que é enormidade e sem disfarces eficientes, parasita-lhe
as entranhas, junta-se a pressa: acaba de brotar, onde o corredor é início,
lá atrás, mais um dos inúmeros ciclones subterrâneos.
E ele grita e corre, e ele voa, ferocidade. Movido pela mais negra fome: engolir
domicílios já agonizantes. Para depois regurgitá-los.
- Quer outra vez tumultuar-me o cabelo tão bem desenhado, ordinário?
Pois hoje você vai saborear um fracasso. A porta já abriu, até
outro dia. E é inútil permanecer aqui fora, assoviando feito assombração.
Tenta novamente amanhã, quem sabe melhor sucesso?
O mesmo cenário incômodo, há meses repetindo-se, como um
videoteipe cansativo. Fecha apertado os olhos para desenxergar, ambas as mãos
pressionam o rosto (talvez, assim, a cabeça exploda para sempre), os
dedos escorregam, esticando a pele, danificando horas de maquiagem. Tons suaves
num esforço inútil em mascarar o espírito medonho. Fazê-lo
parecer agradável. Existe um desânimo, um cansaço sem trégua,
arremessa longe a bolsa. Coragem bastante para tal, arremessaria também
a vida e suas intoleráveis responsabilidades. Estivesse no quarto, oceano
de boas solidões, renunciaria. Sua carcaça ao colchão e
chega! Agora só amanhã! Inteligentíssima saída,
aplausos para mim! Se no dia seguinte vou protagonizar o mesmo circo mambembe
de hoje, de ontem, de anteontem... Solução pra mim, cadê?
Pressiona-se contra uma das paredes vermelhas, deixa-se escorrer lentamente,
alguém me autorize a morte! Quer o corpo o chão adentro, semeadura,
para, quem sabe, broto, renascer. Impossível: o piso é a mesma
areia abrasadora e não movediça do corredor. Mas calma... segura
o leme das emoções, eu. Amassar o vestido por uma fraqueza humana
qualquer? Em tempo nenhum! Antes fingir a agonia está desacontecendo,
o prejuízo é menor. Recompõe-se às pressas (nem
por isso o ânimo lhe diz palavras de coragem), embora o grito (é
choro, é infelicidade, é miséria) sempre amordaçado,
continue a rasgar-lhe a dentadas o peito. Acalme-se... Que mulher de fibra sou
eu? A posse total do menino pelo Governo, a Libertação, está
praticamente. Faltam poucos dias. Uma vez entregue ao Birô de Labores
e Ofícios da Sociedade Pós-Sobrevivente, e após o Rito
de Passagem Para o Mercado... regressa duma longa ausência a alegria de
ninguém morando comigo, tal qual sempre quis depois que ele nasceu! Ou
foi expelido de mim, melhor dizendo.
O filho, mesa da sala, numa cadeira tão fatigada que ranzinza (murmura
rabugices ininteligíveis quando alguém descansa o corpo sobre
ela), próximo à parede do fundo, tão vermelha quanto as
outras três. O filho. Vagueia o olhar pela casa, perdido, sem definir
órbita, até estacioná-lo na capital do seu planeta particular,
o teto. Num caquético candelabro que, osteoporose e cego, não
cumpre suas funções. Seu filho. Em tempos idos enlouquecia-lhe
os nervos aquele garoto liquefazendo-se em lágrimas, um tal de enxergar
e sentir a ausência do pai. Hoje ainda a irritação, porém
menos.
- Muito interessante o teto, filho?
- À vontade, Nascimento. Afinal, esta casa lhe pertence. Minha existência
aqui, sou um fardo desagradável para você.
- Curioso como lhe é difícil...
- Tratar-lhe pelo título "mãe".
- É. Sabe perfeitamente acabei de chegar do Ofício, mas finge
indiferença, sequer me cumprimenta, olhando para esse teto como se eu
nunca em sua vida.
- Verdade. Sobretudo com os calafrios que sinto, apesar do cachecol.
- Enriqueceria o diálogo se falasse coisa com coisa. Que calafrios?
Que cachecol? Delirando outra vez, igual todos os dias... E tira os olhos desse
candelabro inútil. Precisamos...
- Conversar? Mas não é um amontoado de lâmpadas, ainda
que lhe desgoste, já disse. Estou observando o corpo enforcado de papai,
morto por você.
- Não há ninguém suspenso no teto, filhinho ridículo
da mamãe... Além do mais, foi suicídio, conforme a perícia...
- Induzido pelas mágoas que você lhe impôs, nós bem
o sabemos. E chega de palavrório estéril, pedradas que não
atingem janela. Vê os archotes acessos? É o sinal. Preciso tocar
no piano o réquiem escrito por papai.
- Archotes? São arandelas nas paredes! Piano? Nunca tivemos nenhum!
Por isso, às vezes, me pergunto o motivo pelo qual não lhe abortei
quando tive a chance. Mesa! Mesa é o que existe em sua frente! Entendeu,
maluco insuportável?
- Esquece a tentativa de me enlouquecer... Aí ao lado... O preto está
rindo de tanta insistência.
- Isto aqui?! Ora, não passa duma velha escultura... Horrorosa, inclusive.
Representa um homem sentado, nada além! Definitivamente você não
está no seu juízo. De amanhã em diante sua loucura terá
nova morada: o Instituto Oficial de Desajustados Sociais, lá em cima,
na Superfície.
- Imagino terei assegurado meu direito ao corpo de papai e ao piano, Nascimento.
Só então resolve desviar os olhos, fixos todo o diálogo
no cadáver putrefato, para conceder migalhas de atenção
àquela mulher distante, cuja importância em sua vida, se um dia
a teve, evaporou-se. Sentada quase próxima à porta, areias e conchas
da sala, senhora de palavrório oco. E vê, nitidez inconteste, o
velho levantar-se. Penosamente, arqueado, o cachorro por companhia, cachimbo
e fumaças, arrastando-se em sua direção. Soslaio seca-pimenteira.
No canto da boca um sorriso leve. Levemente malicioso. Mas ela, o alvo, nem
percebe. Gesto súbito, o homem desamarra o pescoço da corda, pula,
firme no chão. Cadáver e filho se abraçam, enquanto o preto
faz um sinal-da-cruz. Os anjos abençoem um carinho tão fraterno.
- Nascimento?
- Sim, filho.
- Aconselho levantar-se. O ciclone vai engolir sua casa. Está aí
atrás da porta, faminto, só esperando. Pela fresta, por baixo,
ele entra. Abre caminho pela areia.
Destruição em segundos. A ventania impiedosa. Morre a guerra
mascarada, não totalmente confessa entre os dois. E nem foi preciso executar
o réquiem. Morre a convivência feita de palavras ásperas,
que nasceu no dia em que o pai dele morreu. Ou suicidou-se?