Texto inspirado num acontecimento real cuja protagonista foi a mulher que pretendeu domesticar meus sentimentos por ela
À Proprietária da Verdade
Neblina densa, mas nem por isso invisibilidade. Quase proíbe a metrópole,
completamente viva estivesse, enxergar aquele vermelho-mágoa acima do
nevoeiro, no firmamento nu, sem nuvens. De horizonte a horizonte, a cor anômala,
meio inexistente. Porquanto estrangeira para a maioria. E tudo, ainda que alguma
vida insista, é aniquilação: os edifícios megalomaníacos
com seus duzentos, mil andares... concreto desarmado, ferragem das vigas à
mostra, tíbias expostas; ali, acolá, veículos ainda agonizando
em labaredas e urros de clemência por uma sobrevida, mas noventa e cinco
por cento carbonizados para sempre; corpos humanos moídos em pedaços
nauseantes. Curioso: sequer abutres. Os raros sobrevivos, alheios como se a
vida permanecesse a mesma ruim que só, em completa indiferença
à mortandade: homens brincam, sem alegria ao menos fingida, pular carniça.
Ou cantam "esta rua tem um bosque que se chama Solidão" em
restos de asfalto. Sem empregos, patrões, horários comerciais,
expedientes... sem o estilo obsequioso e engravatado de comportamento, as mentiras
por causa dalguma cobiça inconfessável... voltar à infância
é esconder-se do trauma. Que toda ruína causa. Mas... criança?
De verdade, de verdade, não há mais. Morreram, elas. Nenhuma para
interpretar a Esperança. Duas bailarinas clássicas, rosas e tristonhas,
dançam por entre cadáveres aos milhões. Mas suas tristezas
é encenação medíocre: o que sentem é... nada.
Três palhaços sem graça, redivivos dalgum circo morto, espetáculo
malabares para mendigar a motoristas defuntos moedinha pelo amor do Divino,
num dos muitos semáforos inúteis. Escassas mulheres restam. Andarilhando
sem destino ou maridos ou louças a lavar, nuas quase todas. Exibindo
seios e vaginas e bundas. Houvesse vento e vento soprasse, tarado, rasteiro,
de baixo para cima, talvez ele arrepiasse as raras saias vivas, pondo à
mostra calcinhas. Atitude que não causaria surpresa nem indignação
femininas, comuns em casos assim: exibir intimidades aos pontos cardeais e colaterais
da rosa-dos-ventos só significa ultraje para quem ainda possui recato
ou, na alma, recantos. Mas na metrópole a catástrofe decapitou
também os melhores sentimentos não mortos pela vida selvagem da
modernidade. Homens e mulheres sobreviventes, vez por outra, pasmaceira só,
olham para o céu como procurando sem muita vontade de respostas para
a desgraça. Entretanto, o questionamento mais óbvio não
ocorre à mente ou aos lábios: qual o motivo do vermelho onde o
azul deveria? E o nevoeiro? Silêncio. Preferem permanecer permanecendo.
Como se absolutamente nada. Brincar, dançar... Quanto vale o meu show,
prezadíssimo senhor motorista? Ninguém vomita com a fedentina
insuportável da morte por toda a cidade. Carniça que atrai não
varejeiras nem ratazanas. Mas alguns metropolitanos esfaimados, sim.
No passeio da única construção sem ferimentos, palhoça
despretensiosa, à direita daquilo que fora o maior arranha-céu
comercial do Planeta, ele aguarda paciente o exército a cavalo que, pelos
termos apalavrados a fio de bigode, trará os quatro. Quem espera sempre,
cansa: senta numa rede cujas extremidades atadas a escombros. Dedos esquerdos
brincam, filhotes felinos em novelos de lã, com o fruto mentiroso da
macieira, árvore há muito extinta: joga-o para cima, mas a gravidade
insiste em contrariar, segura com firmeza e sorri e acaricia para repetir o
movimento. Inseparável charuteira ao lado. Abre, escolhe, aroma, é
dos bons, acende, saboreia outros miligramas de nicotina enquanto esfrega pés
nus. Ao corpo permite balançar-se levemente. Move os lábios e
gesticula para ninguém, sem esquecer a maçã de gesso pintado.
No canto da boca, o charuto: exercita a reação mais oportuna no
caso deles, os quatro, recusarem-se a falar tudo quanto sabem. Lá uma
vez ou outra, não sem aborrecimento, coça e enterra unhas em suas
asas gigantescas à cata dos carrapatos impertinentes. Quase nunca os
encontra, mas quando sim, mastiga. Engole. Saborosamente. Porque o gosto da
vingança. Espera azucrinante! Tardam em demasia! Calma, eu... Agastar-me
com pouco é até iniquidade com a Providência, se já
não trago comigo os volumes e volumes de obrigações do
Princípio. Necessário pôr focinheira nessa minha profunda
antipatia à expectativa inerente à espera. Estou dizendo odeio
a última tarefa que me foi delegada? Em absoluto! Constituir-se-ia irremissível
transgressão à Lei. Nos termos das Escrituras. Mas o fastio...
Ah, Cristo... ao menos estes ácaros deixassem minhas asas em paz...
Aos poucos, a partir da Principal Avenida e de logradouros menores que nela
deságuam, homens se aproximam lentos, quase inaudíveis, sobre
seus cavalos. Como se natural, as patas animais, obedecendo a ordens cavaleiras,
utilizam corpos falecidos e destroços arquitetônicos à guisa
de pavimento das ruas. Muitíssimo lógico pisotear vísceras
mortas, estilhaços de membros. Pois se não têm mais qualquer
utilidade... Sentimentalismo? Bobagem!
Agora já é possível perceber-lhes, guerreiros, feições
de tédio. Apesar de todo homem, quando em corriola, assumir tendência
ao gargalhar fácil e ao patati-patatá sem argamassa. Previsível,
entretanto: é apenas mais uma carnificina, em tudo idêntica às
anteriores. Quase silenciosos, eles. De longe em longe algum murmúrio
mais ou menos perto, sumido, como se entredentes. Fadiga por causa da campanha
militar na qual estão envolvidos? À medida que avançam
fica muito nítida no ar a fetidez que os acompanham a ambos, cavalos
e cavaleiros: morrinha, esterco, suor homicida, sangue metropolitano tingindo
mãos e espadagões embainhados. Fedor que ele, sossegado na rede,
finge suportar. Disfarça, esfrega com os dedos o nariz, multiplica a
quantidade de fumaça produzida pelo charuto para, quem sabe, reduzir
um pouco o incômodo. O êxito é nulo ou quase. Ah, pudesse
desalgemar-se da obrigação... Nada pode fazer, é indispensável
a conversa última e definitiva com os quatro. Portanto, melhor fingir
está tudo na mais perfeita harmonia, inclusive porque o general do exército
está muito próximo, bem como sua imensidão de comandados.
- Ora, ora, alvíssaras!... Prezadíssimo Átila, o Huno!
Demoraste em relação ao horário aprazado entre nós,
os dois. Nada que deprecie tua palavra diligentemente empenhada, ressalte-se.
- Ih... é hoje... Qualé, mermão? Vai entrar numa de esculachar
minha pessoa aqui, balangando beiço com este falatório afrescalhado?
Gabriel, Gabriel... presta atenção na vida, Gabriel...
- Escusa-me acaso te induzo ao exaspero, posto que do Senhor sou humílimo
arcanjo. Inobstante almejar prestígio de maior vulto junto às
hostes celestiais, que se há de fazer? De arcanjo não sairei.
É a vida... A vida, Flagelo de Deus...
- Cai na real, cumpadi... A existência começou a ir pra vala hoje.
Ou não viu ainda que era uma vez metrópole?
- Versemos sobre tema distinto desse, proponho. Trouxeste-me ilesa a encomenda,
quero crer.
- Nos conformes. Trato é trato. Os três camaradinhas e a moça
estão atrás de você, mané.
- Céus! És afamado pela notória destreza. A tal ponto,
todavia, beira a inverossimilhança.
- Puxa-saco...
- Com a necessária vênia: um admirador, tão-somente e não
mais que, estimado Átila. Qual teu destino doravante?
- Barbarizar o Império Romano do Ocidente. Vai ser um sapeca-iaiá
brabo até o imperador pedir arrego, tá ligado? Diz que é
chegada a hora, causo que estamos em quatrocentos e quarenta e sete. Tem isso
lá nos livros de História... sacumé: tá escrito,
melhor cumprir e...
- Rogo tenhas a devida cautela, porquanto Deus não escreveu o roteiro
da História, apenas o argumento. Donde se conclui que o Destino...
- ...E aí, neguinho pensou que não, ó eu dando aquele sacode
no Vietnã! Com Ho Chi Min e o escambau!
- Vai com Deus, pois.
- Você fica com Ele.
- Não esquece: passa cá, quando de regresso. Devolver-te o quanto
antes os quatro é premente necessidade.
- Asta la vista baby parceiro.
Só então se levanta da rede. Agita as asas como quem espana poeira
de móveis domésticos, abandona a maçã, cruza os
braços, muda constantemente na boca a posição do charuto
interminável. Fastio. Encara um a um com descaso, suspira fundo, olhos
vagarosos no céu ensanguentado.
No cômodo único, tudo é simplicidade. Alguns tocos velhíssimos
pretendem ser bancos. Nas paredes, frágeis, um sem-fim de espadas nos
mais variados estilos. Nenhum dos quatro se impressiona mais: sabem, pelas tantas
idas e vindas à mesma palhoça, tratar-se da coleção
particular do arcanjo e que ele só vai satisfazer-se quando conseguir
a de Átila, carniceiro e seu protegido.
- Estou esperando. Falem.
- Outra vez a mesma coisa... Nada mais temos a acrescentar, tudo já foi
dito e repetido à exaustão! E com licença, ainda temos
uma vida inteira para viver, portanto... O quê? Não adiantam os
argumentos? Haja... Muito bem, vamos nós contar a velhíssima história:
a casa acordara muito tarde. Flutuava nos cômodos, e invadia nossa alma,
um forte pressentimento de tragédia sobre o qual não ousávamos
mencionar. Passos hesitantes, percorremos todos os metros quadrados da casa,
exploradores em território inóspito. Como se nunca tivéssemos
vivido infância e adolescência sob aquele mesmo teto. Demoramos
o tempo da eternidade para encontrar nossa localização na geografia
interior, no mundo. Ninguém confessava, mas não nos reconhecíamos
uns aos outros enquanto irmãos. Explicar melhor? Curioso... nessa parte
você sempre acha que estamos mentindo. Mas, vejamos... Enxergávamos
uma vaga familiaridade nos rostos, nos gestuais. Porém... imprecisa como
déjà vu. Medíamo-nos, muito investigativos, em busca
de possíveis lembranças mútuas. O que só veio a
ocorrer quando nos sentamos, mesa de jantar. Ainda assim, paulatinamente, aos
solavancos as imagens emergindo da memória. Mudos por escolha própria
e instinto de autopreservação, poucos olhares diretos, acanhamentos,
engolir seco, taquicardia. Estranha miscelânea de café matinal
com almoço domingueiro estava servida. Foi quando mamãe surgiu
dos interiores da casa e tomou assento entre nós, os cinco. Erro nenhum
no cálculo, arcanjo Gabriel: papai já estava conosco, sua cadeira
mesma de todo santo dia. Sem motivo plausível, rosto congestionado, mamãe
arrancou com força a toalha. Presente de quando se casaram. Heim?! Não,
não sabemos por quantos anos foram marido e mulher. Diz a lenda que vinte.
Ou pouco menos. Continuando: e voaram vasilhas cheias e pratos vazios para todos
os lados. Estilhaços. Levantou-se absolutamente colérica, ignoramos
o porquê, veias do pescoço enormes assim. Coisa horrível
foi assistir, só vendo. A mesa pelo avesso, deposta. Indicador no nariz
de papai, como se revólver. Do presente minuto em diante seremos ex-marido,
ex-esposa; não nos falaremos mais, ouviu bem entendido? Dois estranhos
na mesma casa criando os filhos que nos pertencem. Tudo muito simples. Portanto,
sem contra-argumentações ou lamúrias. Caso insista serei
obrigada a chutar-lhe, e suas tranqueiras à rua. Da amargura? O problema
não me diz respeito: meu amor por você acaba de acabar. Assim mesmo,
no agora instante, como jamais houvesse existido um dia. Nossa reação,
arcanjo? Surpresa. Outra, impossível. Pois se na noite anterior e em
diversas outras podíamos ouvir cristalinamente a borboleta do sexo bater
asas e voar a casa inteira a partir do quarto deles!... Gemidos. Gritinhos.
Declarações ternas, eternas, sem nenhum segredo. E o nheco-nheco
da cama. Aquele enorme urro no fim, corpos selvagens e famintos um pelo outro.
Em seguida, risadas arfantes. Até brincávamos entre nós:
assim, qualquer noite um desmaia... Ele? Bem... o ultimato imprevisto franziu
muito a testa do nosso pai. Apequenou os olhos como se míope. Sempre
redesenhava assim o rosto quando para emoldurar estranhamentos. Manteve-se na
cadeira tentando com os olhos invadir a alma daquela mulher, mamãe, que
até no dia anterior era-lhe íntima. A arrogância sem maiores
esclarecimentos, contudo, fazia dele um pensativo. Um pesaroso. A boca semiaberta,
buscando palavras. Entreolhares, e a mesma intuição cochichou-nos
em segredo: daquele modo ele permaneceria para o resto do que restasse de sua
vida. Imóvel, e profundamente triste como as zonas abissais dos oceanos,
e sentado. Se em algum de nós ímpetos de protestar vieram à
garganta subindo pelas entranhas, mas que absurdo é este mamãe,
faltou coragem. Medo. O semblante dela sempre meio militar, meio cardeal do
Santo Ofício. Heim? O que aconteceu depois? Ah, Gabriel... Repetimos
inúmeras vezes!... Despejou em cada um, a conta-gotas, o olhar insolente
e o sorriso mais lindo que nossos corações já puderam enxergar.
Perfeito, filhotes! Agora nosso mundo está risonho, dançando conforme
a harmonia que redigi e solicitei aos anjos. Qualquer de vocês me sirva
taça generosa daquele porto atracado há dezenove anos na adega,
esperando ocasião excepcionalmente feliz. Obedecemos, está claro.
E quatro foram as doses para comemorar sozinha. Vampirescas ou românticas,
luas e luas decorreram. O tempo, Gabriel, tem muitas asas, bem mais largas do
que essas em suas costas. Voa tão zunindo!... Mas tanto que ninguém
o percebe exatamente, percebe? Pois ele passou muito rápido em nossas
vidas rotineiras, manufaturadas à base de estudo, trabalho, namoro, comemorações,
tristezas... Sem que déssemos conta, nós, os filhos, tivemos diluídas
aos poucos e completamente as recordações da importância
que papai teve em nossas vidas, se é que... Ele teve mesmo alguma? Até
dos traços fisionômicos... difícil recordar. Por força
do cotidiano, passávamos, querendo ou não, por um objeto estranho
na sala. Impossível era entender o que representaria aquela escultura
tão bem talhada, quase humana, numa cadeira. Algum capricho de mamãe,
concluímos por aceitar a hipótese. A mais viável. Além
do que, inexistia tempo para gastarmos com exercícios inúteis
de adivinhação. E um certo risco de aborrecermos nossa mamãezinha.
Qualquer coisa humana naquela obra, embora o tempo tivesse provocado fungos
no corpo da estátua. Não, Gabriel... não lembrávamos
mais dele, o pai. Já o dissemos!!! Certa noite mamãe nos intimou
meninos ponham agora mesmo esta coisa imprestável no barracão
de quinquilharias. Séculos depois, adolescentes ainda porque a fase adulta
nunca conseguimos atingir, perguntamo-nos e também a ela a respeito da
lenda que corria na família: um hipotético pai teríamos;
sem esclarecimentos sumira-se. Nenhum de nós, os quatro, encontrava substância
nas estórias alastradas por tios, primos... Que ele fisicamente seria
macilento, o temperamento esquálido... Ao mesmo tempo, procurávamos
razões para o choro em soluços que passamos a ouvir, a cada dia
mais alto, vindos do barracão. Exatamente, Gabriel, o de quinquilharias.
Mamãe os escutava também. Visível seu esforço para
ignorar, fazer de conta que. Bobagem! Esqueçam, é melhor para
todos. Logo passa, e basta de tanta conversinha jogada fora! Não passava,
porém. Daí resolvemos tornar ao barraco. Curiosidade, e extinguir
a inconveniência: como adormecer, lamúrias machucadas estuprando
tímpanos, desarrumação dos pensamentos? Fomos. Entramos.
A escultura, na cadeira, volatizando-se: em fuga por onde outrora janela, numa
velocidade impressionante, a matéria de que era composta. Observação
mais atenta mostrou aquilo não poderia ser apenas coisa decorativa, capricho
materno, porque sangue também estava... gás. Bailava no ar, feito
fumaça de cigarro. E construía na atmosfera um céu avermelhado.
O corpo dele, em moléculas ora dispersas ora densas, envolveu a cidade.
Manto fúnebre. Mágoa, certamente. Mas não nos pergunte
o motivo pelo qual tínhamos semelhante convicção. Névoa
nem muito fina nem muito grossa, porém triste. Só então
descobrimos: papai. E as imagens da briga unilateral retornaram de assalto,
apossando-se. Mas não o que ele representou para cada um de nós.
Ainda hoje ignoramos sua importância, seu nome, o quanto de herança
genética temos em nosso DNA.
- É... abdico de insistir. Preferem a mentira, a contradição.
Tanto pior assim para vocês.
- Arcanjo Gabriel!
- Átila! Já de volta? Cá dentro, sócio! Entra e
leva todos de volta. O caso é mesmo insolúvel!
- Vou aceitar o convite! Até porque está chovendo uma chuva estranha...
Parece sabe o quê? Lágrima de homem rasgado de dentro pra fora!
É mesmo o fim do mundo... E olhe que ainda falta invadir o Vietnã.
- Não te esquece, entretanto: pelo acordo, tua espada agora é
parte de minha coleção.
- Será?