Desde quando o homicídio por ela encomendado tornou-se crime mesmo,
jurou para si nunca mais sairia de lá, castelo dos seus sonhos e masmorra
de sua alma, mansão esquecida num extremo de enseada, aos humores do
oceano quase sempre intempestivo. O inquérito na Homicídios permaneceu
inconcluso para sempre até ontem, graças à competência
profissional do pistoleiro Zejão e às fortes influências
políticas que seu falecido esposo, vítima, a ensinara cultivar.
As fundamentais omissões e meias verdades compradas com muita calma.
E muita cama. Corpo e língua maravilhosos que um dia possuiu. Mas os
filhos, todos eles, seja pela tensão matrimonial nas semanas que antecederam,
seja por seu comportamento algo teatro logo que o cadáver foi descoberto
com cinco projéteis trezentos e oitenta, seus filhos optaram abandoná-la.
Alguns adolescentes, outros ainda na infância. Não tinham da dúvida
nem mesmo a sombra. Apenas por causa desse efeito colateral fora dos cálculos,
amargura causada pelo abandono de quem se ama é um cancro sem remédio,
por causa disso o arrependimento não tardou. Talvez menos ruim tolerar
por mais algum tempo aquele marido asqueroso, que fedia a vagina de puta quando
o término das madrugadas o vomitava casa adentro, sempre chorando remorsos
pelas traições, jurando paixão infinita. Tivesse agido
assim evitaria a infinitude de conviver diariamente ao lado da ausência.
Seus verdadeiros amores pegaram a estrada, mala e cuia. Mas... entardeceu, impossível
revogar a sentença de morte, a compra do assassinato. Cinquenta
anos bateram asas rumo ao Inferno. Sentia-se morta pela metade.
De todos os vinte e sete cômodos erguidos em épocas diversas, desde
quando seus ancestrais levantaram os pilares... estilos os mais variados e sem
qualquer lógica arquitetônica ou funcional a ponto de externamente
assemelhar-se a vários caixotes encostados uns nos outros e sobrepostos,
polígono irregular, no Palacete Entristecido (assim batizara o casarão
após a tragédia doméstica) o que sua mágoa mais
frequentava de todos os vinte e sete cômodos era o quarto maior,
onde coabitavam ela e suas misérias emocionais, numa triste harmonia.
Universo paralelo, testemunha dos orgasmos verdadeiros dele e dos interpretados
por ela; do exato instante em que a certeza serem casal feliz, ilusão
apenas cultivada pelo marido, sofreu o primeiro sangramento. Leve, porém
incicatrizável. Gangrenou da maneira mais fétida possível.
Consequência, a vida dele amputada a tiros. Iniciaram-se então
os fantasmagóricos dias... e dias... e dias... puro infortúnio
traduzido em poeira grossa abraçando o mármore do piso, como um
tapete. Aquele pó amarelo era o ontem, estado sólido, sobre o
criado-mudo... a penteadeira... a cortina... o lustre... Teias num lado da cama,
ainda descomposta e fedendo a marido, no qual por muitos anos sua vítima
se fazia dormir, otimismo de menino, sempre hipnotizado pelo fogo do próprio
amor sincero; nalgumas peças íntimas, vadias no lençol,
no travesseiro, penduradas na cabeceira... as mesmas que sempre a deixavam aos
olhos dele muito mais nua do que se nua estivesse; nos lábios sem outra
boca disposta ao beijo; nos seios e vagina carentes de língua masculina
o bastante para provocar marés e ondas de paixão. Que sacudiram
num passado muito longínquo, saborosos maremotos devorando seu corpo
na única vez em que sentiu atração sexual por alguém.
Tudo poeira. O quarto. Outros meandros da casa sem fim eram mesmo quase incógnitos,
e já se esquecera, por exemplo, havia aposentos coloridos, reservados
apenas aos carrinhos e bonecas das crianças sem cor após o homicídio.
Filhos... Por que tamanha crueza comigo?!... Perguntassem!... Largaram-me aqui,
morte a conta-gotas. E minhas justíssimas razões? Mãe,
queremos saber, por favor sem mentiras, as causas do assassinato encomendado...
Ora, santo Deus! Qualquer ódio, mesmo quando não tem todo o veneno
da Serpente, tem raízes e tentáculos que só Jesus! Até
jamais, senhora... Ou talvez voltemos no último dia. Quando a solidão
encomendar sua morte vagarosa e dolorida, escreva-nos para que possamos presentear-lhe
e quem sabe até flores pelos infinitos anos que nos deixará sem
pai a todos nós.
O pavor (não, mais: fobia mesmo) sem remédio que impunha o jardim
japonês também a matava aos poucos. Houvesse câncer no coração.
O jardim maldito. Arquitetado mediante enorme carinho e paciência por
ele ao longo dos seus últimos anos vivo apenas para presenteá-la,
transformou-se à vista da escassa vizinhança em marca inequívoca
dum presumido bom gosto e sensibilidade daquele casal com certeza harmonioso.
Mulher pusilânime, semente genética fazendo nascer flores negras
desde as mais remotas gerações da família, nunca teve forças
para nem mesmo pôr os pés no horto. Paranoia? Seja! Manifestou-se
tão logo a voz requintada e ao mesmo tempo sombria de Zejão informara,
telefone, "serviço nos conformes, madame. Nenhuma chance de testemunhas.
Qualquer noite passo aí... A outra parte do pagamento". Sim, o medo
patológico da beleza florida daquele lugar. Porque à margem duma
das várias estradinhas pavimentadas, seixos cuidadosamente escolhidos,
yoga sobre gramíneas, meio lótus, outono e o noturno vento frio
soprando as fragrâncias da praia, a ideia relampejou irresistível.
Na verdade, e ainda hoje a impressão insiste, foi qualquer coisa semelhante
a uma voz amiga, porém sem rosto definível, sussurrasse "é
tão fácil o remédio para essa vidinha, esse inferno...
Amor, mata ele! Profissionalmente, lógico". Seu pensamento observando,
olhos de peixe morto, as carpas no lago, principiou a avaliar numa velocidade
incomum as diversas alternativas possíveis.
Claro! Ótima a solução aconselhada! Lábios e pupilas
sorriram quando a memória lembrou-se de Zejão, que, vinte e poucos
anos lá atrás, ela mocinha e virgem, lhe prestara um serviço
da mais alta qualidade. Desde a juventude sentimentos perversos costumavam,
na solidão das horas insones, quando os próprios dedos alisavam-lhe
os mamilos tensos e as intimidades ocultas pelos lingeries, costumavam
deitar-se ao seu lado na cama, sorrisos e perfume agradabilíssimo, sugerir
morte bem paga era troco ideal para contrariedades amorosas. E fazia alta a
madrugada quando, durante um orgasmo sem prazer e sem homem que a comesse, a
mesma ideia se lhe apresentou pela primeira vez, igualmente dourada e
irrecusável. Nem remorso posterior houve. Embora ordenasse morte ao primeiro
amor-desejo a invadir-lhe o peito e ocupar tempo da alma, cuja falência
moral ensaiava seus primeiros indícios. Matar papai. Homem severo e macio
e duro e excitante. Tesão! Porém... Os inúmeros olhares
fêmea-no-cio, as insinuações diluídas em falsa ingenuidade,
sorrisinhos maliciosos, transparências e decotes... Preferia ele ignorar
a mulher precoce, faminta, cujos hormônios incandescentes não a
deixavam em paz. Enxergava apenas a filhinha do papai. Como admitir tamanha
indiferença? Acabou morrendo, fazer o quê? Ótimo assassino,
o Zejão.
Há quanto vivia (ou morria?) sem sair do quarto casal, dormindo e acordando
assombrada pela solidão-vampiro, sem tréguas? Perdera o fio do
novelo no labirinto do tempo. Ainda assim, uma necessidade crescente ao longo
dos últimos meses fazia-se império, mesmo nunca mais repetisse
o gesto: abrir a porta, descer os centos degraus até pôr os pés
na sala maior; vagar casarão afora sem a pressa característica
dos que já traçaram seus rumos; surpreender, acidentalmente, novidades
que sempre existiram. Nunca percebidas, porém. Talvez assim as últimas
palavras das crianças, ininterrupta imagem-tortura, talvez fossem embora.
Perturbar outra! Ao menos... por algum tempo. Lentidão ritual, extraiu
sem ódio as teias que acentuavam sobremaneira suas incontáveis
rugas; com dificuldade (memória, substância volátil...)
lembrou-se onde mesmo habituara-se esconder aquele velho estojinho, maquiagem,
mimo do pai. Carmim nas maçãs murchas, rosa nos lábios
secos, delineador. Rebolado tosco, fora de época. E o luto (seda exausta,
camisola mastigada pelas baratas) desceu corpo abaixo. Aos pés. Mostrando-se,
seminudez, espelho em frente. Seios falecidos, cútis áspera. Espelho,
espelho meu... existe alguém mais horrorosa do que eu? Odiou-se eternamente
por dez minutos. O tempo preciso de tornar a vestir-se, refazer a imagem lamentável
refletida sem misericórdia. Por que reflexos têm este hábito,
verdadeiros demais? Um qualquer de mentirinha-gentileza não resultaria
mal. Urgente, para esconder-se de si mesma, vestiu o longo. Aquele cetim vermelho-sangue.
Jamais usara. Simples pirraça e deleite em machucá-lo, presenteada
que foi pelo coração esposo, irremediavelmente enamorado. Perfumou-se,
meticulosa, como quando se perfumava para beijar o pai quando ele ia dormir.
Fez menção querer escova, lembrou-se a tempo: dos cabelos não
havia mais quase nada.
Salto Luis XV. Toc-toc-toc ecoando no silêncio. Tentativa de elegância.
Quatro, cinco passos. A maçaneta (quando mesmo fora usada pela última
vez?), caíra em preguiças, relutava trabalhar. Mas conseguiu.
Fechou suave a porta, numa lentidão de quem abre segredo secretíssimo.
A necessidade ouvir, com a nitidez que impede equívocos, o clique da
fechadura. Não quis, enquanto trancava seu esquife, o quarto, volver
os olhos para o mundo onde vivera quase toda a vida depois do crime. Uma certeza
sem provas, edificada com pressentimentos malcheirosos, mas nem por isso desagradáveis:
nunca mais retornaria àquele purgatório. Última viagem
pelo Palacete. Morrer. Finalmente. Bailar um padedê solteiro, comemoração?
Ou... antes pelo contrário: e se a morte definitiva resolvesse não
a visitar durante a caminhada pelo corredor, ou quando nos degraus? O Luis XV
ecoava sempre no mesmo compasso silencioso, próprio a quem, pé
ante pé, observa as minúcias do mundo em torno. No entanto, não
percebia relevância nas deformações sofridas pelo corredor
e provavelmente extensivas a toda a casa: não mais a arquitetura retangular;
adquirira feições duma caverna. Umidade... alguns Celsius próximos
a zero... Caminhava, pensamentos tão alheios que cegavam, sobre maciços
irregulares de granito. Ora, se no corredor sempre carpete vinho!... Mas não
via. Das rochas brotavam estalagmites, tais quais troncos grosseiros de árvores
abortadas: assimétricas, sem encanto. Nas paredes, originalmente argamassa
e coloridas com nítidas falsificações de surrealistas ignorados
porque medíocres, pinturas rupestres. Da luminosidade baça, visível
a partir do fim (ou do início?) da caverna-corredor, ventania. Rajadas.
Em ritmo mais ou menos regular. Açoitavam a arquitetura daquela furna
escura. Ricocheteando. Consequência, notas musicais agudas, bagunçadas.
Não raro, redemoinhos. Que direcionavam poeira e vento gélido
para debaixo do vestido de gala, pernas acima. Embrenhando-se calcinha adentro.
Lamber a vagina murcha e há tempos não saboreada. Maravilhosa
delícia reprimida, sentia. O primeiro homem entrando, fazendo, acontecendo,
melando tudo. Lamentável não ter sido papai. Seu urro de mulher
desvirginada voltou à memória. Nos lábios, traços
de sorriso. Resíduos da velha malícia feminina?
O tempo duma vida medianamente extensa ela considerou ter gasto para atingir
as escadas. Descer. Mas duas imagens domésticas fizeram-se obstáculos.
Nó na garganta, peito em colapso, queria chorar, queria fugir. Urgente
o último passeio pela mansão, contudo. Os olhos em panorâmica.
Cujo ponto inicial na antessala, término no jardim japonês. A meio
caminho do olhar, as inúmeras escadarias construídas no passado,
levando a nenhum cômodo. Embora imensas. Algumas para sempre inconclusas.
Os filhos. O esposo?! Pois não deveria estar morto e mastigado por todos
os vermes da terra? Pois aquele estorvo ali, no jardim, jogando dominó
e conversa fora com o homicida pago a peso de ouro. Zejão, seu traidor!
- Filhos!... De volta!... Os anos escoaram e vocês no mesmo tamanho!...
Ou será que... Impossível! O tempo na verdade não andou?!
A resposta foi a total indiferença. Exceto a menina, que por longos minutos
observou a mãe como um delegado que, enquanto ouve o suspeito, elabora
mentalmente a próxima pergunta para flagrá-lo em contradição.
Sorriu um sorriso monalisa, retomou seu tricô. Seria um xale vermelho-sangue,
manufaturado com esmero (mas não carinho), a título de presente.
Os meninos, vários, surdos ao apelo, continuavam impassíveis na
tarefa de organizar o buquê. Flores plásticas, germinadas no lodaçal
das mágoas que o assassinato provocou.
Tamanha insensibilidade a entristeceu. Chamou por eles outras vezes. Inútil.
Sentiu-se insultada como jamais na vida. Desviou o olhar, e à direita,
no jardim, os dois cumprimentaram-na muito sorridentes. Palmas, entusiasmo,
não sem antes entrechocarem as taças. Vinho. Tinto seco. Parabéns!!!
Riram-se muito, sarcasmo que machuca muito. Eram a imagem da felicidade.
- Lembra-se eu disse voltaria para cobrar a outra parte do pagamento? Sei, minha
ideia no começo era mesmo o sabor daquele corpo que você
teve. Mas, tantos anos... a velhice... morri numa armadilha preparada por você...
Então mudei a ideia. E aqui estamos.
Centenas e quilômetros de imagens voaram pela lembrança, e ela
ria e ela chorava, sem o antigo e inflexível domínio que possuía
sobre as próprias emoções. À esquerda, os filhinhos;
à direita, dois fantasmas risonhos: assassinado e assassino, unidos no
intuito de enlouquecê-la. E teria sido obra da insanidade ouvir o uníssono
gargalhante, macabro mesmo, exigindo "morre! Morre!"?
Hesitou alguns momentos, mas, como se a decisão já estivesse incorporada
à alma desde quando saíra do quarto, atirou-se escada abaixo,
trezentos degraus. Morrendo em direção aos principais personagens
de sua história. Mas o pai, grande amor, não estava. Chegou em
frangalhos, sangue misturado à cor do vestido, falecida como na verdade
desejava. E precisava. Porque a pior morte era aquela na qual vivia, meio morta,
meio viva.
Serpentinas. Apitos estridentes. Todos, os filhos e o marido e o pistoleiro,
abraçaram-se numa confissão de alegria raramente experimentada
por qualquer um deles quando vivos. Agora sim, talvez pudessem descansar na
santa paz do Senhor. Inclusive Zejão, já perdoado pela vítima,
de quem se tornara grande amigo e confessor das mais bem guardadas intimidades.
Foi envolvida no xale. Jogaram as flores por sobre. O Palacete ruiu em segundos
e sem qualquer estrondo, como fosse erguido a partir de cartas de baralho. E
todos os mortos foram felizes para sempre. Exceto ela.