A Garganta da Serpente
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Os dois homicidas

(Eduardo Selga)

É que enquanto vivi ao lado dele sempre me faltou a maldita coragem, embora a vontade... nunca. Daí, pela eterna presença da covardia, nunca conclui meu plano subterrâneo: esganar aquele sujeito odioso. E teria sido fácil. Em função da convivência forçada no mesmo retângulo dois por dois e meio, por ordem da Doutora Lei. O máximo que consegui, e mesmo assim só de raro em raro, foram alguns quase. Invariavelmente pelo mesmo caminho: enquanto ele demolia meus ouvidos (que não alcançavam o direito de dormir direito o mesmo sono de todos os ouvidos dos homens livres e direitos, embora fosse um recluso por força de correntes e cadeados), enquanto ele demolia meus ouvidos com roncos dum javali, a tentação vinha vindo devagar. Sorrateira... risonha... dá um minutinho de vossa licença, moço bonito que só? Sentava no beiral da cama, pernas cruzadas e um perfume... Ela perto era sentimento amargo e gostoso, mas nunca consegui traduzir. Alisava minhas mãos, beijos no rosto, sorriso pintado de vermelho-sangue... Vai seu bobo, mate logo! Esperando o quê? Mate! Aumentar em alguns poucos anos o tempo de cadeia? Sim, mas grande coisa... Quando sair daqui suas barbas estarão brancas mesmo... Mate, querido! Não mantenha essa gana encarcerada no coração, olha a taquicardia... Persuasiva, sem dúvida. Mas mata-lo, que seria bom... nada. Homicida de merda, eu. Sei. Melhor que ninguém. Algumas vezes, mãos no pescoço dele, recuei, frouxo e mofino. Cachorro sarnento que por tudo e por nada sente pavor, foge com seu rabo entre as pernas caniças. E relembrar que estive atrás daquelas grades, respirei aquele mofo, aquela fedentina causada pela comida azeda e também pelas nossas merdas, por ter estripado um cabra miúdo e pálido de tanta cachaça. Não, comigo não... Nenhum analfabeto até à alma, infeliz e alcoólatra, iria impunemente cuspir na minha cara vosmecê num parece cabôco macho... capaz de já ter arriado essas calçolas aí bonitas de brim pra alguém... Matei com vontade, prazer em castigar o insulto. Nem por um momento tive dúvidas, muitos menos remorso depois: tomei dele a foice de cabo curto, fiz espirrar sangue matuto por várias partes do corpo: alarguei sua boca, quis a língua para mim, abri um buraco do umbigo às costas em três golpes. Morreu aos berros, estrebuchando como um epilético, as tripas nas mãos, os paus-d'água assombrados. Mas desconheço até hoje o motivo pelo qual minha vontade de matar aquele outro gelava na hora mais importante. Bastaria apertar o pescoço dele entre as mãos. Sempre foi eficiente, é morte rápida. Mas qual! Covardia miserável! Até rezei, pedi a quem quer que exista lá em cima para me dar a necessária coragem. Inútil. Se alguém mora no Céu, é surdo. Ao menos para as minhas aflições.

Todo santo dia era a mesma coisa: acordava cedo demais para o meu gosto, e com um bom humor intolerável e difícil de entender num homem mais prisioneiro do que eu, punido a não respirar liberdade por um tempo bem maior que o da minha sentença. Feliz?! Verdadeira afronta ao ódio daqui de dentro, bem guardado. Enrustido. Falava alto, sempre num tom alegre, piadas que eu fingia engraçadíssimas. E era um tal de quando era molecote a vida era mais boa porque não tinha tanto nó bem amarrado; falando na sinceridade funda do peito, viver até que está mais ou menos; estórias de assombração; um tio que colecionava globos oculares arrancados de gatos ainda vivos e num santo Finados foi para dentro do cemitério suicidar-se. Acaso interessava o passado daquele trapo? Coisa irritante! E por que só ele recebia presentes, chocolates, cigarros, palavras de encorajamento, visitas?! Uma vez preso, nenhum espécime da fauna de puxa-sacos típica da repartição deu as caras, nem que fosse para dançar castanholas sobre meus restos! Enquanto isso o outro jogava seu dominó ou truco com o soldadinho, sentados no cimento frio, alegres, cada um do seu lado da cela. Eu mal humorado, uma carranca do São Francisco no rosto, sempre relendo o Luis da Silva do meu Angústia. Uma estratégia que nunca funcionou, a reclamação fisionômica. Tinha esperança de que meu silêncio funcionasse para ele como um sinal de alerta, ele percebesse o descontentamento. Nunca deu certo. Ou era cego de inteligência ou, pior, fingia-se de sujeito sonso. Até hoje me pergunto o motivo de tanto empenho em me irritar. Não sabia eu era um sujeito perigoso, letrado, que arranquei fora as tripas dum peão atrevido e tagarela?

À vera? Meu santo nunca proseou com o dele sem ter um pé atrás. Logo no primeiro dia (roupas de gente estudada, nenhum "tarde...", cheirando a perfume dos que a gente cheira e pensa bem assim mesmo: é caro.) uma coisa que fedia a ruim e vinha com fogo daquele viés de olhos meio satanás sacudiu eu certeiro no umbigo da alma. Gostei nadica. Traiçoeiro, estava escrito naquela falta de palavras, naquela desfeita logo na chegada. Desde pirralho nunca me arranjei com cartilha de leitura da tia, mas coisas assim de rosto maligno sempre li certinho. Casa de senhor ninguém é só assim, vai entrando sem dizer sua graça ou licencinha e tal e coisa. Traiçoeiro. Só fazia resmungar zunzunzuns que pareciam praguejos miudinhos, e ler aqueles livros que não acabavam nunca. Meio maluco, o sujeito. Donde já se viu perder tempo e mais tempo com papelada sem préstimo? Direitinho uma traça, tanto que engolia aquilo com os olhos. Pra que conhecer palavras esquisitas? As de costume, as que sempre disseram tudo, não valiam mais vintém? Metido a letrado, a mais inteligente. Devia de trazer alguma moléstia pra cabeça, pros olhos, aquele mundéu de nhenhenhém escrito. E muito calado demais pras minhas desconfianças de sujeito cabra. Gente assim é na veia: tem partes. Ah, se tem... Ele então... Horas e mais horas olhando pra a sujeira que empreteava o teto branco da cela, dedos nos lábios num aperta e estica. Uma ou outra vez, músicas sussurradas em línguas que não eram de gente. Não podiam ser. Uns pulos relâmpagos que ele dava lá da cama até ao chão pra enxergar a vida lá fora, a vida grande pelas barras de ferro. Aí escancarava o riso com vontade, mas sem barulho. Como podia ser? Um gargalhar por dentro. Como quem quer distância de chamar atenção. Era mais ou menos assim: a maluquice estava morando comigo naquele cubículo e a qualquer hora eu bem que podia acordar gelado de tão mortinho por aquele doido manso. Peraí, peraí!... E se ele fosse comer grama pela raiz antes de mim? Claro! Matar o cabra logo, senão... Mas e a mulher que em algumas noites aparecia de lugar nenhum, sentava ao lado dele? Entrava como? Tinha feitios de xodó: mãos na mão, uns fuxicos, aquela maciez no sorrir que enfeitiça qualquer marmanjo. Falavam do quê? Impossível ouvir. Também não enxergava direito: nos primeiros dias fingia sono até roncar, olhos assim meio abertos, meio fechados. Esperteza. Quisesse minha vida inteirinha sem nenhum arranhão, tinha que ajeitar um modo deles não verem minha ideia, caso contrário eu ia ter que procurar encontrar outra chance mais melhor. Antes que eu morresse. O caso era de fazer a mentira mais com a cara de verdade. Então a ideia veio cheia, duma vez só, sem carecer remendos: por um tempo grande (dois, três, um punhado de meses...) eu ia fazer de mim uma outra pessoa pra viver com eles, bem longe do que eu era mesmo. Alguém agradável, risonho, boa-praça. Fisgar a confiança.Tudo sem pressa, sem carro na frente dos bois, sem atropelo. Batuta! Mais agora... mais depois... ele ia pôr os olhos em mim sem ver o outro, e no miolo um pensamento de certeza: ao lado dele estava um amigo. Lógico, parceiro... aqui neste poço sem fundo, se um não se escorar no outro, a vida morde que arranca pedaço com força. Quando a hora chegar, eu perceber o espírito dele sem armas, enforco. Piedade? Mané Piedade! É boa... Nunca senhor ninguém deixou essa flor, que uma vez me disseram ser formosa, brotar aqui no coração! Minha vida sempre foi cipós e mata fechada! Enforcamento sim, como não? Aproveitando o sono do miserável, sempre bastante pesado. Duas peças no jogo eu não podia esquecer: o carcereiro magrela e a tal mulher. A mulher... Logo no início eu estranhava a falta de certeza nas visitas noturnas dela. Não havia noites certas!... Seria dificultoso. O que eu tinha traçado aqui no bestunto perigava até não acontecer. Mas aí... clareou o entendimento: todo dia em que ele acordava descorçoado, a noite vinha para as coisas lá de fora e o sujeito continuava naquela aflição dentro da cela. Era aí que a talzinha aparecia do nada! Já o carcereiro... bobagem! Meia dúzia de trololó manhoso, pé-de-ouvido, erva da melhor qualidade... e tudo feito. A surdez dele era qualquer vintém, de graça. Não ia ouvir nenhum som abafado do cabra durante a morte, nenhum grito de socorro.

Mas o fato que realmente me intriga, na condição de narrador desta estória fictícia e escrita por mim mesmo, é que o policial foi encontrado no corredor, caído, falando alucinações porque overdose, e, estranhamente, ninguém procurou encontrar relação com os fatos trágicos ocorridos na cela. Não foi afastado, nem mesmo um inquérito administrativo para apurar suas responsabilidades foi aberto. Esquisito. Concorda comigo, prezado leitor? Pois não se deixe levar, as palavras quando bem organizadas podem conduzir ao engano. Há explicação para essa parte do conto. Tanto que não estou de fato estranhando coisa nenhuma, mentira minha. Estranhar como, se o carcereiro, que nunca existiu de verdade, na verdade sou eu?

  • Publicado em: 01/06/2004
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