É que enquanto vivi ao lado dele sempre me faltou a maldita coragem,
embora a vontade... nunca. Daí, pela eterna presença da covardia,
nunca conclui meu plano subterrâneo: esganar aquele sujeito odioso. E
teria sido fácil. Em função da convivência forçada
no mesmo retângulo dois por dois e meio, por ordem da Doutora Lei. O máximo
que consegui, e mesmo assim só de raro em raro, foram alguns quase. Invariavelmente
pelo mesmo caminho: enquanto ele demolia meus ouvidos (que não alcançavam
o direito de dormir direito o mesmo sono de todos os ouvidos dos homens livres
e direitos, embora fosse um recluso por força de correntes e cadeados),
enquanto ele demolia meus ouvidos com roncos dum javali, a tentação
vinha vindo devagar. Sorrateira... risonha... dá um minutinho de vossa
licença, moço bonito que só? Sentava no beiral da cama,
pernas cruzadas e um perfume... Ela perto era sentimento amargo e gostoso, mas
nunca consegui traduzir. Alisava minhas mãos, beijos no rosto, sorriso
pintado de vermelho-sangue... Vai seu bobo, mate logo! Esperando o quê?
Mate! Aumentar em alguns poucos anos o tempo de cadeia? Sim, mas grande coisa...
Quando sair daqui suas barbas estarão brancas mesmo... Mate, querido!
Não mantenha essa gana encarcerada no coração, olha a taquicardia...
Persuasiva, sem dúvida. Mas mata-lo, que seria bom... nada. Homicida
de merda, eu. Sei. Melhor que ninguém. Algumas vezes, mãos no
pescoço dele, recuei, frouxo e mofino. Cachorro sarnento que por tudo
e por nada sente pavor, foge com seu rabo entre as pernas caniças. E
relembrar que estive atrás daquelas grades, respirei aquele mofo, aquela
fedentina causada pela comida azeda e também pelas nossas merdas, por
ter estripado um cabra miúdo e pálido de tanta cachaça.
Não, comigo não... Nenhum analfabeto até à alma,
infeliz e alcoólatra, iria impunemente cuspir na minha cara vosmecê
num parece cabôco macho... capaz de já ter arriado essas calçolas
aí bonitas de brim pra alguém... Matei com vontade, prazer em
castigar o insulto. Nem por um momento tive dúvidas, muitos menos remorso
depois: tomei dele a foice de cabo curto, fiz espirrar sangue matuto por várias
partes do corpo: alarguei sua boca, quis a língua para mim, abri um buraco
do umbigo às costas em três golpes. Morreu aos berros, estrebuchando
como um epilético, as tripas nas mãos, os paus-d'água assombrados.
Mas desconheço até hoje o motivo pelo qual minha vontade de matar
aquele outro gelava na hora mais importante. Bastaria apertar o pescoço
dele entre as mãos. Sempre foi eficiente, é morte rápida.
Mas qual! Covardia miserável! Até rezei, pedi a quem quer que
exista lá em cima para me dar a necessária coragem. Inútil.
Se alguém mora no Céu, é surdo. Ao menos para as minhas
aflições.
Todo santo dia era a mesma coisa: acordava cedo demais para o meu gosto, e com
um bom humor intolerável e difícil de entender num homem mais
prisioneiro do que eu, punido a não respirar liberdade por um tempo bem
maior que o da minha sentença. Feliz?! Verdadeira afronta ao ódio
daqui de dentro, bem guardado. Enrustido. Falava alto, sempre num tom alegre,
piadas que eu fingia engraçadíssimas. E era um tal de quando era
molecote a vida era mais boa porque não tinha tanto nó bem amarrado;
falando na sinceridade funda do peito, viver até que está mais
ou menos; estórias de assombração; um tio que colecionava
globos oculares arrancados de gatos ainda vivos e num santo Finados foi para dentro do cemitério suicidar-se. Acaso interessava o passado daquele trapo?
Coisa irritante! E por que só ele recebia presentes, chocolates, cigarros,
palavras de encorajamento, visitas?! Uma vez preso, nenhum espécime da
fauna de puxa-sacos típica da repartição deu as caras,
nem que fosse para dançar castanholas sobre meus restos! Enquanto isso
o outro jogava seu dominó ou truco com o soldadinho, sentados no cimento
frio, alegres, cada um do seu lado da cela. Eu mal humorado, uma carranca do
São Francisco no rosto, sempre relendo o Luis da Silva do meu Angústia.
Uma estratégia que nunca funcionou, a reclamação fisionômica.
Tinha esperança de que meu silêncio funcionasse para ele como um
sinal de alerta, ele percebesse o descontentamento. Nunca deu certo. Ou era
cego de inteligência ou, pior, fingia-se de sujeito sonso. Até
hoje me pergunto o motivo de tanto empenho em me irritar. Não sabia eu
era um sujeito perigoso, letrado, que arranquei fora as tripas dum peão
atrevido e tagarela?
À vera? Meu santo nunca proseou com o dele sem ter um pé atrás.
Logo no primeiro dia (roupas de gente estudada, nenhum "tarde...",
cheirando a perfume dos que a gente cheira e pensa bem assim mesmo: é
caro.) uma coisa que fedia a ruim e vinha com fogo daquele viés de olhos
meio satanás sacudiu eu certeiro no umbigo da alma. Gostei nadica. Traiçoeiro,
estava escrito naquela falta de palavras, naquela desfeita logo na chegada.
Desde pirralho nunca me arranjei com cartilha de leitura da tia, mas coisas
assim de rosto maligno sempre li certinho. Casa de senhor ninguém é
só assim, vai entrando sem dizer sua graça ou licencinha e tal
e coisa. Traiçoeiro. Só fazia resmungar zunzunzuns que pareciam
praguejos miudinhos, e ler aqueles livros que não acabavam nunca. Meio
maluco, o sujeito. Donde já se viu perder tempo e mais tempo com papelada
sem préstimo? Direitinho uma traça, tanto que engolia aquilo com
os olhos. Pra que conhecer palavras esquisitas? As de costume, as que sempre
disseram tudo, não valiam mais vintém? Metido a letrado, a mais
inteligente. Devia de trazer alguma moléstia pra cabeça, pros
olhos, aquele mundéu de nhenhenhém escrito. E muito calado demais
pras minhas desconfianças de sujeito cabra. Gente assim é na veia:
tem partes. Ah, se tem... Ele então... Horas e mais horas olhando pra
a sujeira que empreteava o teto branco da cela, dedos nos lábios num
aperta e estica. Uma ou outra vez, músicas sussurradas em línguas
que não eram de gente. Não podiam ser. Uns pulos relâmpagos
que ele dava lá da cama até ao chão pra enxergar a vida
lá fora, a vida grande pelas barras de ferro. Aí escancarava o
riso com vontade, mas sem barulho. Como podia ser? Um gargalhar por dentro.
Como quem quer distância de chamar atenção. Era mais ou
menos assim: a maluquice estava morando comigo naquele cubículo e a qualquer
hora eu bem que podia acordar gelado de tão mortinho por aquele doido
manso. Peraí, peraí!... E se ele fosse comer grama pela raiz antes
de mim? Claro! Matar o cabra logo, senão... Mas e a mulher que em algumas
noites aparecia de lugar nenhum, sentava ao lado dele? Entrava como? Tinha feitios
de xodó: mãos na mão, uns fuxicos, aquela maciez no sorrir
que enfeitiça qualquer marmanjo. Falavam do quê? Impossível
ouvir. Também não enxergava direito: nos primeiros dias fingia
sono até roncar, olhos assim meio abertos, meio fechados. Esperteza.
Quisesse minha vida inteirinha sem nenhum arranhão, tinha que ajeitar um modo deles não verem minha ideia, caso contrário eu ia
ter que procurar encontrar outra chance mais melhor. Antes que eu morresse.
O caso era de fazer a mentira mais com a cara de verdade. Então a ideia
veio cheia, duma vez só, sem carecer remendos: por um tempo grande (dois,
três, um punhado de meses...) eu ia fazer de mim uma outra pessoa pra
viver com eles, bem longe do que eu era mesmo. Alguém agradável,
risonho, boa-praça. Fisgar a confiança.Tudo sem pressa, sem carro
na frente dos bois, sem atropelo. Batuta! Mais agora... mais depois... ele ia
pôr os olhos em mim sem ver o outro, e no miolo um pensamento de certeza:
ao lado dele estava um amigo. Lógico, parceiro... aqui neste poço
sem fundo, se um não se escorar no outro, a vida morde que arranca pedaço
com força. Quando a hora chegar, eu perceber o espírito dele sem
armas, enforco. Piedade? Mané Piedade! É boa... Nunca senhor ninguém
deixou essa flor, que uma vez me disseram ser formosa, brotar aqui no coração!
Minha vida sempre foi cipós e mata fechada! Enforcamento sim, como não?
Aproveitando o sono do miserável, sempre bastante pesado. Duas peças
no jogo eu não podia esquecer: o carcereiro magrela e a tal mulher. A
mulher... Logo no início eu estranhava a falta de certeza nas visitas
noturnas dela. Não havia noites certas!... Seria dificultoso. O que eu
tinha traçado aqui no bestunto perigava até não acontecer.
Mas aí... clareou o entendimento: todo dia em que ele acordava descorçoado,
a noite vinha para as coisas lá de fora e o sujeito continuava naquela
aflição dentro da cela. Era aí que a talzinha aparecia
do nada! Já o carcereiro... bobagem! Meia dúzia de trololó
manhoso, pé-de-ouvido, erva da melhor qualidade... e tudo feito. A surdez
dele era qualquer vintém, de graça. Não ia ouvir nenhum
som abafado do cabra durante a morte, nenhum grito de socorro.
Mas o fato que realmente me intriga, na condição de narrador desta
estória fictícia e escrita por mim mesmo, é que o policial
foi encontrado no corredor, caído, falando alucinações
porque overdose, e, estranhamente, ninguém procurou encontrar relação
com os fatos trágicos ocorridos na cela. Não foi afastado, nem
mesmo um inquérito administrativo para apurar suas responsabilidades
foi aberto. Esquisito. Concorda comigo, prezado leitor? Pois não se deixe
levar, as palavras quando bem organizadas podem conduzir ao engano. Há
explicação para essa parte do conto. Tanto que não estou
de fato estranhando coisa nenhuma, mentira minha. Estranhar como, se o carcereiro,
que nunca existiu de verdade, na verdade sou eu?