Ainda hoje sua procedência é mistério tamanho que, diria
mesmo, (desculpe-me qualquer exagero), diria mesmo chegou a escrever capítulo
à parte não só no folclore local como também nos
lugares arrabaldes. Seu nome é desconhecido, bem como o motivo pelo qual
fez a coisa, se é que o responsável foi ele realmente. Os capiaus
de hoje, a exemplo dos de então, insistem em culpar o homem, emprestar-lhe
características antes inéditas. Mas eu mesmo não dou cem
por cento de certeza. Tudo o que se sabe do lamentável acontecimento
vem do povo, de sua crônica oral tanto mais adulterada quanto mais repetida.
Longe de mim supor a população de Nossa Sinhorinha dos Incréus
tivesse gosto ou talento pela falácia (a palavra quando sem rédeas).
Afastemos imediato semelhante insulto. É que na língua de diversos
contadores as estórias desviam, adernam à esquerda e à
direita, ameaçam as nuvens, não raro atingem Terra de Ninguém,
estranho território esse no qual são mais verdadeiras as muitas
versões que o fato. Justamente por isso vou logo clareando para o caso
de, vosmecê boquiaberto porque urbano demais, considerar minha pessoa
mentirosa ainda que insinuadamente: impossível garantir completa veracidade
dos fatos narrados doravante. Ainda assim, entretanto, o principal eu afirmo
ser merecedor de todo o seu respeito. Se desacreditar, favor não ria
como estivesse sua cultura muito acima da sabença descalça. Uma
indelicadeza cabeluda; uma afronta ao meu pai (foi ele quem me contou a estória),
homem jamais dado a aleivosias. Não sem méritos, era personalidade
no arraial, respeitado que só. Agora... nem tem dúvidas, ele me
contou tal e qual lhe foi narrado pelos caboclos que vivenciaram o acontecido.
Daí, tirante gordurinhas sem jeito de evitar e involuntárias,
o enredo é o que segue, contado com o meu vocabulário. Na verdade,
uma mistura da Escola Superior com um tiquinho roceiro, vosmecê tenha
a fineza de não me pôr reparo. Acomode o corpo cansado da viagem
estirada aí no banco, a casa é sua. Daqui a pouco teremos estrelas.
Aceita caneca de café pilado nem faz tempo?
Naquele dia, Nossa Sinhorinha dos Incréus amanheceu numa polvorosa medonha,
dizia bem assim mesmo meu pai que já não se recordava exatamente
qual dia tinha sido esse (a poeira do tempo há muito encobrira sua memória).
Todo o mundo, os ribeirinhos ainda mais que os outros, estava com a atenção
desperta para aquele homem repentino. Da noite para o dia surgiu nos degraus
da capela, única edificação mais ou menos do lugar. Sim,
porque todo o resto resumia-se a palhoças fingindo casas, o empório
mofino, um sobrado rococó e triste e desmoronável onde a Força
Pública dizia-se exercer as funções com seus três
meganhas encardidos pelo tédio, sonolentos. Mas, como ia dizendo (caso
não retome as rédeas da prosa, posso me perder nessas estradas
vicinais que ela mesma nos mostra), o homem era surpreendente. Diziam-no assim
mesmo: magro, espichado na altura, branco de uma brancura fantasmal, encoberto
preto de alto a baixo; olhos fundos, fixos e verdes; chapéu panamá,
na boca um eterno cigarro sem fumaças. Os primeiros que se deram pela
insólita presença tentaram assuntar, quem sabe dois dedos de prosa,
perguntações, qual é a sua graça? Tudo sem préstimo:
não respondia. O que alguns, caiçaras na maioria, interpretavam
soberba, característica inadmissível a um estrangeiro. Os simples
têm disso: comportam-se soslaios com quem no caráter apresenta
complexas inequações, trigonometrias. Eu mesmo fui assim enquanto
vivi entre eles, lá se vão boa vintena de anos.
Pois foi justo esse o motivo pelo qual o talzinho não demorou caiu no
desagrado do povo. Os dias sucediam-se matematicamente, sol, chuva, garoa, temporal,
e o homem ali no mesmo lugar. Sem arredar pé. Os nativos olhavam para
ele com visível desfeita, isso no princípio. Porque quando se
deram conta não sairia defronte da capela tão cedo, aos poucos
foram esticando os predicativos sombrios dele de modo a alimentar pretextos
bastante para ação mais peituda.
- Será mesmo, gente?
- Sei não... Pra mim tem partes com o... Aquele.
- E a cara defunta, então?!...
- Mas nem tem ai-ai-meu-bem: batata que é alma do outro mundo que São
Pedro chegou assim e disse: "Não, mocinho... aqui vosmecê
não se aprochega. Antes carece expiar seus pecados."
- Espia só, comadre: os olhos dele estão caçando alguém.
Devagarinho mas estão. Valha-me a Virgem se não é o Demo
sentado na porta da igreja!
Vá lá saber se era fato ou visagem do povo. Mas o sucedido é
que, um tanto por superstição e outro tanto por suspeição,
decretaram os homens, liderados pelos chefes de família: o Coisa não
mais poderia viver entre eles. Uma atitude definitiva! Nem foram pedir ajuda
ao delegado porque esse, coitado dele, sujeito de uma covardia mal disfarçada
e quase circense. Alguém lembrou meu pai, porém inútil:
estava na metrópole vendendo a safra. Restava, ainda, o vigário.
Longínquo religioso que só visitava Nossa Sinhorinha dos Incréus
quando festejavam a padroeira. Avisaram-no do problema via telégrafo,
tecnologia máxima de então. Contudo, ignoravam, o homem não
era lá muito católico nem ortodoxo nesses assuntos de presumível
Capeta. Já presenciara coisas na vida que, se não sepultavam o
que lhe foi ensinado no seminário, ao menos faziam-no perceber o Oposto
apenas enquanto o reverso de um fato único: o existir. A diocese jamais
poderia ao menos suspeitar, mas em segredo propunha-se a escrever uma tese,
com ajuda de autores medievais, defendendo a necessidade de o cristão
aceitar o Satanás que existe no espírito humano para que de fato
possa haver a redenção. Acreditava que a grande tarefa da cristandade
seria, com semelhante aquiescência, salvar não só a espécie
Homem: o próprio Anjo Caído que, assim, retornaria ao Paraíso.
Uma vez pronta a obra, tentaria a publicação sob pseudônimo.
Esses pormenores todos eu sei porque antes de morrer, inédito, ele revelou
suas ideias a papai fazendo-o jurar as tornassem públicas, promessa
que ele não cumpriu. Ora, como um padre desse poderia expulsar o tal
Diabo? O povo, já com sentença lavrada, exigiria exorcismo, e
onde convicção teológica para semelhante tarefa? Junte-se
a tudo isso dois obstáculos: incomodava-lhe o bodum do populacho (suor,
peixe, cachaça ...); era avesso a qualquer tipo de acontecimento onde
fosse o centro gravitacional das atenções. Assim, impossível
ir, mandou dizer-se doente, acamado, uns achaques, porque estava velho e coisa
e tal, uns desmaios, não sei mais o quê.
Receberam a notícia, dias depois, meio assim. Apesar de idoso, nunca
apresentou moléstia, sequer reumatismo!... Só às vezes
um certo banzo por causa de amor antigo, jovem, e proibido pela cartilha do
Vaticano. Não chegaram ao atrevimento de supor o pároco um mentiroso,
mas estranharam sim senhor. Pois se há poucos dias atrás ele estivera
no arraial, coradinho que só, risonho como quem beatificado, solicitando
adjutório no comércio para a festa da santa... Estranho. Mas,
enfim, quem vai entender os universos que habitam o interior de nós todos?
Então estavam sozinhos. E sozinhos combinaram os homens reunidos no empório:
logo que as primeiras horas da manhã dessem o ar da graça, galos
cantando, eles, bacamartes e porretes, iriam assassinar o Coisa, enterra-lo
distante. Mulheres e crianças em casa como se nada. E o delegado que
não viesse falar em Código Penal, nem o padre em Quinto Mandamento.
Mas, quando o dia clareou...
Curioso que quando meu pai contava isso, arregalava bem assim ó os olhos.
Esfregava as mãos. Nervoso. Quase sempre não chegava ao final
da estória. As lembranças trágicas o calavam. Nesses momentos,
desacomodava-se do banco onde gostava de narrar seus causos, pedia à
empregada gole de café recém pilado. Fósforo acesso na
ponta do charuto catinguento. Visível terror nos olhos. Ia à varanda,
respirava fundo e perturbado pelas memórias. E era infalível:
- Daqui a pouco teremos estrelas. Vamos mudar de assunto?