A Garganta da Serpente
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O estranho homem de Nossa Sinhorinha dos Incréus

(Eduardo Selga)

Ainda hoje sua procedência é mistério tamanho que, diria mesmo, (desculpe-me qualquer exagero), diria mesmo chegou a escrever capítulo à parte não só no folclore local como também nos lugares arrabaldes. Seu nome é desconhecido, bem como o motivo pelo qual fez a coisa, se é que o responsável foi ele realmente. Os capiaus de hoje, a exemplo dos de então, insistem em culpar o homem, emprestar-lhe características antes inéditas. Mas eu mesmo não dou cem por cento de certeza. Tudo o que se sabe do lamentável acontecimento vem do povo, de sua crônica oral tanto mais adulterada quanto mais repetida. Longe de mim supor a população de Nossa Sinhorinha dos Incréus tivesse gosto ou talento pela falácia (a palavra quando sem rédeas). Afastemos imediato semelhante insulto. É que na língua de diversos contadores as estórias desviam, adernam à esquerda e à direita, ameaçam as nuvens, não raro atingem Terra de Ninguém, estranho território esse no qual são mais verdadeiras as muitas versões que o fato. Justamente por isso vou logo clareando para o caso de, vosmecê boquiaberto porque urbano demais, considerar minha pessoa mentirosa ainda que insinuadamente: impossível garantir completa veracidade dos fatos narrados doravante. Ainda assim, entretanto, o principal eu afirmo ser merecedor de todo o seu respeito. Se desacreditar, favor não ria como estivesse sua cultura muito acima da sabença descalça. Uma indelicadeza cabeluda; uma afronta ao meu pai (foi ele quem me contou a estória), homem jamais dado a aleivosias. Não sem méritos, era personalidade no arraial, respeitado que só. Agora... nem tem dúvidas, ele me contou tal e qual lhe foi narrado pelos caboclos que vivenciaram o acontecido. Daí, tirante gordurinhas sem jeito de evitar e involuntárias, o enredo é o que segue, contado com o meu vocabulário. Na verdade, uma mistura da Escola Superior com um tiquinho roceiro, vosmecê tenha a fineza de não me pôr reparo. Acomode o corpo cansado da viagem estirada aí no banco, a casa é sua. Daqui a pouco teremos estrelas. Aceita caneca de café pilado nem faz tempo?

Naquele dia, Nossa Sinhorinha dos Incréus amanheceu numa polvorosa medonha, dizia bem assim mesmo meu pai que já não se recordava exatamente qual dia tinha sido esse (a poeira do tempo há muito encobrira sua memória). Todo o mundo, os ribeirinhos ainda mais que os outros, estava com a atenção desperta para aquele homem repentino. Da noite para o dia surgiu nos degraus da capela, única edificação mais ou menos do lugar. Sim, porque todo o resto resumia-se a palhoças fingindo casas, o empório mofino, um sobrado rococó e triste e desmoronável onde a Força Pública dizia-se exercer as funções com seus três meganhas encardidos pelo tédio, sonolentos. Mas, como ia dizendo (caso não retome as rédeas da prosa, posso me perder nessas estradas vicinais que ela mesma nos mostra), o homem era surpreendente. Diziam-no assim mesmo: magro, espichado na altura, branco de uma brancura fantasmal, encoberto preto de alto a baixo; olhos fundos, fixos e verdes; chapéu panamá, na boca um eterno cigarro sem fumaças. Os primeiros que se deram pela insólita presença tentaram assuntar, quem sabe dois dedos de prosa, perguntações, qual é a sua graça? Tudo sem préstimo: não respondia. O que alguns, caiçaras na maioria, interpretavam soberba, característica inadmissível a um estrangeiro. Os simples têm disso: comportam-se soslaios com quem no caráter apresenta complexas inequações, trigonometrias. Eu mesmo fui assim enquanto vivi entre eles, lá se vão boa vintena de anos.

Pois foi justo esse o motivo pelo qual o talzinho não demorou caiu no desagrado do povo. Os dias sucediam-se matematicamente, sol, chuva, garoa, temporal, e o homem ali no mesmo lugar. Sem arredar pé. Os nativos olhavam para ele com visível desfeita, isso no princípio. Porque quando se deram conta não sairia defronte da capela tão cedo, aos poucos foram esticando os predicativos sombrios dele de modo a alimentar pretextos bastante para ação mais peituda.

- Será mesmo, gente?

- Sei não... Pra mim tem partes com o... Aquele.

- E a cara defunta, então?!...

- Mas nem tem ai-ai-meu-bem: batata que é alma do outro mundo que São Pedro chegou assim e disse: "Não, mocinho... aqui vosmecê não se aprochega. Antes carece expiar seus pecados."

- Espia só, comadre: os olhos dele estão caçando alguém. Devagarinho mas estão. Valha-me a Virgem se não é o Demo sentado na porta da igreja!

Vá lá saber se era fato ou visagem do povo. Mas o sucedido é que, um tanto por superstição e outro tanto por suspeição, decretaram os homens, liderados pelos chefes de família: o Coisa não mais poderia viver entre eles. Uma atitude definitiva! Nem foram pedir ajuda ao delegado porque esse, coitado dele, sujeito de uma covardia mal disfarçada e quase circense. Alguém lembrou meu pai, porém inútil: estava na metrópole vendendo a safra. Restava, ainda, o vigário. Longínquo religioso que só visitava Nossa Sinhorinha dos Incréus quando festejavam a padroeira. Avisaram-no do problema via telégrafo, tecnologia máxima de então. Contudo, ignoravam, o homem não era lá muito católico nem ortodoxo nesses assuntos de presumível Capeta. Já presenciara coisas na vida que, se não sepultavam o que lhe foi ensinado no seminário, ao menos faziam-no perceber o Oposto apenas enquanto o reverso de um fato único: o existir. A diocese jamais poderia ao menos suspeitar, mas em segredo propunha-se a escrever uma tese, com ajuda de autores medievais, defendendo a necessidade de o cristão aceitar o Satanás que existe no espírito humano para que de fato possa haver a redenção. Acreditava que a grande tarefa da cristandade seria, com semelhante aquiescência, salvar não só a espécie Homem: o próprio Anjo Caído que, assim, retornaria ao Paraíso. Uma vez pronta a obra, tentaria a publicação sob pseudônimo. Esses pormenores todos eu sei porque antes de morrer, inédito, ele revelou suas ideias a papai fazendo-o jurar as tornassem públicas, promessa que ele não cumpriu. Ora, como um padre desse poderia expulsar o tal Diabo? O povo, já com sentença lavrada, exigiria exorcismo, e onde convicção teológica para semelhante tarefa? Junte-se a tudo isso dois obstáculos: incomodava-lhe o bodum do populacho (suor, peixe, cachaça ...); era avesso a qualquer tipo de acontecimento onde fosse o centro gravitacional das atenções. Assim, impossível ir, mandou dizer-se doente, acamado, uns achaques, porque estava velho e coisa e tal, uns desmaios, não sei mais o quê.

Receberam a notícia, dias depois, meio assim. Apesar de idoso, nunca apresentou moléstia, sequer reumatismo!... Só às vezes um certo banzo por causa de amor antigo, jovem, e proibido pela cartilha do Vaticano. Não chegaram ao atrevimento de supor o pároco um mentiroso, mas estranharam sim senhor. Pois se há poucos dias atrás ele estivera no arraial, coradinho que só, risonho como quem beatificado, solicitando adjutório no comércio para a festa da santa... Estranho. Mas, enfim, quem vai entender os universos que habitam o interior de nós todos?

Então estavam sozinhos. E sozinhos combinaram os homens reunidos no empório: logo que as primeiras horas da manhã dessem o ar da graça, galos cantando, eles, bacamartes e porretes, iriam assassinar o Coisa, enterra-lo distante. Mulheres e crianças em casa como se nada. E o delegado que não viesse falar em Código Penal, nem o padre em Quinto Mandamento.

Mas, quando o dia clareou...

Curioso que quando meu pai contava isso, arregalava bem assim ó os olhos. Esfregava as mãos. Nervoso. Quase sempre não chegava ao final da estória. As lembranças trágicas o calavam. Nesses momentos, desacomodava-se do banco onde gostava de narrar seus causos, pedia à empregada gole de café recém pilado. Fósforo acesso na ponta do charuto catinguento. Visível terror nos olhos. Ia à varanda, respirava fundo e perturbado pelas memórias. E era infalível:

- Daqui a pouco teremos estrelas. Vamos mudar de assunto?

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