Os primeiros escuros da noite daquele dia, como fugitivos procurando esconderijo,
haviam acabado de invadir avassaladoramente os becos estreitos e catinguentos
do Morro As Cegas. Pulavam minha janela, que larguei às escâncaras.
Salteadores não demonstrariam tamanha eficiência: qualquer um dos
inúmeros buracos nas paredes, erguidas com madeiras pouco confiáveis,
servia de caminho a eles: punham seus pés de negrume no cômodo único
e sem lâmpada, cubículo no qual todas as rotinas domésticas
tinham lugar (exceto aquelas próprias dum banheiro: a privada lá
fora, dividida com outros vizinhos. O constrangimento da inconveniência
é luxo a que não nos permitimos os paupérrimos). A escuridão,
ainda translúcida e rala feito papel-de-seda, sequestrara boa parte
da luminosidade vespertina que teimava em horas extras no barraco, quando o sono
me abandonou.
Abri os olhos verdes, tranquilo como se nada, até quase satisfeito
com a vidinha cujo paraíso há alguns anos me escapara por entre
os dedos. Arriscaria supor-me apaziguado, mesmo sem qualquer motivo razoável
para sorrir por dentro: só há pouco tropeçara nas estatísticas
sociais e vim parar neste inferno, rascunho de bairro. Meu olhar fixo, indiferença
de quem não vê encanto em canto nenhum, no batuque sem música
produzido pela ventania descabelando o teto bambo, capenga, improvisação,
mosaico: zinco, amianto, telhas francesas, capôs, restos mortais de guarda-roupas...
Não compreendo, embora os dias tenham voado há tempos: meu humor,
inevitavelmente nos limites entre loucura mansa e fúria sem parênteses,
de ordinário enegrecia quando a batucada no telhado me evaporava o sono-fuga,
única chance de ludibriar o Satanás em que se transformara minha
vida. Mais ainda, consequências do vento: em tais ocasiões mantinha
o espírito discretamente furtivo como se um traiçoeiro fosse tentar
assassinato pelas costas. A insanidade comunicando já principiara subir
o Morro As Cegas e tardaria um nada o toc-toc-toc em minha porta? Naquele dia,
no entanto, não: mesmo com a presença da zoeira me havia em relativa
paz, o vento lá em cima brincando de músico não me irritava.
Tampouco os objetos em torno de mim ou as sombras me causavam suspeitas. Muito
estranho. Conformismo, talvez? Ou... e se a insanidade houvesse desistido do meu
espírito, meia-volta morro abaixo?
Soltei um pavor gritado, espanto, quando ao pentear com as mãos o cabelo
virei o rosto. Quem diabos aquele homem dormindo comigo?! Cabeçorra sobre
um dos braços, travesseiro feito aos improvisos. Rosto próximo
às orelhas-de-pau viventes muito à vontade nalgumas tábuas
da parede e centímetros acima do soalho. Uma perna estendida, a outra
desenhando ângulo de sessenta graus ou qualquer aproximação
que o valha. Completa nudez, músculos escandalosamente, dorso voltado
para mim, corpo senhor duma negritude repugnante. O pedaço direito da
bunda ostentava, tatuagem, coração três vezes baleado e
gotejando sangue e lágrimas. Seria pelos poros aquele fedor estrume misturado
ao de galinha molhada? Num dos punhos bracelete largo, couro, signos esotéricos,
bijuterias coloridas. Respiração tensa como se o oxigênio
raro. De quando em quando estrondava num ronco animalesco. Porco! O ímpeto
imediato foi distância daquele corpo crioulo demais para minha sensibilidade
de perfeito exemplar ariano sem misturas vira-latas, com o terceiro grau de
instrução, cujo habitat nunca poderia ser a injusta indigência.
Insuportável, revoltante, a indigência. Desaparecer para onde,
entretanto, se a catacumba dos infernos só possuía um único
e minúsculo cômodo? Restava-me expulsar o sujeito, pois. Com o
nojo escrito no rosto, legítimo direito de minha raça abençoada
pela natureza, fiz menção acordá-lo. A qual subespécie
primata você pertence? Some daqui imediatamente! Procura seu bando, seu
galho de árvore, seu macaco! É o que teria dito eu, empanturrado
de razões muito minhas.
Os dedos esquerdos, brancos, receosos, aproximando-se do lombo crioulo, atentos
a um provável gesto selvagem. Típico da raça, a propósito.
Foi quando meus olhos se arregalaram frente à imagem que gostaria nunca
ter visto, que ainda hoje eu incapaz de interpretar perfeitamente: nos arredores
do cu daquele intruso, estranhos sinais nítidos duma secreção
ressecada. Bunda, coxas, panturrilhas, calcanhares... nódoas incontestes:
esperma. Mas... que porra é isto, aqui em casa?! Pronto! Está
eficientemente aplicada em mim a injeção de mau-humor do dia!
Fosse pouco ser preto e, portanto, favelado, e marginal mais cedo ou mais tarde,
o sujeitinho é um invertido!... A situação estava transformando-se
a passos velozes num problema cujo domínio me fugia.
Levantei-me urgente, cólera, a luminosidade sem forças perdendo
território no barraco para a escuridão. O atropelo de algumas
tranqueiras que apenas com muita gentileza poderiam ser qualificadas "utensílios
domésticos". Fósforos! Acender o pavio da lamparina. Fósforos!
A vontade era chutá-lo pernas, costelas, cabeça... o corpo inteiro
do escravo moderno que se julgava cidadão, enfim. E o teria feito sem
clemência, essa rachadura na personalidade eu nunca possuí. Jamais
conseguiu fazer de mim um zé-mané nos momentos adultos da vida,
o tal perdão. Para melhor resultado (arrebentar alguns ossos, digamos)
corri olhos querendo os eficientes coturnos, cúmplices em vários
homicídios de minha autoria durante as patrulhas ostensivas. Mas... fui
aposentado à força. Com isso, hibernavam num canto qualquer da
"casa". Fiéis parceiros, eles... Época boa... em que
a alegria morava no meu bolso, nas contas bancárias. Santa corrupção,
divina impunidade... Mas aí a miseralha excomungada me fez o favor eleger
um presidente travestido íntegro, guardião da fraude conhecida
por "direitos humanos" (esse discurso cachorro feito sob encomenda
para proteger marginais de todos os calibres), e resolveu extinguir minha festinha.
Agora só a máfia dele, ótima em teatralizar a lengalenga
"Moralização do País", pode enriquecer usando
as ferramentas estatais. E dentre elas a Polícia é uma das melhores.
Meus imóveis caríssimos, quando os tinha, que o digam.
Logo adiante, os dois. Zelosos ao pé da porta indecisa: nem completamente
fechada, nem toda aberta. Evitavam ela se arreganhasse e, consequência,
ainda mais escuridão invadisse meu cubículo. Necessário
lentidão, tranquilidade ao calçá-los, ser possuído
pela mágica delícia do ato. Para só aí estilhaçar
o sujeitinho com os músculos do meu ódio, verdadeira fera hematófaga
que se alimentava de minha alma sanguinária, aos goles. Aprendi a saborear
o gosto de senti-la inquilina em mim a partir do momento que plantei meus pés
e raízes no quartel.
Bastou um passo em direção a eles, os coturnos, e... perplexo!
Meu corpo estava inteiramente nu! Nu?! Explicações! O que teria
havido, como possível, se... nunca fui adepto desse hábito indecoroso?
Pouca vergonha dormir sem qualquer roupa ou decência... Pior: minhas carnes
mordidas, vermelhas de alguém sugar. Nos mamilos!... Também ao
redor do umbigo, região pubiana... Desgraças infernais! E no piru
(ele sorrisos como houvesse alguma fêmea bonita e apetitosa e próxima
para quem lançar charmes), no piru, marcas inconfundíveis de batom
verde-cheguei. Teriam sido beijos apaixonados? No juízo, multidão
de tumultos em passeata. Algazarra mental. O tempo ficou sem fim, perdeu os
ponteiros. Como situar-me no enredo, traduzir o circo de horrores?
Pasmo, turvo, ainda estava aclimatando-me àquela situação
desbragadamente longe do razoável quando senti escorrer por ambas as
coxas posteriores temperatura morna, incômoda. Amostras daquela estranheza,
urgente! Perícia improvisada, sem instrumentos. Esfreguei polegar, indicador,
médio. Sobressalto, olhos arregalados assim. Amálgama entre duas
substâncias velhas conhecidas minhas. Presentes, uma ou outra ou até
ambas, na maior parte das ocorrências de quando policial. Sangue e esperma.
Pertenceriam a mim? Mas... Num relâmpago algemei as evidências umas
às outras, formando ciranda-cirandinha de lógica. Aos meus dedos
umedecidos, os fatos: acordo e crioulo ao meu lado, sabe-se lá como,
na esteira que fazia as vezes de cama; encontro, seco, líquido seminal
em seu corpo asqueroso e másculo; descubro-me pelado e estranhamente
marcas na carne como se ferro em brasa. Portanto... eu e o sujeitinho... Sexo?!
Impossível! Tão quanto um homem emprenhar! O ódio por ele,
imediato, passou a correr aos berros dentro de mim como solitárias famélicas.
Bem mais do que antes, desossá-lo! A pontapés! Mesmo sabendo nula
qualquer possibilidade ter havido relações sexuais entre nós.
Porque muito sólida minha macheza! Questões de ética citadas
na respeitadíssima cartilha ágrafa dos soldados e cabos e sargentos
sempre me impediram encaminhar cabôco ordinário para o Inferno
sem antes mirar profundo meus olhos nos dele. Sadismo? Sadismo, esse orgasmo
do caráter; esse derramamento de açúcar em alma refinada.
Nos pés, os coturnos. Soturnos, mal intencionados. Eu gargalhando por
causa dos gritos que o bicho vomitaria, vindos das entranhas. Mexi no corpo
sem permitir digitais: a experiência, muito madame, sempre foi a grande
professora, falei comigo mesmo enquanto aulas de Filosofia universitária
invadindo-me pensamentos. Despertá-lo. Acorda, preto filho do Cão!
Hoje será o melhor pelourinho de sua vida.
Antes não tivesse revirado o sujeito, simplesmente homicídio
(dois, três disparos mortais e a vida retornaria à perfeita ordem
injusta de sempre) sem as liturgias peculiares ao ofício militar, do
qual, por revanchismos autoritários dum governo dito "democrático"
apenas por ter a unção das urnas, fui afastado: o que se me exibiu
em resposta ao gesto de alterar com o pé a posição do corpo...
Impraticável, ainda hoje, esquecer. No rosto os únicos elementos
manifestamente humanos eram os olhos que, embora escancarados, mortos. Mortos
com estilo, reconheço: íris azuis, celestes; cílios postiços,
enormes; nas pálpebras, sombra ouro até às têmporas;
nariz não havia. Ao menos nos moldes a que fui apresentado desde criança,
boca tampouco. Abandonei de imediato loucura e miragem enquanto hipóteses
e o que vi não permitiu dúvidas: traçado em caneta hidrocor,
sobre a pele, um sorriso orelha a orelha e circense e banguela. "Lábios"
coloridos verde-luz. Não se tratava, portanto, do batom antes suposto
por mim aquela tinta impregnada, tal qual tatuagem, no meu piru. Que ainda mantinha
a postura predador aguardando caça.
Impossível ao negro ser humano! Ou... e se tudo fosse máscara,
o rosto de fato por baixo? A custo e contra a vontade sufoquei em parte minha
repugnância, com a ponta dos dedos a ideia seria rasgar o provável
disfarce. Trabalho infrutífero: não, nenhuma camuflagem. Por mais
aberrante que me fosse, era a verdade. Um fogaréu, tarântula agilíssima,
que principiara escalar-me o corpo pelos caminhos de dentro e de fora até
atingir o rosto e a alma desde o instante em que constatei os líquidos
que escorriam mornos, porém abrasadores, sem trégua, pelas minhas
pernas, um fogaréu se fez ainda mais venenoso com o surrealismo do qual
eu vítima. Cego, ódio. As primeiras labaredas do pânico.
Porque nunca soube entender a correnteza do destino quando ele, amotinado, fugia
ao seu curso natural. Raivoso, esfreguei a sola do coturno no rosto negro e
colorido. Tentativa de esfolar, fazer inexistir aquela imagem que não
me dizia coisa com coisa. Mas em muito a situação se agravou,
pois antes ao menos a monstruosidade era simétrica. Quando retirei o
pé, a lambança estava desenhada no rosto, como traços infantis
em guache ou arte abstrata: parte dos "beiços" verdes rodeando
o olho esquerdo ainda aberto; o direito, submerso em lágrimas sanguíneas,
caminhara para a testa; a tonalidade ouro das pálpebras esparramada aleatoriamente,
formando grandes borrões aqui e ali sem figuras definíveis.
Foi das raras vezes na vida em que me permiti gritar o medo. Terror. Um rugido.
Agudo, corpulento, besta-fera baleada. Prostração, bússola
sem norte, a certeza inútil de que semelhante fenômeno em tempo
algum poderia acontecer na vida concreta. Sentei-me. Mas... se não era
doidice, serenar a alma. Bem assim a frase dum certo meu professor de Literatura.
Costas numa das paredes do barraco fétido, pernas abertas, braços
soltos, respiração assustada, olhos preferiam cegueira a quaisquer
novas surpresas desconcertantes. Sangue e sêmen em quantidade navegando
nádegas abaixo, catarata que nasce nas entranhas. E o fulaninho permanecia
silêncio, anômalo, inaceitável. Qual atitude seguir? Na mesma
proporção que minhas ideias perambulavam à cata
de esclarecimentos, a temperatura corpórea... Febrinha. Febre. Febrão.
Nada, nada... quarenta graus. Como se malária houvesse erguido ninhos
em mim. Poucos minutos, o abdome dilatou súbita e dolorosamente. Um troço
qualquer, vivo, fazia movimentos selvagens no interior daquele inchaço
que me esticava muito a pele. Choramingos nenéns voejavam pelo casebre,
provocando ecos ensurdecedores. Grávido, eu?! Cadê a explicação
para tamanha impossibilidade, esbravejei na fé oculta e simplória
de o vazio me responder. Porradas no chão, nas madeiras que se fingiam
parede. Lágrimas, soluços. Praga! Infernos! Acaso represália
divina pelos homicídios às pencas, quando policial? Quis reerguer-me.
Porém, a barriga se rasgou, tecido ordinário, cesárea.
Talho no sentido oposto, verticalmente, até pouco abaixo do umbigo. Dor
filha duma puta! Gritei (mas e daí?) à medida que a epiderme se
abria.
Não lembro mais quantos anos depois, moleque da vizinhança trepou
no telhado feito de coisas, algumas telhas inclusive. Pretendia acordar uma
pipa que, vitimada por cerol, resolveu dormir soneca por lá. Tudo construído
muito mais ou menos, frágil, despencou. Ele e a cobertura caíram
exatamente onde estaria (mas... cadê?) o negro absurdo, ao lado de quem
eu acordara. Ao pirralho faltou estômago bastante ao ver minha caveira
sentada, coturno, a mão direita estática no ar como que intencionando
agredir o soalho, mandíbula aberta por libertar minha corja de palavrões,
o crânio olhando para cima era todo o Eu em súplicas piedade aos
Céus. Não arrepiasse carreira, bicho assustado, teria visto, entre
costelas, um neguinho chorão e por isso mesmo irritante, a sacudir-me
as vértebras, tira eu daqui. Prisioneiro que jura uma inocência
quase beata em nome da mãe, do pai, do filho, do espírito santo,
de outras sacralidades. Manhas, conheço bem a raça. Vagabundos
desde a infância. Veria também seus cílios postiços,
sua maquiagem dourada sobre os olhos, coração num dos braços
pintado, a beiçola verde (batom?), a pulseira em couro...
Mas o preto encardido, princípio de toda história, não
mais estava lá. Algum dia esteve de fato? Dúvidas começam
almapenar-me, eu espírito. Que insisto em manter domicílio no
barraco infecto. Sustento esperanças ainda vou conseguir a exata clareza
do que se passou naquele dia no Morro As Cegas. Mas, por enquanto, uma única
evidência: permanece o negrume da escuridão, apesar da lamparina
ainda acesa. Acesa?! O querosene dela não deveria estar extinto há
tempos?