A Garganta da Serpente
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O grávido

(Eduardo Selga)

Os primeiros escuros da noite daquele dia, como fugitivos procurando esconderijo, haviam acabado de invadir avassaladoramente os becos estreitos e catinguentos do Morro As Cegas. Pulavam minha janela, que larguei às escâncaras. Salteadores não demonstrariam tamanha eficiência: qualquer um dos inúmeros buracos nas paredes, erguidas com madeiras pouco confiáveis, servia de caminho a eles: punham seus pés de negrume no cômodo único e sem lâmpada, cubículo no qual todas as rotinas domésticas tinham lugar (exceto aquelas próprias dum banheiro: a privada lá fora, dividida com outros vizinhos. O constrangimento da inconveniência é luxo a que não nos permitimos os paupérrimos). A escuridão, ainda translúcida e rala feito papel-de-seda, sequestrara boa parte da luminosidade vespertina que teimava em horas extras no barraco, quando o sono me abandonou.

Abri os olhos verdes, tranquilo como se nada, até quase satisfeito com a vidinha cujo paraíso há alguns anos me escapara por entre os dedos. Arriscaria supor-me apaziguado, mesmo sem qualquer motivo razoável para sorrir por dentro: só há pouco tropeçara nas estatísticas sociais e vim parar neste inferno, rascunho de bairro. Meu olhar fixo, indiferença de quem não vê encanto em canto nenhum, no batuque sem música produzido pela ventania descabelando o teto bambo, capenga, improvisação, mosaico: zinco, amianto, telhas francesas, capôs, restos mortais de guarda-roupas... Não compreendo, embora os dias tenham voado há tempos: meu humor, inevitavelmente nos limites entre loucura mansa e fúria sem parênteses, de ordinário enegrecia quando a batucada no telhado me evaporava o sono-fuga, única chance de ludibriar o Satanás em que se transformara minha vida. Mais ainda, consequências do vento: em tais ocasiões mantinha o espírito discretamente furtivo como se um traiçoeiro fosse tentar assassinato pelas costas. A insanidade comunicando já principiara subir o Morro As Cegas e tardaria um nada o toc-toc-toc em minha porta? Naquele dia, no entanto, não: mesmo com a presença da zoeira me havia em relativa paz, o vento lá em cima brincando de músico não me irritava. Tampouco os objetos em torno de mim ou as sombras me causavam suspeitas. Muito estranho. Conformismo, talvez? Ou... e se a insanidade houvesse desistido do meu espírito, meia-volta morro abaixo?

Soltei um pavor gritado, espanto, quando ao pentear com as mãos o cabelo virei o rosto. Quem diabos aquele homem dormindo comigo?! Cabeçorra sobre um dos braços, travesseiro feito aos improvisos. Rosto próximo às orelhas-de-pau viventes muito à vontade nalgumas tábuas da parede e centímetros acima do soalho. Uma perna estendida, a outra desenhando ângulo de sessenta graus ou qualquer aproximação que o valha. Completa nudez, músculos escandalosamente, dorso voltado para mim, corpo senhor duma negritude repugnante. O pedaço direito da bunda ostentava, tatuagem, coração três vezes baleado e gotejando sangue e lágrimas. Seria pelos poros aquele fedor estrume misturado ao de galinha molhada? Num dos punhos bracelete largo, couro, signos esotéricos, bijuterias coloridas. Respiração tensa como se o oxigênio raro. De quando em quando estrondava num ronco animalesco. Porco! O ímpeto imediato foi distância daquele corpo crioulo demais para minha sensibilidade de perfeito exemplar ariano sem misturas vira-latas, com o terceiro grau de instrução, cujo habitat nunca poderia ser a injusta indigência. Insuportável, revoltante, a indigência. Desaparecer para onde, entretanto, se a catacumba dos infernos só possuía um único e minúsculo cômodo? Restava-me expulsar o sujeito, pois. Com o nojo escrito no rosto, legítimo direito de minha raça abençoada pela natureza, fiz menção acordá-lo. A qual subespécie primata você pertence? Some daqui imediatamente! Procura seu bando, seu galho de árvore, seu macaco! É o que teria dito eu, empanturrado de razões muito minhas.

Os dedos esquerdos, brancos, receosos, aproximando-se do lombo crioulo, atentos a um provável gesto selvagem. Típico da raça, a propósito. Foi quando meus olhos se arregalaram frente à imagem que gostaria nunca ter visto, que ainda hoje eu incapaz de interpretar perfeitamente: nos arredores do cu daquele intruso, estranhos sinais nítidos duma secreção ressecada. Bunda, coxas, panturrilhas, calcanhares... nódoas incontestes: esperma. Mas... que porra é isto, aqui em casa?! Pronto! Está eficientemente aplicada em mim a injeção de mau-humor do dia! Fosse pouco ser preto e, portanto, favelado, e marginal mais cedo ou mais tarde, o sujeitinho é um invertido!... A situação estava transformando-se a passos velozes num problema cujo domínio me fugia.

Levantei-me urgente, cólera, a luminosidade sem forças perdendo território no barraco para a escuridão. O atropelo de algumas tranqueiras que apenas com muita gentileza poderiam ser qualificadas "utensílios domésticos". Fósforos! Acender o pavio da lamparina. Fósforos! A vontade era chutá-lo pernas, costelas, cabeça... o corpo inteiro do escravo moderno que se julgava cidadão, enfim. E o teria feito sem clemência, essa rachadura na personalidade eu nunca possuí. Jamais conseguiu fazer de mim um zé-mané nos momentos adultos da vida, o tal perdão. Para melhor resultado (arrebentar alguns ossos, digamos) corri olhos querendo os eficientes coturnos, cúmplices em vários homicídios de minha autoria durante as patrulhas ostensivas. Mas... fui aposentado à força. Com isso, hibernavam num canto qualquer da "casa". Fiéis parceiros, eles... Época boa... em que a alegria morava no meu bolso, nas contas bancárias. Santa corrupção, divina impunidade... Mas aí a miseralha excomungada me fez o favor eleger um presidente travestido íntegro, guardião da fraude conhecida por "direitos humanos" (esse discurso cachorro feito sob encomenda para proteger marginais de todos os calibres), e resolveu extinguir minha festinha. Agora só a máfia dele, ótima em teatralizar a lengalenga "Moralização do País", pode enriquecer usando as ferramentas estatais. E dentre elas a Polícia é uma das melhores. Meus imóveis caríssimos, quando os tinha, que o digam.

Logo adiante, os dois. Zelosos ao pé da porta indecisa: nem completamente fechada, nem toda aberta. Evitavam ela se arreganhasse e, consequência, ainda mais escuridão invadisse meu cubículo. Necessário lentidão, tranquilidade ao calçá-los, ser possuído pela mágica delícia do ato. Para só aí estilhaçar o sujeitinho com os músculos do meu ódio, verdadeira fera hematófaga que se alimentava de minha alma sanguinária, aos goles. Aprendi a saborear o gosto de senti-la inquilina em mim a partir do momento que plantei meus pés e raízes no quartel.

Bastou um passo em direção a eles, os coturnos, e... perplexo! Meu corpo estava inteiramente nu! Nu?! Explicações! O que teria havido, como possível, se... nunca fui adepto desse hábito indecoroso? Pouca vergonha dormir sem qualquer roupa ou decência... Pior: minhas carnes mordidas, vermelhas de alguém sugar. Nos mamilos!... Também ao redor do umbigo, região pubiana... Desgraças infernais! E no piru (ele sorrisos como houvesse alguma fêmea bonita e apetitosa e próxima para quem lançar charmes), no piru, marcas inconfundíveis de batom verde-cheguei. Teriam sido beijos apaixonados? No juízo, multidão de tumultos em passeata. Algazarra mental. O tempo ficou sem fim, perdeu os ponteiros. Como situar-me no enredo, traduzir o circo de horrores?

Pasmo, turvo, ainda estava aclimatando-me àquela situação desbragadamente longe do razoável quando senti escorrer por ambas as coxas posteriores temperatura morna, incômoda. Amostras daquela estranheza, urgente! Perícia improvisada, sem instrumentos. Esfreguei polegar, indicador, médio. Sobressalto, olhos arregalados assim. Amálgama entre duas substâncias velhas conhecidas minhas. Presentes, uma ou outra ou até ambas, na maior parte das ocorrências de quando policial. Sangue e esperma. Pertenceriam a mim? Mas... Num relâmpago algemei as evidências umas às outras, formando ciranda-cirandinha de lógica. Aos meus dedos umedecidos, os fatos: acordo e crioulo ao meu lado, sabe-se lá como, na esteira que fazia as vezes de cama; encontro, seco, líquido seminal em seu corpo asqueroso e másculo; descubro-me pelado e estranhamente marcas na carne como se ferro em brasa. Portanto... eu e o sujeitinho... Sexo?! Impossível! Tão quanto um homem emprenhar! O ódio por ele, imediato, passou a correr aos berros dentro de mim como solitárias famélicas. Bem mais do que antes, desossá-lo! A pontapés! Mesmo sabendo nula qualquer possibilidade ter havido relações sexuais entre nós. Porque muito sólida minha macheza! Questões de ética citadas na respeitadíssima cartilha ágrafa dos soldados e cabos e sargentos sempre me impediram encaminhar cabôco ordinário para o Inferno sem antes mirar profundo meus olhos nos dele. Sadismo? Sadismo, esse orgasmo do caráter; esse derramamento de açúcar em alma refinada. Nos pés, os coturnos. Soturnos, mal intencionados. Eu gargalhando por causa dos gritos que o bicho vomitaria, vindos das entranhas. Mexi no corpo sem permitir digitais: a experiência, muito madame, sempre foi a grande professora, falei comigo mesmo enquanto aulas de Filosofia universitária invadindo-me pensamentos. Despertá-lo. Acorda, preto filho do Cão! Hoje será o melhor pelourinho de sua vida.

Antes não tivesse revirado o sujeito, simplesmente homicídio (dois, três disparos mortais e a vida retornaria à perfeita ordem injusta de sempre) sem as liturgias peculiares ao ofício militar, do qual, por revanchismos autoritários dum governo dito "democrático" apenas por ter a unção das urnas, fui afastado: o que se me exibiu em resposta ao gesto de alterar com o pé a posição do corpo... Impraticável, ainda hoje, esquecer. No rosto os únicos elementos manifestamente humanos eram os olhos que, embora escancarados, mortos. Mortos com estilo, reconheço: íris azuis, celestes; cílios postiços, enormes; nas pálpebras, sombra ouro até às têmporas; nariz não havia. Ao menos nos moldes a que fui apresentado desde criança, boca tampouco. Abandonei de imediato loucura e miragem enquanto hipóteses e o que vi não permitiu dúvidas: traçado em caneta hidrocor, sobre a pele, um sorriso orelha a orelha e circense e banguela. "Lábios" coloridos verde-luz. Não se tratava, portanto, do batom antes suposto por mim aquela tinta impregnada, tal qual tatuagem, no meu piru. Que ainda mantinha a postura predador aguardando caça.

Impossível ao negro ser humano! Ou... e se tudo fosse máscara, o rosto de fato por baixo? A custo e contra a vontade sufoquei em parte minha repugnância, com a ponta dos dedos a ideia seria rasgar o provável disfarce. Trabalho infrutífero: não, nenhuma camuflagem. Por mais aberrante que me fosse, era a verdade. Um fogaréu, tarântula agilíssima, que principiara escalar-me o corpo pelos caminhos de dentro e de fora até atingir o rosto e a alma desde o instante em que constatei os líquidos que escorriam mornos, porém abrasadores, sem trégua, pelas minhas pernas, um fogaréu se fez ainda mais venenoso com o surrealismo do qual eu vítima. Cego, ódio. As primeiras labaredas do pânico. Porque nunca soube entender a correnteza do destino quando ele, amotinado, fugia ao seu curso natural. Raivoso, esfreguei a sola do coturno no rosto negro e colorido. Tentativa de esfolar, fazer inexistir aquela imagem que não me dizia coisa com coisa. Mas em muito a situação se agravou, pois antes ao menos a monstruosidade era simétrica. Quando retirei o pé, a lambança estava desenhada no rosto, como traços infantis em guache ou arte abstrata: parte dos "beiços" verdes rodeando o olho esquerdo ainda aberto; o direito, submerso em lágrimas sanguíneas, caminhara para a testa; a tonalidade ouro das pálpebras esparramada aleatoriamente, formando grandes borrões aqui e ali sem figuras definíveis.

Foi das raras vezes na vida em que me permiti gritar o medo. Terror. Um rugido. Agudo, corpulento, besta-fera baleada. Prostração, bússola sem norte, a certeza inútil de que semelhante fenômeno em tempo algum poderia acontecer na vida concreta. Sentei-me. Mas... se não era doidice, serenar a alma. Bem assim a frase dum certo meu professor de Literatura. Costas numa das paredes do barraco fétido, pernas abertas, braços soltos, respiração assustada, olhos preferiam cegueira a quaisquer novas surpresas desconcertantes. Sangue e sêmen em quantidade navegando nádegas abaixo, catarata que nasce nas entranhas. E o fulaninho permanecia silêncio, anômalo, inaceitável. Qual atitude seguir? Na mesma proporção que minhas ideias perambulavam à cata de esclarecimentos, a temperatura corpórea... Febrinha. Febre. Febrão. Nada, nada... quarenta graus. Como se malária houvesse erguido ninhos em mim. Poucos minutos, o abdome dilatou súbita e dolorosamente. Um troço qualquer, vivo, fazia movimentos selvagens no interior daquele inchaço que me esticava muito a pele. Choramingos nenéns voejavam pelo casebre, provocando ecos ensurdecedores. Grávido, eu?! Cadê a explicação para tamanha impossibilidade, esbravejei na fé oculta e simplória de o vazio me responder. Porradas no chão, nas madeiras que se fingiam parede. Lágrimas, soluços. Praga! Infernos! Acaso represália divina pelos homicídios às pencas, quando policial? Quis reerguer-me. Porém, a barriga se rasgou, tecido ordinário, cesárea. Talho no sentido oposto, verticalmente, até pouco abaixo do umbigo. Dor filha duma puta! Gritei (mas e daí?) à medida que a epiderme se abria.

Não lembro mais quantos anos depois, moleque da vizinhança trepou no telhado feito de coisas, algumas telhas inclusive. Pretendia acordar uma pipa que, vitimada por cerol, resolveu dormir soneca por lá. Tudo construído muito mais ou menos, frágil, despencou. Ele e a cobertura caíram exatamente onde estaria (mas... cadê?) o negro absurdo, ao lado de quem eu acordara. Ao pirralho faltou estômago bastante ao ver minha caveira sentada, coturno, a mão direita estática no ar como que intencionando agredir o soalho, mandíbula aberta por libertar minha corja de palavrões, o crânio olhando para cima era todo o Eu em súplicas piedade aos Céus. Não arrepiasse carreira, bicho assustado, teria visto, entre costelas, um neguinho chorão e por isso mesmo irritante, a sacudir-me as vértebras, tira eu daqui. Prisioneiro que jura uma inocência quase beata em nome da mãe, do pai, do filho, do espírito santo, de outras sacralidades. Manhas, conheço bem a raça. Vagabundos desde a infância. Veria também seus cílios postiços, sua maquiagem dourada sobre os olhos, coração num dos braços pintado, a beiçola verde (batom?), a pulseira em couro...

Mas o preto encardido, princípio de toda história, não mais estava lá. Algum dia esteve de fato? Dúvidas começam almapenar-me, eu espírito. Que insisto em manter domicílio no barraco infecto. Sustento esperanças ainda vou conseguir a exata clareza do que se passou naquele dia no Morro As Cegas. Mas, por enquanto, uma única evidência: permanece o negrume da escuridão, apesar da lamparina ainda acesa. Acesa?! O querosene dela não deveria estar extinto há tempos?

  • Publicado em: 16/05/2005
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