"A humanidade tem uma moral
dupla: uma que prega e não pratica,
outra que pratica mas não prega."
(Bretrand Russell)
A sala do apartamento é um escândalo de metros quadrados, como
é conveniente a toda cobertura defronte ao mar. Duas janelas abertas
para a noite permitem a invasão de imagens da madrugada sem luz que nasceu
há trinta minutos atrás. Também entra a brisa fria, feminina
porque exala perfumes marinhos do Floresta Encantada, balneário logo
abaixo. Cortinas pêssego dançam leves, são refletidas pelo
espelho retangular e jateado que ocupa a maior parede do cômodo. Pintores
célebres e abstratos dependurados aqui e ali. Num dos cantos, um bar
jacarandá aguarda sonolento a hora em que, com toda certeza, seus uísques
e conhaques e outros álcoois coloridos serão utilizados por eles.
Se todos, sete (ela não bebe, apenas dá ordens). No vértice
diagonal ao bar, o requinte dos moradores (um quase papai, uma quase mamãe
e uma garotinha de vinte e três anos, mimada ao extremo e cheia de vontades),
o requinte dos moradores mostra seu gesto máximo: um poste metálico
do início do século vinte, sobre o qual um lampião apagado
e saudoso espera inutilmente a visita do acendedor. Nem supõe que o ofício
já inexiste. Tudo é silêncio, cheiro de assepsia, algumas
tulipas vermelhas sobre a mesa de centro muito mentirosas porque moldadas em
porcelana.
Ela parece fazer parte da decoração, apenas mais um objeto na
sala, tal a ausência de movimentos que demostrem o que de fato está
sentindo: impaciência. Sequer busca no pulso o relógio para confirmar
as horas, confirmar o atraso dos meninos, membros que não podem faltar
à reunião. Apenas observa, olhos como fossem vidro, sentada no
sofá, o ambiente confortável em que sempre viveu. Enquanto mantém
confinada nos porões do seu íntimo a quase transbordante cólera
pela falta de pontualidade dos amiguinhos. Talvez a hora de eliminar alguns
tenha chegado. Eliminar e substituir. Parecem querer divertir-se com a Luta,
um menosprezo à Bandeira! E moram tão perto... todos neste mesmo
condomínio fechado!... A justificativa terá que ser muito boa.
Providências, providências imediatas. Ainda sublinhei não
perdessem a maldita hora. Aproveitar ao máximo esta madrugada, especialmente
favorável à reunião, já que papai e mamãe
saíram. Cada qual para sua festa. Festa... só mesmo se fosse!
Festim, na verdade! Ele numa orgia sexual, ela em outra. É até
cômico observar o talento com que mentem sem fazer força, juram
amor e fidelidade, fingem acreditar nas palavras interpretadas. E sabem que
há muito eu conheço em detalhes os detalhes.
Os três meninos entram, cumprimentos ritualísticos usando cognomes,
palavras incompreensíveis a quem não do grupo, toucas que permitem
visibilidade apenas aos olhos azuis ou verdes e aos lábios finos. Apesar
da relativa diferença de altura entre eles, nenhum tem idade superior
a treze anos. Cada qual, obedecendo ao comando dela, retira do bolso (jaquetas
sintéticas, padronizadas, lustrosas, negras) bandeira com emblemas estranhos,
amarram-na em torno do pescoço como se fosse a capa do Super-Homem. Só
então ela abandona o sofá em que estava, olha-os fixa e demoradamente
como quem pretende flagrar uma irregularidade, ordena sentem-se em círculo.
- Mãos dadas! Esqueceram?
- Desculpe Princesa Branca...
- Ao inferno com tuas desculpas, Grumpy! A Falange não pode mais suportar
tamanha anarquia interna. Nosso cronograma de trabalho está atrasado
por causa disso. Com toda a certeza alguns de vocês estão menosprezando
a Causa. Onde estão os outros quatro, Bashful?
- Não vieram.
- Eu estou vendo, imbecilidade! Quero as causas!
- Inventaram motivos os mais diversos. Mas... mentira: é medo do castigo,
Princesa.
- Ah... é medo? Tome este trinta e oito. Amanhã quero vê-los
mortos.
- Mas Princesa Branca...
- Eu ainda não te chamei na conversa, Dopey! Coisa irritante, menino!
Vamos às tarefas, a madrugada está alta demais para o meu gosto.
Agora sim, Dopey, solta a língua. E... digamos eu tenha esquecido...
Qual a tarefa de hoje, mesmo?
- Ir à Praça Brasileira... aqueles pobres que dormem lá.
- Perfeito! Mas parece que vejo uma certa... digamos... piedade no tom de tuas
palavras. Mas por enquanto prefiro acreditar ser mera impressão minha.
Afinal, é sabido por todos nós, esse tipo de sentimento pertence
aos fracos, aos covardes. E essas duas aberrações da natureza
humana a Falange não toleramos. Além disso, espero ninguém
perca de vista a majestade implícita na tarefa que nos foi confiada.
É um trabalho detergente: o que faremos hoje, extensão de outras
madrugadas, será a desinfectar o bairro onde moramos, eliminando aqueles
crioulos fedorentos que tomaram conta da nossa pracinha, contaminam nossos brinquedos.
São os últimos por aqui. Eles mortos, entregues ao inferno de
onde foram escarrados, voltaremos a conviver apenas com gente de estirpe, gente
branca como a neve e portanto limpa. Depois partiremos para um outro setor,
não muito distante, dar continuidade à louvável incumbência
da Falange. E sem incompetências, como o que ocorreu na última
assepsia: tragam-me a beiçorra de cada corpo, para minha coleção.
Os litros com gasolina e os grilhões estão na garagem, sob a vigilância
do porteiro, aquele escória que por qualquer esmola de arroz e carne
se vende. Tanto melhor. Mas um pouco de estilo ao se corromper não lhe
faria mal. E, por favor, parem de esquecer a sequência correta quando
da execução da tarefa. Primeiro passo: ferros unindo pés
e mãos; segundo: cortar os lábios, para mim; terceiro: mordaça
bem feita; quarto: fogaréu. Difícil? À distância
estarei observando. Quero uma fogueira bem bonita com aqueles corpos podres
de negros, como fosse festa junina. Terminamos a reunião. Certamente
ninguém vai fazer pergunta estúpida ou considerações
descabidas. Levantem-se, bebam o que quiserem. Alguém estiver precisando
do pó, está escondido atrás do uísque. Mas sejam
rápidos que a madrugada corre.
- Princesa Branca...
- Pronto! Questionamento boçal a caminho! Já pensou bem antes
de fazer a pergunta, Dopey?
- Quando o Príncipe Encantado reunirá conosco?
- Nosso líder maior no Brasil e protetor está trabalhando muito
no Congresso Nacional. Provavelmente estaremos com ele no início do próximo
mês. Mas a pergunta... por quê?
- Isso é bom... Teremos tempo.
- Tempo, Grumpy? Queiram fazer-me o favor de dizerem coisa com coisa!
- É, sim. Tempo. Para ocultarmos bem o teu cadáver.
- Muito engraçado, Bashful, realmente hilário. Até parece
que meninos como vocês vão poder comigo, muito mais velha, treinada
para exercer o comando da Falange Branca de Neve... Conte outra piada, mas seja
rápido que estou sem paciência.
- Seremos bem ligeiros. Veja isto.
Janelas e cortinas e brisas e espelho e quadros e bar e lampião a gás
e tulipas. Todas as coisas que constituem a sala testemunham uma cena macabra,
impossível de ser narrada sem que se perca a fé no ser humano.
Ouviriam também um urro animalesco, bestial, mas a mordaça...
(22/06/2004)