Entretanto, só me é possível narrar os fatos todos exatamente
do jeito mesmo acontecido, porque as imagens pertencentes àquele tempo,
sépias e tristes, ainda muito sólidas. Porém, certo modo
coloridas, até com os odores específicos de cada cena. Como se eu,
testemunha única do início e do fim da história dele, ainda
estivesse viva.
De onde sempre fiquei antes que a morte... foi-me possível descortinar
por completo os sonhos todos e também as feridas que parasitaram impiedosas
o espírito sem âncoras, sem porto, muito à deriva para sustentar
a vida infeccionada e repleta de misérias, malogros que urubuzaram o cotidiano
daquele homem. Sujeito lavrador, sempre com pouco menos para sobreviver, infeliz.
Muito infeliz. E dor maior que a infelicidade é a plena consciência
dela. Porém, ele, sonhos intensos. Dum modo nunca antes visto em braçais
de lavoura, que os analfabetos têm alma gessada pelo medo e pela suspeição.
E, sonhando, delírios: única maneira de navegar as terras estrangeiras
onde eternamente senhor. Às favas para sempre, até o dia seguinte,
o canavial!!! Conhecer o mundo de verdade, porque a vida não poderia ser
apenas eterno sol e plantar e chuva e colher e... E?... Depois, nada mais? Seu
pai, homem colérico, injusto por diversão, que morreu pobre e banguela,
quase conseguiu alguma coisa na vida melhor que roça de cana para tratar,
mas... caturrice nunca foi boa conselheira, permitiu a sorte que lhe havia sorrido
escoasse por todos os ralos possíveis da estupidez. O destino pudesse caminhar
sua estrada natural, naqueles dias ele, filho, seria outro. Sequer próximo
de sua lamentável figura, pouco mais que boia-fria. Casa que não
parecesse de mentirinha, estudo, talvez um automóvel. Com certeza a felicidade,
esse alimento por que a alma é faminta e só se adquire comprando
caro no imenso empório da existência. Não, não havia
nascido para aquela vida bagaço de cana, ser prensado por engenho invisível.
Esses pensamentos, fantasmas que ainda sem paz, acompanharam-no todos os dias,
com maior ou menor força. Mas, à noite, soberana a presença
deles. As incontáveis frestas do casebre como portas de entrada, um tatibitate
sem fim. Ele na cama, a ideia dos pensamentos: tornar o sono dificultoso.
Porém, muitos sonhos acordado e intensos. Em companhia da certeza que nunca
abandonou o papel de protagonista em suas aspirações: apesar de
já caminhando no pântano dos cinquenta anos, sua vida não
poderia ser apenas aquilo, garapa amarga, sob pena de a justiça divina
não passar de conversa. Certamente profundas mudanças a galope,
portanto. Corrigir um erro histórico: ser tudo o que seu pai não
foi, tampouco permitiu ele fosse. Por obra dum orgulho ignorante da cabeça
aos pés, desses que cegam milhares vida afora. Nunca conseguiu, nas altas
e baixas marés do coração, oceanos sem tormentas suficientes
de modo a absolver o pai. Perdão? Fraqueza, lixo, desfalecimento do caráter!
Seu pai que morresse outras várias vezes, se possível fosse! Estaria
sempre dormindo em colchão de gente e, no entanto, sua casa de pau-a-pique,
improvisada, telhado de sapê! Inferno cachorro!
Meu ponto de observação foi sempre o mesmo e privilegiado: à
esquerda, o canavial onde ele trabalhou todos os santos dias com um mundaréu
de inúmeros outros caboclos, com a diferença que, dentre o povo,
apenas ele sonhos acordado e não raro em pleno eito; à direita,
aquele mar de morros enormes e sempre parcialmente ocultos por um cachecol de
neblina grossa, relevo por onde trem de passageiros caminhou pachorrento há
décadas, fumaceiras, chiando mais que moça asmática e sozinha
em noite de ventania gelada; à frente, o casebre pau-a-pique, construído
às pressas sobre um abandonadíssimo segmento de via férrea
que de lugar nenhum e para nenhum lugar. Assim, dois trilhos pela porta da sala
até transpor a parede adiante. E dali, de onde invariavelmente fiquei,
eu consegui enxergar, sem maiores esforços, seus sonhos que também
ferimento profundo, uma decepção que fez dele criatura rancorosa,
amargor. Sem nenhum amigo, portanto. Até para os incautos do canavial que
porventura tentaram aproximação à guisa de prosa amiga, ele
sempre teve rispidez verbal como resposta: nos matutos seu espelho insuportável.
Normais as noites em que o sono apenas com as primeiras nuances da madrugada.
Sempre os mesmos gestos: carrancudo, abrir as duas partes da janela construída
de bambu trançado, vadiar os olhos muito demoradamente pelo terreiro (só
às vezes conseguiu me distinguir), um escarro, uma praga, atirar longe
o Sabiá ainda acesso, nem sempre atenção à neblina
distante. Sob lume frouxo de vela, um muito pálido e quase morto exemplar
do "A Província", jornal de mil setecentos e alguma data, que
permanecera na família por muitas gerações. Relíquia
bisavó, talvez. Carinho especial pela coluna "Fragmentos Textuais
Dos Senhores Esopo e La Fontaigne". Não que conseguisse entender as
narrativas, analfabeto, e essa a fundamental revolta com a vida e com o pai. Contudo,
imaginação. Densa. Profunda. Os olhos seguindo palavra ilegível
após palavra ilegível, enquanto lábios mudos repetindo o
vocabulário ralo usado na lida. Então muito feliz com seus cenários
mentais, flores, diálogos, sons, bichos, coisas. O mundo, porque maravilhosamente
do avesso, respirável. Um novo planeta no qual soberano, juiz, polícia,
cidadão de bem, cabra pilantra também às vezes. Uma eternidade
retornar, pôr outra vez os pés no chão de terra batida. Pudesse
permaneceria sempre no mundo fictício, criando e refazendo situações;
manusear pessoas inventadas com a mesma habilidade adquirida com o facão.
Nutriu por essa brincadeira um sentimento... um sentimento... Ele Deus, como se.
Pai. Vingança primária, nenhum dos personagens considerado merecedor
de instrução. Apenas Ele. Ler, escrevinhar, continha. Discursos,
gravata e açúcar nas palavras, meio a capiaus bestificados com tanta
sabedoria. Um longo fiar de estórias tão bem mentiras que nenhum
deles imerso em desconfianças. Aquilo, sim, vida. Mas... inevitável
retornar.
Ciclo vital da madrugada: nascer altas horas da noite, dominar o canavial e todo
o ambiente, risonha com seus braços cruzados sobre o parapeito da janela
para, respeitosamente, observar as fantasias do homem pouco antes dele se fazer
outra vez atracado ao mundo real. Na terra onde o abecedário sempre foi
signos indecifráveis. Quando desses retornos à realidade, o olhar
em volta e não conseguir amortecer o impacto de universos tão antagônicos:
uma fada, madrinha; a outra, madrasta. Quase um desespero, pânico, como
ficasse subitamente aleijado dos quatro membros. Até chorava de raiva,
mas nem sempre. Apenas quando seu coração submerso demais em amarguras,
quando o mundo, inventado, excessivamente verdadeiro. De tal modo a parasitar
nele a plena certeza de não saber se aquilo tudo era mesmo sonho de alguém
cuja pretensão na vida apenas dominar a leitura duma cartilha, rir sozinho
ao tomar ciência de que vovô viu a uva. Quando o choro, também
os soluços, e o sono feito menino atentado que levou cinto de couro cru
no lombo.
A madrugada, mas não a aurora que ela não chegou a tempo, esteve
presente quando as estranhezas aconteceram todas em sequência. Houve
um primeiro apito de trem. Ele não percebeu certamente porque há
décadas o tempo das marias-fumaça morrera naquelas terras. Mas o
apito persistiu teimoso, distante, assombração. Logo após,
nuvens mal humoradas, com a urgência dum assalto bem planejado, encobriram
sem qualquer piedade todas as estrelas solteiras e até algumas constelações
vivas naquele terreno de céu sob o qual estávamos eu, ele no quarto
folheando o "A Província", os pés de cana. A locomotiva,
inexplicável, mais próxima. A cadeia de montanhas, que jamais teve
semelhante hábito porquanto tímida apesar de imponente, soprou lufadas
a princípio dóceis. No entanto, as massas de ar, aos poucos, cercaram
o casebre meio a algazarra e gargalhadas. Outros ventos, também baderneiros,
arrepiaram o canavial e algumas plantas menos corajosas preferiram rezas implorando
a eles misericórdia ou desabalaram fuga sem rumo para o mais distante possível.
Testemunhei muita cana-de-açúcar tropeçando nas próprias
pernas, no medo. Boa parte, entretanto, continuou. A casa como se fogueira em
torno da qual tribo indígena a dançar canções de guerra,
a ventania paulatinamente criou coragem. E também músculos. Assalto
ao quarto, tomou das mãos num rompante o jornal e com ele decidiu brincar
no terreiro, dois ou três metros de mim. Folhas para lá, folhas para
cá. E o apito do trem. Riram-se os ventos com força, satisfeitos
na maldade, um escarnecer. Como se urinassem sobre a fisionomia desamparada que
conseguiram estampar no rosto lavrador do homem. Que não entendeu o acontecido,
mas sentiu injustiça ter sua única felicidade furtada sem quaisquer
explicações. Correu para o quintal, pulos daqui e dali, tentativa
infrutífera de reaver o tesouro. Os ventos não permitiram, fazendo
com que apenas quase conseguisse alcançá-lo, meninos grandes e maus
a judiar dum garotinho. E o trem, gigante de tão próximo. O peito
aflito, a raiva um torniquete que o fez sangrar às lágrimas e lágrimas
doídas desceram olhos abaixo, pelo rosto envelhecido de tanto sol e frustração.
Cansaço, cansou. Batalha perdida, a natureza caprichosa seguramente levaria
para escuridões inalcançáveis o meio de transporte que o
conduzira várias vezes ao único mundo onde era, sem dúvida,
cidadão. O sofrimento dobrou-lhe os joelhos, chapéu de palha aperreado
contra o peito. Pelo-sinal três vezes, murmúrios ladainha como rezasse
por alguém morto. Mais que cansado, sentiu-se perfeitamente falecido. Destilou
quase um breviário por si mesmo, por seu corpo que não mereceria
morrer com a alma analfabeta. Ah, pudesse outra vida... escolher um pai que o
permitisse ouvir os segredos existentes nas linhas escritas, mas... se impossível
enxergar com os olhos da leitura as palavras, uma espécie de surdez também
se mostrou empecilho.
Quando ergueu os olhos para constatar o andrajo em que certamente o jornal, o
bom pai precisa ver pela última vez o corpo do filho, aquele papel amarelado
sempre foi sua única ligação com o que poderia ter sido na
vida, assustou-se. Rajadas súbitas e consecutivas fizeram do "A Província"
uma infinitude de papéis picados, que foram lentamente chover sobre a terra
úmida. Mas ele nem mesmo suspeitou detalhe fundamental: os rasgos não
eram aleatórios. Antes, palavras completas, caídas. Desesperado,
o amor costuma amamentar emoções assim quando a morte chega sem
convite e escancara seu gargalho fétido, desesperado e trêmulo, pôs-se
a cobrir, terra úmida pela madrugada longa, pedacinho por pedacinho. Enterrar
dignamente o sonho esquartejado. Mais tarde, quando mais cedo por causa do sol...
Gravetos e cipós, ergueria cruzes miúdas nas covas rasas. E o apito
do trem, altíssimo. Ainda assim ele não ouviu.
Os ventos morreram, nuvens libertaram as estrelas todas daquela parte do céu
no mundo, o canavial como se nada tivesse acontecido. A locomotiva. E os partos,
vidas nascendo: um incontrolável brotar de palavras, todas duma só
vez, ao meu redor, árvores, floresta. Imensos pés de verbos, preposições,
advérbios, artigos... Já nasceram adultos, mas conversa amistosa
entre eles uma raridade. Os verbos, verborrágicos, aos gritos fazemos e
acontecemos; os adjetivos, muito arrogantes, intrometeram-se no estilo de vida
simples dos substantivos; os advérbios, os de modo principalmente, mais
diplomáticos. Ele ficou criança, tamanho êxtase. Seus olhos,
lágrimas descrentes em tanta felicidade. O desejo invadir a floresta recém
nascida e com ela conversar, aprender tudo o que seu pai não deixara. As
conjunções adversativas quase lhe pediram a palavra a fim de lembra-lo
de um porém, mas...
A maria-fumaça atravessou a parede do casebre sem ao menos trinca-la, como
inexistisse. Sobre os até então inúteis trilhos que havia
no cômodo, resto dum passado remoto, passos lentos até despontar
porta afora. Muito satisfeita da vida, a locomotiva abriu largo sorriso emoldurado
por vasto bigode grisalho, enquanto, entre dentes, um cachimbo enfumaçadíssimo.
O convite amável: entrasse imediatamente num dos vagões, passeariam
floresta adentro. Ora, pois se não era essa a vontade? O canavial ouviu
e gritou não caia na armadilha, é viajem sem retorno! Mas ele entrou,
absoluto. E aí eu percebi claramente um esgar, maldade explícita,
traçado na fisionomia até então amiga da locomotiva. Um último
apito, quilométrico, ensurdecedor. Certa atmosfera de réquiem, de
sinos anunciando defunto em capela. As rodas puseram-se em movimento, muita fumaça.
Enquanto o trem aos tremeliques no solo já sem trilhos, as adversativas,
coro à plantação de cana, tentaram avisar: entretanto, entretanto,
entretanto, entretanto... E o trem, trincando de rir, traiçoeiro, da tramoia:
piuiiiiiiiiiiiiii.
Desapareceu na floresta de palavras e a floresta desapareceu assim que o último
vagão invadiu a mata. Quanto a mim, só me restou orar por ele e
permanecer no que sempre fiz: alimentação dos muitos pássaros
frugívoros que se fizeram meus amigos. Até o dia em que eu, mangueira
de manga-espada, já muito idosa, morri. E hoje o tempo... ah, o tempo...
desmanchou o casebre (mas não os trilhos) e matou o canavial.