A Garganta da Serpente
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Fábula

(Eduardo Selga)

Entretanto, só me é possível narrar os fatos todos exatamente do jeito mesmo acontecido, porque as imagens pertencentes àquele tempo, sépias e tristes, ainda muito sólidas. Porém, certo modo coloridas, até com os odores específicos de cada cena. Como se eu, testemunha única do início e do fim da história dele, ainda estivesse viva.

De onde sempre fiquei antes que a morte... foi-me possível descortinar por completo os sonhos todos e também as feridas que parasitaram impiedosas o espírito sem âncoras, sem porto, muito à deriva para sustentar a vida infeccionada e repleta de misérias, malogros que urubuzaram o cotidiano daquele homem. Sujeito lavrador, sempre com pouco menos para sobreviver, infeliz. Muito infeliz. E dor maior que a infelicidade é a plena consciência dela. Porém, ele, sonhos intensos. Dum modo nunca antes visto em braçais de lavoura, que os analfabetos têm alma gessada pelo medo e pela suspeição. E, sonhando, delírios: única maneira de navegar as terras estrangeiras onde eternamente senhor. Às favas para sempre, até o dia seguinte, o canavial!!! Conhecer o mundo de verdade, porque a vida não poderia ser apenas eterno sol e plantar e chuva e colher e... E?... Depois, nada mais? Seu pai, homem colérico, injusto por diversão, que morreu pobre e banguela, quase conseguiu alguma coisa na vida melhor que roça de cana para tratar, mas... caturrice nunca foi boa conselheira, permitiu a sorte que lhe havia sorrido escoasse por todos os ralos possíveis da estupidez. O destino pudesse caminhar sua estrada natural, naqueles dias ele, filho, seria outro. Sequer próximo de sua lamentável figura, pouco mais que boia-fria. Casa que não parecesse de mentirinha, estudo, talvez um automóvel. Com certeza a felicidade, esse alimento por que a alma é faminta e só se adquire comprando caro no imenso empório da existência. Não, não havia nascido para aquela vida bagaço de cana, ser prensado por engenho invisível. Esses pensamentos, fantasmas que ainda sem paz, acompanharam-no todos os dias, com maior ou menor força. Mas, à noite, soberana a presença deles. As incontáveis frestas do casebre como portas de entrada, um tatibitate sem fim. Ele na cama, a ideia dos pensamentos: tornar o sono dificultoso. Porém, muitos sonhos acordado e intensos. Em companhia da certeza que nunca abandonou o papel de protagonista em suas aspirações: apesar de já caminhando no pântano dos cinquenta anos, sua vida não poderia ser apenas aquilo, garapa amarga, sob pena de a justiça divina não passar de conversa. Certamente profundas mudanças a galope, portanto. Corrigir um erro histórico: ser tudo o que seu pai não foi, tampouco permitiu ele fosse. Por obra dum orgulho ignorante da cabeça aos pés, desses que cegam milhares vida afora. Nunca conseguiu, nas altas e baixas marés do coração, oceanos sem tormentas suficientes de modo a absolver o pai. Perdão? Fraqueza, lixo, desfalecimento do caráter! Seu pai que morresse outras várias vezes, se possível fosse! Estaria sempre dormindo em colchão de gente e, no entanto, sua casa de pau-a-pique, improvisada, telhado de sapê! Inferno cachorro!

Meu ponto de observação foi sempre o mesmo e privilegiado: à esquerda, o canavial onde ele trabalhou todos os santos dias com um mundaréu de inúmeros outros caboclos, com a diferença que, dentre o povo, apenas ele sonhos acordado e não raro em pleno eito; à direita, aquele mar de morros enormes e sempre parcialmente ocultos por um cachecol de neblina grossa, relevo por onde trem de passageiros caminhou pachorrento há décadas, fumaceiras, chiando mais que moça asmática e sozinha em noite de ventania gelada; à frente, o casebre pau-a-pique, construído às pressas sobre um abandonadíssimo segmento de via férrea que de lugar nenhum e para nenhum lugar. Assim, dois trilhos pela porta da sala até transpor a parede adiante. E dali, de onde invariavelmente fiquei, eu consegui enxergar, sem maiores esforços, seus sonhos que também ferimento profundo, uma decepção que fez dele criatura rancorosa, amargor. Sem nenhum amigo, portanto. Até para os incautos do canavial que porventura tentaram aproximação à guisa de prosa amiga, ele sempre teve rispidez verbal como resposta: nos matutos seu espelho insuportável.

Normais as noites em que o sono apenas com as primeiras nuances da madrugada. Sempre os mesmos gestos: carrancudo, abrir as duas partes da janela construída de bambu trançado, vadiar os olhos muito demoradamente pelo terreiro (só às vezes conseguiu me distinguir), um escarro, uma praga, atirar longe o Sabiá ainda acesso, nem sempre atenção à neblina distante. Sob lume frouxo de vela, um muito pálido e quase morto exemplar do "A Província", jornal de mil setecentos e alguma data, que permanecera na família por muitas gerações. Relíquia bisavó, talvez. Carinho especial pela coluna "Fragmentos Textuais Dos Senhores Esopo e La Fontaigne". Não que conseguisse entender as narrativas, analfabeto, e essa a fundamental revolta com a vida e com o pai. Contudo, imaginação. Densa. Profunda. Os olhos seguindo palavra ilegível após palavra ilegível, enquanto lábios mudos repetindo o vocabulário ralo usado na lida. Então muito feliz com seus cenários mentais, flores, diálogos, sons, bichos, coisas. O mundo, porque maravilhosamente do avesso, respirável. Um novo planeta no qual soberano, juiz, polícia, cidadão de bem, cabra pilantra também às vezes. Uma eternidade retornar, pôr outra vez os pés no chão de terra batida. Pudesse permaneceria sempre no mundo fictício, criando e refazendo situações; manusear pessoas inventadas com a mesma habilidade adquirida com o facão. Nutriu por essa brincadeira um sentimento... um sentimento... Ele Deus, como se. Pai. Vingança primária, nenhum dos personagens considerado merecedor de instrução. Apenas Ele. Ler, escrevinhar, continha. Discursos, gravata e açúcar nas palavras, meio a capiaus bestificados com tanta sabedoria. Um longo fiar de estórias tão bem mentiras que nenhum deles imerso em desconfianças. Aquilo, sim, vida. Mas... inevitável retornar.

Ciclo vital da madrugada: nascer altas horas da noite, dominar o canavial e todo o ambiente, risonha com seus braços cruzados sobre o parapeito da janela para, respeitosamente, observar as fantasias do homem pouco antes dele se fazer outra vez atracado ao mundo real. Na terra onde o abecedário sempre foi signos indecifráveis. Quando desses retornos à realidade, o olhar em volta e não conseguir amortecer o impacto de universos tão antagônicos: uma fada, madrinha; a outra, madrasta. Quase um desespero, pânico, como ficasse subitamente aleijado dos quatro membros. Até chorava de raiva, mas nem sempre. Apenas quando seu coração submerso demais em amarguras, quando o mundo, inventado, excessivamente verdadeiro. De tal modo a parasitar nele a plena certeza de não saber se aquilo tudo era mesmo sonho de alguém cuja pretensão na vida apenas dominar a leitura duma cartilha, rir sozinho ao tomar ciência de que vovô viu a uva. Quando o choro, também os soluços, e o sono feito menino atentado que levou cinto de couro cru no lombo.

A madrugada, mas não a aurora que ela não chegou a tempo, esteve presente quando as estranhezas aconteceram todas em sequência. Houve um primeiro apito de trem. Ele não percebeu certamente porque há décadas o tempo das marias-fumaça morrera naquelas terras. Mas o apito persistiu teimoso, distante, assombração. Logo após, nuvens mal humoradas, com a urgência dum assalto bem planejado, encobriram sem qualquer piedade todas as estrelas solteiras e até algumas constelações vivas naquele terreno de céu sob o qual estávamos eu, ele no quarto folheando o "A Província", os pés de cana. A locomotiva, inexplicável, mais próxima. A cadeia de montanhas, que jamais teve semelhante hábito porquanto tímida apesar de imponente, soprou lufadas a princípio dóceis. No entanto, as massas de ar, aos poucos, cercaram o casebre meio a algazarra e gargalhadas. Outros ventos, também baderneiros, arrepiaram o canavial e algumas plantas menos corajosas preferiram rezas implorando a eles misericórdia ou desabalaram fuga sem rumo para o mais distante possível. Testemunhei muita cana-de-açúcar tropeçando nas próprias pernas, no medo. Boa parte, entretanto, continuou. A casa como se fogueira em torno da qual tribo indígena a dançar canções de guerra, a ventania paulatinamente criou coragem. E também músculos. Assalto ao quarto, tomou das mãos num rompante o jornal e com ele decidiu brincar no terreiro, dois ou três metros de mim. Folhas para lá, folhas para cá. E o apito do trem. Riram-se os ventos com força, satisfeitos na maldade, um escarnecer. Como se urinassem sobre a fisionomia desamparada que conseguiram estampar no rosto lavrador do homem. Que não entendeu o acontecido, mas sentiu injustiça ter sua única felicidade furtada sem quaisquer explicações. Correu para o quintal, pulos daqui e dali, tentativa infrutífera de reaver o tesouro. Os ventos não permitiram, fazendo com que apenas quase conseguisse alcançá-lo, meninos grandes e maus a judiar dum garotinho. E o trem, gigante de tão próximo. O peito aflito, a raiva um torniquete que o fez sangrar às lágrimas e lágrimas doídas desceram olhos abaixo, pelo rosto envelhecido de tanto sol e frustração.

Cansaço, cansou. Batalha perdida, a natureza caprichosa seguramente levaria para escuridões inalcançáveis o meio de transporte que o conduzira várias vezes ao único mundo onde era, sem dúvida, cidadão. O sofrimento dobrou-lhe os joelhos, chapéu de palha aperreado contra o peito. Pelo-sinal três vezes, murmúrios ladainha como rezasse por alguém morto. Mais que cansado, sentiu-se perfeitamente falecido. Destilou quase um breviário por si mesmo, por seu corpo que não mereceria morrer com a alma analfabeta. Ah, pudesse outra vida... escolher um pai que o permitisse ouvir os segredos existentes nas linhas escritas, mas... se impossível enxergar com os olhos da leitura as palavras, uma espécie de surdez também se mostrou empecilho.

Quando ergueu os olhos para constatar o andrajo em que certamente o jornal, o bom pai precisa ver pela última vez o corpo do filho, aquele papel amarelado sempre foi sua única ligação com o que poderia ter sido na vida, assustou-se. Rajadas súbitas e consecutivas fizeram do "A Província" uma infinitude de papéis picados, que foram lentamente chover sobre a terra úmida. Mas ele nem mesmo suspeitou detalhe fundamental: os rasgos não eram aleatórios. Antes, palavras completas, caídas. Desesperado, o amor costuma amamentar emoções assim quando a morte chega sem convite e escancara seu gargalho fétido, desesperado e trêmulo, pôs-se a cobrir, terra úmida pela madrugada longa, pedacinho por pedacinho. Enterrar dignamente o sonho esquartejado. Mais tarde, quando mais cedo por causa do sol... Gravetos e cipós, ergueria cruzes miúdas nas covas rasas. E o apito do trem, altíssimo. Ainda assim ele não ouviu.

Os ventos morreram, nuvens libertaram as estrelas todas daquela parte do céu no mundo, o canavial como se nada tivesse acontecido. A locomotiva. E os partos, vidas nascendo: um incontrolável brotar de palavras, todas duma só vez, ao meu redor, árvores, floresta. Imensos pés de verbos, preposições, advérbios, artigos... Já nasceram adultos, mas conversa amistosa entre eles uma raridade. Os verbos, verborrágicos, aos gritos fazemos e acontecemos; os adjetivos, muito arrogantes, intrometeram-se no estilo de vida simples dos substantivos; os advérbios, os de modo principalmente, mais diplomáticos. Ele ficou criança, tamanho êxtase. Seus olhos, lágrimas descrentes em tanta felicidade. O desejo invadir a floresta recém nascida e com ela conversar, aprender tudo o que seu pai não deixara. As conjunções adversativas quase lhe pediram a palavra a fim de lembra-lo de um porém, mas...

A maria-fumaça atravessou a parede do casebre sem ao menos trinca-la, como inexistisse. Sobre os até então inúteis trilhos que havia no cômodo, resto dum passado remoto, passos lentos até despontar porta afora. Muito satisfeita da vida, a locomotiva abriu largo sorriso emoldurado por vasto bigode grisalho, enquanto, entre dentes, um cachimbo enfumaçadíssimo. O convite amável: entrasse imediatamente num dos vagões, passeariam floresta adentro. Ora, pois se não era essa a vontade? O canavial ouviu e gritou não caia na armadilha, é viajem sem retorno! Mas ele entrou, absoluto. E aí eu percebi claramente um esgar, maldade explícita, traçado na fisionomia até então amiga da locomotiva. Um último apito, quilométrico, ensurdecedor. Certa atmosfera de réquiem, de sinos anunciando defunto em capela. As rodas puseram-se em movimento, muita fumaça. Enquanto o trem aos tremeliques no solo já sem trilhos, as adversativas, coro à plantação de cana, tentaram avisar: entretanto, entretanto, entretanto, entretanto... E o trem, trincando de rir, traiçoeiro, da tramoia: piuiiiiiiiiiiiiii.

Desapareceu na floresta de palavras e a floresta desapareceu assim que o último vagão invadiu a mata. Quanto a mim, só me restou orar por ele e permanecer no que sempre fiz: alimentação dos muitos pássaros frugívoros que se fizeram meus amigos. Até o dia em que eu, mangueira de manga-espada, já muito idosa, morri. E hoje o tempo... ah, o tempo... desmanchou o casebre (mas não os trilhos) e matou o canavial.

  • Publicado em: 10/01/2005
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