"Quem escreveu este amontoado de páginas e páginas, eu o
conheço muito bem. Está muito feliz da vida ele, enfim meu primeiro
livro de contos sairá do projeto! É verdade, nem mesmo se constrange
ao classificar quase setenta páginas de asneira sem inspiração
como literatura. Descarado, solicitou a um amigo, respeitável catedrático
em Língua Portuguesa, que lhe fizesse o obséquio de redigir o
prefácio. Sim, eu preciso de um prefácio, caso contrário
a obra resultará incompleta. Sei... Na verdade, mentira: incompleta vai
ficar a presunção dele caso inexista um intróito elogioso,
confetes e serpentinas, fanfarras verbais. Mas que pecado! Minto! Para sermos
fiéis aos fatos, é preciso rever algumas palavras ditas acima:
ao pé-da-letra não foi um pedido, desses que se fazem de amigo
para amigo: foi uma compra. Pagou caro pelos elogios de encomenda. O professor
fez cena, fingiu impossível aceitar. Mas o que é isso... afinal
somos amigos desde os tempos do primário, assim você até
me ofende... Em absoluto, cá está o pagamento. Muito lógica
a atitude: precisava garantias de que o texto seria elogios do início
ao fim.
Ah, sim! Perdoe-me os modos deselegantes, grosseiros mesmo. Confesso e me penitencio.
Iniciar conversa com você, leitor, sem que ao menos minha pessoa seja
devidamente apresentada. Mas há perdão: é a falta de convivência
social. É que Eduardo Selga, quando deu a luz a mim num conto, o fez
de maneira muito incompetente, preocupando-se em narrar-me apenas com características
psicológicas. Fingiu esquecer eu precisava de um nome, um rosto, uma
vestimenta. Então fiquei anônimo, mascarado, nu. Um personagem
incompleto, perrengue. A isso ele chama estilo, é possível crer?
Falta de habilidade com as palavras, agora, tem esse apelido simpático...
Estilo... De modo que existo apenas em parte. Não da maneira como você,
leitor, está acostumado ao ler bons autores. E é exatamente o
que mais me dói. Esse não-existir de verdade, ser apenas um...
um... eflúvio, digamos assim. Não poder ir ali, na esquina tem
um botequim genial, ir ali e bate-papear com todos, descobrir graça nalguma
conversa alheia... Sonho! Ele, esse autor meia-pataca que atende pelo nome de
Eduardo Selga, sequestrou-me tal prerrogativa. Contudo, a forma que possuo
hoje é bastante para que atinja meus objetivos de vingança. Sim,
leitor, eis uma ótima definição para mim: vingança.
De todos os personagens que esse pai filho-de-uma-boa-comadre já criou
na vida, eu (justamente eu!) sou o único que não mereceu um futuro,
uma estória que chegasse a termo! Por sinal, o conto em que fui nascido
era até mais ou menos. Mas aí... Vá entender cabeça
de artista... A insônia sentada ao lado da escrivaninha, a noite ia alta
e quase se aproximando do encontro diariamente marcado com a madrugada, aí
de repente a lua dele virou avesso. Sem maiores explicações, passou
a sentir ódio pelo conto. Quase o rasgou. Porqueira! O enredo não
desata! Onde a alma do texto?! Cadê a pujança que esperava da trama?!
Preciosismo dele... Estava indo até bem: Semiconstruiu-me escritor famoso
e bajulado pela mídia, todo livro que eu lançava era o primeiro
nas listas dos mais vendidos. Ah, leitor... não imagina como é
saborosa a certeza do sucesso... Tenho saudades daquele texto... Repentinamente,
por um capricho de autor excêntrico, atirou-me com raiva na gaveta e lá
fiquei esquecido por meses. Sofrendo a solidão involuntária, a
vida pulsando inútil porque sem ter como se manifestar. Agora está
com narizinho muito em pé, conseguiu editora que aceitasse os textos
de qualidade duvidosa. E eu não farei parte do livro?! Nunca! De alguma
maneira vou mostrar-lhe minha existência, a tolice que fez ao não
me concluir. Fugi daquele fedor insuportável de naftalina, daquela noite
eterna e fria e injusta, para levar a efeito minha vingança. Vingança
mais do que obrigatória: nenhum escritor tem o direito de não
permitir um seu personagem experimente a plenitude da vida ficcional, mesmo
que morra em algum parágrafo. Pois bem: ele mal me completou!... É
só assim, ficar histérico na trigésima segunda linha e
mandar tudo às favas, ao limbo, ao nada?! Não, meu caro Eduardo
Selga... Há um tributo a ser pago... Por isso invadi o que todos chamam
realidade.
Sem expressão física definida, sem traços fisionômicos,
chegar até aqui foi bobagem. Não houve esse um que conseguisse
pôr os olhos em mim. Saí da gaveta, rua, ônibus, metrô,
alameda (palmeiras imperiais), a casa do professor é requintada na arquitetura.
Janela sorridente, pulei. Corredor, cadê ele, na sala não estava,
no quarto muito menos, despovoamento em cada cômodo, tantos móveis
lindos para quem, consegui descobri-lo na biblioteca. Solteiro, míope,
silencioso. Óculos para ler os originais medíocres do livro a
fim de preparar o texto encomendado, enquanto bebia café numa caneca
ágate e fumegava entre os lábios cachimbo asqueroso. Embora não
pudesse me enxergar, percebeu havia uma presença ali. Virou-se rapidamente,
susto. Longos minutos observando através de mim, acompanhou-me durante
quase todos meus passos em direção a ele. Eu, heim!... Poderia
jurar que vi alguém parado na porta, como quisesse... Asneira! Perder
tempo com ilusões de ótica! Caduquice de velho! A idade vai chegando...
E riu leve, desassombrado. Ótimo. Aproveitei para pôr um sonífero
no café, em três tempos o homem adormeceu sobre os papéis.
Feito criança. Até resmungou sonhos. Pronto! Quem escreve o prefácio
sou eu, colega. Nem nome eu tenho, mas sou eu.
Se as palavras acima foram demasiadas, também serão essenciais
para o entendimento das próximas, que vêm logo a seguir. Caro leitor,
não se deixe iludir pela arte gráfica da capa, nem pelo título
atraente. Em literatura toda a importância está no conteúdo,
na moral-da-estória edificante, na linguagem direta porque facilmente
compreensível. Eis o diferencial entre grandes e inexpressivos escritores.
Afinal, leitor, por que confundir sua compreensão com anacolutos, elipses,
prosopopeias, silepses...? Eruditismo arrogante, que mais explicaria?
Esse tal de Eduardo Selga, por exemplo, cujo livro de estreia o caro
leitor acaba de abrir e provavelmente folhear, nada acrescenta ao panorama contemporâneo
das letras brasileiras. Mais uma obra sem brilho, apenas. Lógico, onde
sua estrela?... Na verdade, não possui as características dum
escritor, no sentido mais amplo do termo. Não seria demais admitirmos
estamos diante de uma farsa literária. Sim, Eduardo Selga é um
farsante. Santa ilusão, está firmemente convencido de que é
escritor. Contudo, possui estilo afetado, pedante, com excessivo valor à
forma em sacrifício do enredo. Aliás, o coitado não sabe
o que vem a ser um bom argumento: consegue tropeçar no próprio
verbo, criança que está aprendendo os passos iniciais e ainda
não tem firmeza nas pernas. E as tramas? Ou banais em excesso ou completamente
inverossímeis! Em ambos os casos, há debilidade, ou seja, os fatos
são mal encadeados, levando o leitor, ao término da leitura, à
suspeita de que algo ficou por ser esclarecido. E a desconfiança é
exata. Mais que isso: ao Eduardo Selga falta-lhe tudo, inclusive talento para
conseguir escrever algo que encante, palavras macias que nos enlevem, que enterneçam
nossos corações. Mas o homem parece ter raiva da vida!... É
incapaz de falar do amor romântico, por exemplo. Seus temas estão
sempre relacionados com o lado escuro da alma humana, coisa mais asfixiante!
Construir personagem é arte que ele não domina. Todos mal feitos
e capengas, descritos apenas pelo psicologismo. Só têm sentimentos
e características interiores. Mas são banguelas? Bem vestidos?
Gordos? Cor de pele? Cabelos pixains ou não, ninguém toma conhecimento...
Uma vez, questionado por um amigo sobre essa falha, ele nem pensou duas vezes:
aspectos físicos são, na maioria das vezes, irrelevantes! Estilo,
meu caro... estilo! Estilo... Para mim o nome disso é outro."
Missão cumprida! Vinguei-me no prefácio! A felicidade que estou
sentindo, se aumentar meio centímetro não caberá em mim!
É como... como um uirapuru cantando empoleirado aqui, peito adentro.
O desejo que me invade é sair correndo pelas ruas, abraçar as
pessoas, beijar as crianças. Chutar, com a alegria de quem cobra pênalti
decisivo, o primeiro cachorro lazarento que surgir pela frente. Rojões
à vida! Mas... Minto-me! Qual vida, se de fato não a possuo? Por
mais feliz que esteja de verdade, eu não existo na verdade! Droga! Maldições!
Eu ainda não sou! E agora? Retornar ao universo sem mundo daquela gaveta
escura? O que faço agora com este meu vazio existencial, que, contínuo,
continua... e continua...?
(01/07/2004)