A Garganta da Serpente
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Enredo

(Eduardo Selga)

A algazarra daqueles poucos dias era sempre o melhor de sua vida durante o ano, em todos os anos-solidão. Nem aniversário (quem cantaria "parabéns a você", homenageando um homem abandonado?), nem natal (onde os parentes?), ou qualquer outra data comemorativa. Nas ruas do bairro, apenas quando fevereiro, a única ocasião em que alcançava alguma felicidade real. Embora, pés no chão sempre os teve, soubesse jamais ultrapassaria a barreira dos três dias o prazer. No resto do ano, cinzas. Conseguia deslembrar a tristeza sob controle que era viver só, irremediavelmente distante da família, acompanhado apenas de sua alguma cultura, de sua dúzia de escritores; o macarrão instantâneo e insosso, lavagem disfarçada. Sempre o mesmo cardápio. Mas era o que sabia fazer junto ao fogãozinho, duas trempes; a incompetência para persuadir mulheres, de modo que a masturbação era sua única fonte de orgasmo. Como eram mesmo os sabores dos aromas nas curvas femininas? Aos porcos esta vida imunda! Gostoso era ouvir os repeniques atravessando a epiderme, o baticum dos tamborins acelerando o coração machucado e, acima de tudo, sambar à vontade. Não possuía a exata consciência disto, mas a dança era sua melhor maneira de esconjurar os inúmeros satanases que o parasitavam. Mais eficiente do que o álcool de ordinário utilizado. Todos os anos travestido da mulher e meretriz que sempre o habitara e que vez por outra lhe exigia espaço para manifestar-se. Cujos trejeitos, porém, quando à luz do sol, seu lado masculino abafava. A muito custo. E se em todo santo carnaval o homem quase não tinha voz, especialmente naquele emudecera: havia alcançado um dos mais inconfessáveis desejos, ser porta-bandeira da agremiação da qual fora um dos idealizadores. Como não possuía capacidade para nenhum instrumento, sempre acompanhava o Bloco São Longuinho das Perdidas nas últimas fileiras. A fundamental aguardente, garrafa cheia, numa das mãos.

Nem mesmo a primeira das inúmeras encruzilhadas havia sido vencida pela multidão, pequena ainda. Eram aqueles subempregados ou vadios que, fiéis em séquito profano, sempre davam consistência à sopa rala que eram as vozes em uníssono dos ritmistas, fazendo com que, ano após ano, quase o bairro inteiro saracoteasse na cadência dos sambas-enredos. Mas algo incomum estava acontecendo. Sentia, inobstante convicto encontrar-se no mesmo passo de todos os outros componentes, o Bloco cada vez mais rápido. Cada vez mais longe. Tanto assim que em poucos minutos já não escutava nem mesmo o surdo. A fantasia Pomba-Gira e a bandeira pesavam, mas tentou correr, reintegrar-se. As sandálias femininas não eram obstáculo, acostumado pela volúpia de usá-las uma vez por ano ou ocasionalmente quando muito solitário ou induzido pela vagabunda que nele havia. No entanto, os bares e os postes e as casas (mas não a rua Brasileiros da Silva) passavam por ele sem que avançasse centímetro rumo ao grupo. Vários rostos conhecidos, minutos antes mais ou menos ocultos pelas máscaras e dançando dentro ou fora do cordão, faziam o caminho inverso. Passeavam, comportamento e roupas próprios de um dia igual a qualquer outro, tranquilas. Ou enlameando a vida alheia, ou cê viu us dois golão di Fulanu nu crássico di onti?, ou us ôinsbu daqui num cumpri us horáriu neim a podê di reza. Ele tentava cumprimentar alguém, pode me esclarecer o que está acontecendo?, mas não havia um quem respondesse. Subitamente ignorado no bairro onde nascera e toda a sua vidinha fora construída. Muitos estranhavam aquele homem, cachaça, bandeira sem mais aquela, travestido de Pomba-Gira. E eram vizinhas, notórios alcoólatras, garotos que invadiam seu quintal a fim de resgatar pipas...

- Dona Generosa, chega aqui! Seu Adroaldo, faça o favor! Ei, Lelé! Você não me conhece mais, caramba?!

Indignado, palavrões abundantes e dirigidos a todos os que passavam por ele sem ao menos um aceno ou outro gesto educado. Não ouviam mesmo ou era fingimento? Arrancar as sandálias de salto, atirá-las naqueles falsos, pretensiosos sem um pedaço de trapo para cobrir a bunda durante o sono. O espanto o impedia: eles fossem neblina que aos poucos se esvai, lentamente desapareciam. A cada passo. Junto com os elementos em torno. Tudo, exceto a Brasileiros da Silva, evaporava. Garrafa ao chão, câmera lenta, sem que ele se desse conta. Aparvalhado. Testa franzida, boquiaberto, raciocínio obstruído pelos fatos, ao mesmo tempo em que as coisas e as pessoas iam deixando de existir. Mas a garrafa não se estilhaçara. Quando se apercebeu no vácuo, apenas ele e o caminho até então utilizado como passarela, quis gritar. Meio assombro, meio horror. Que assumiu proporções sem medidas quando a rua começou a esticar ininterruptamente seu cumprimento, fazendo curvas e ladeiras e subindo e descendo. No vazio e no silêncio absolutos. Fechasse-abrissse os olhos por um ou dois instantes tudo retornaria ao normal? Boa parte do líquido escorreu e no asfalto, à suas costas, a poça desenhou uma forma ligeiramente humana.

Quando fez menção erguer as pálpebras, esperança enxergar apenas a normalidade, ouviu muito nitidamente o vozeirio grave de tambores. Próximos. O Bloco voltando? Virou o rosto e parte do tronco num súbito, o caos estava completo: a mesma percussão de segundos antes inexistia, tudo à sua frente era como uma enorme pintura impressionista colorida em excesso e apenas num plano dimensional. Onde a moldura? Pergunta sem resposta. Estranho... pois se estava conseguindo discernir até a textura da tela!... E agora, fazer o quê se atrás, provavelmente ainda a rua enlouquecida e se autoconstruindo no vácuo? Seguir, embarcar numa pintura, e me transformo em personagem, desenho imóvel? Ouvidos atentos, nenhum vestígio do pessoal. Tampouco o silêncio zunzumbizava.

- Miséria! É alguma brincadeira, Deus?

Da garrafa caída a aguardente entornada, e dela... Pasmo num crescendo de quem a única pretensão era, naqueles dias para os quais o calendário ordenava felicidade sem cabrestos e divertir-se até o esgotamento tomar conta do corpo... e dela fez-se um mestre-sala. Caprichadíssima vestimenta, dançarino impecável, gingando à sua volta. Mas o rosto semicoberto por varejeiras às centenas, que só não ocultavam onde deveria estar a boca. Ali uma caricatura tosca, improvisada à base de hidrocor rosa, arremedo dum sorriso escancarado e com todos os incisivos, caninos, molares... Esta figura mais parece excremento das vísceras infernais!

- São Longuinho das Perdidas, orgulhosamente, vem apresentar a história de um homem e sua mente que só sabia viver de sonhar...

- Como pode cantar o samba-enredo do Bloco, se nem mesmo boca possui? Aliás... poderia, por favor, dizer quem é você, coisa anormal?

- Eu? Sua aguardente, quem mais? Não alcançou ainda, meu pobre infeliz? Aquela mesma: minimiza as dores provocadas pelos infortúnios há anos cavalgando em seu cangote. Mas, enfim... nenhuma estranheza: desde sempre teve vocação para jumento; aquela mesma: potencializa desproporcionalmente os raros momentos alegres. Mas, chega! Vamos ao que interessa, de fato. Por favor, adentre. Medo por quê? Segura firme minha mão enquanto atravessa a fronteira entre o vácuo e as cores. Cautela com a altura dos saltos. Erga um pouco a saia-cigana. Calma, assim vai exibir a calcinha que você costuma usar lá uma vez ou outra, mesmo sem carnaval. Olha a depravação! Encarcere em definitivo essa vadia que nunca lhe deu sossego! Agora entra.

Todas as palavras ditas sem esquecer o balé característico dos mestres-salas: trejeitos de corpo e pernas, mesuras, esplendor todo plumas e paetês. Sacudir as cores quentes do leque. Coreografia bem ensaiada estilizando o ato de proteger a imitação de porta-bandeira. Ainda que em nenhum momento a criatura tenha ao menos tentado esclarecer qual a feitiçaria utilizada para cantar e falar, porquanto sua boca não passava duns traços rascunhados na pele, impossível resistir ao poderoso fascínio que o coisa exercia sobre ele. Certamente a mulherzinha fácil de sempre permitindo apaixonar-se outra vez pelo primeiro macho que surge? Sim, mas... aquilo seria mesmo um homem? E não fosse? Desimportante, na verdade: estava encantado e resolvido a acompanhá-lo, a entrar naquele quadro misterioso. Quem sabe agindo assim encontraria o Bloco, ou esclarecimentos para tantas impossibilidades a comer-lhe os miolos aos poucos.

Bastou o mestre-sala tomar levemente sua mão e sugerir, gesto doce, beijá-la próximo ao anel de falso rubi, gesto comum a uma espécie de cavalheiro já extinta nos dias quotidianos, no intuito de fazê-lo vencer a fronteira entre ambas as terras... Foi o quanto bastou para que ele sentisse um forte incômodo nas carnes do corpo travestido. Alguns músculos estremeciam, suores frios, ereção, uma absurda certeza de sangue congelando nas veias. Ai, que horror, vou desmaiar! Necessidade urgente beber álcool e mais álcool até a última gota, e só então percebeu a garrafa vazia no chão. Inteira. As artérias dos pulsos e pescoço latejando como o sangue quisesse romper a carne, jorrar.

- Calma... tranquilidade... Não é nenhum fim de mundo. Ainda. Pode vir. Absolutamente normais em pessoas com o seu psiquismo, estes sintomas físicos. Mas existe cura. Tão rapidamente quanto se manifestaram, eles podem desaparecer. Entra, e tudo estará colorido. Vem.

Houvesse alguém atento à cena, concluiria, sem muitas margens para dúvidas, eram inseparáveis amigos desde talvez a meninice, posto que perdera todo e qualquer fragmento de medo ou repugnância. Ao contrário: uma serenidade... Experimentava uma delícia nas vizinhanças da paixão mais arrebatadora. Até mesmo o nojo pelas varejeiras parecia inexistir. É que sua metade mulher, pouco ou nada exigente, adorou a gentileza, o cavalheirismo daquela aberração viva. Ah, pudesse beijá-lo... seria a maneira perfeita de agradecê-lo. Não... melhor manter o silêncio, falar em pensamento e com os olhos. Talvez ouça. Está muito bem... você me convenceu, vejamos se entrando aí a minha vidinha passa a merecer algum vintém. Fascinação, entrou. Como se nada. Mas quando as sandálias pisaram o interior da tela impressionista sem rubrica de autor, muito claramente a ele parecia não ter saído do lugar: leve... leve... Em excesso. Mágica? Eu não mais carne e osso e frustrações? Impossível! Deixara fugir o norte, e justamente por isso aborrecido. Palavrões em tom de sussurro. Volveu o rosto num muxoxo. Notou, além da rua aumentando infinitamente seu tamanho e abarrotada de curvas, uma cena cujo significado não conseguia alcançar: próximo à garrafa de aguardente, fora do quadro, seu corpo travestido e desmaiado. Deus Santíssimo! Então... eu aqui e ao mesmo tempo lá?!... Estou... espírito neste cenário feito a pinceladas dalgum autor anônimo? Mas se aqui estou com a mesma roupa, a mesma Pomba-Gira!... Queria esclarecimentos categóricos do mestre-sala, mas cadê? Sumira. Sumiu?! A loucura deve estar tomando conta...

Instrumento por instrumento, escutava muito nitidamente toda a bateria. Das notas musicais graves às agudas. Repeniquetamborimrepeniquetamborim... Surdão! Ganzá! Ganzá! Tamborim... Ganzá! Chocalhochocalhochocalho. Como era gostoso sentir aquela música... Parecem estar aqui, à minha volta! Sorriu alegre e sereno ao distinguir, adiante, numa encruzilhada, os foliões, os ritmistas, o samba-enredo cuja letra ele havia produzido sozinho nas noites mais embriagadas dos quatro ou cinco meses anteriores. Se Paulo Mendes Campos me permite o uso do neologismo criado por ele... a sozinhez, essa mulher que ama a si mesma e a mais ninguém, ao menos conseguiu inspirar-me. Disputou contra outros cinco letristas, velhas raposas, e só venceu porque a diretoria não permitiu politicagem de bastidor. E o melhor: poucos ensaios e logo os entusiastas do samba no bairro já estavam cantando minha letra e a melodia que um colega, majestade no cavaquinho, criou.

- Até que enfim, achei!

E foi ao encontro de todos, em direção à encruzilhada. Sambando e cantando, engolido pelo prazer, rodopios. Uma das mãos na cintura. O mundo estava feminino e, consequentemente, melhor. Até a bandeira do Bloco era felicidades. Euforia além do normal, sequer notou duas inconsistências: aquele entroncamento, de fato, nunca existiu no bairro; não apenas ele fazia movimentos circulares: também todas as coisas em redor, em sentido oposto ao seu. E num ritmo acelerado. Quando chegou, outra vez as peças do quebra-cabeça não se encaixavam: nenhuma viva alma. Fossem colegas do Bloco ou foliões. Havia, pelo contrário, enorme cetim vermelho e sobre ele o seu corpo desfalecido. Mas que brincadeira é esta? Meu corpo não estava do outro lado deste quadro, caído na rua que só fazia crescer aleatoriamente? Vários alguidares em torno. Alguns com labaredas altas, outros com farofa; champanhes, rosas, muitos maços abertos de cigarros caríssimos, contas pretas e vermelhas formando colares. Irritado, atirou para longe a bandeira do Bloco. Mas ela subiu, navegou no ar, foi às nuvens pinceladas, desceu, e acobertou seu corpo inconsciente no despacho. Sem muito mais a fazer, riu do destino irônico. A intenção era um sorriso desalento, mas foi transformado em segundos numa gargalhada tétrica.

- Acorda!

- Heim?! O que faço aqui, deitado no asfalto?

- Dormiu. Até sonhou. Canseira de tanto esperar o Bloco sair?

- Deveriam ter me chamado.

- Preferimos não. Lembra que estávamos só esperando nosso mestre-sala chegar? Pois é. Ele foi encontrado com vários tiros pelo rosto e sem os lábios naquele bananal logo na entrada do bairro. Só há pouco conseguimos substituto. Agora levanta, tira o que está sujo em sua porta-bandeira. Já vamos sair. O itinerário de sempre: daqui entramos na Brasileiros da Silva, passamos em frente à casa daquele artista plástico que é macumbeiro, damos a volta pelo bairro e terminamos aqui. Falar nisso, esta roupa preta e vermelha, combinando com as sandálias... você ficou lindo, sabia?

- Lindo não: lindérrima, querido...

- Ih... Incorporou a personagem, é? Cuidado.Você acaba gostando... essas coisas pegam. Atenção, bateria do São Longuinho das Perdidas! Um, dois e...

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