- Engenheiro! Todo o mundo, acorda! Eu estava lá na superfície,
à caça de ratazanas e escorpiões para a festinha dos meus
quarenta e três anos amanhã, e eles apareceram! Do nada! Assombração,
esses putos! Devagar, sem barulho, os holofotes apagados. Tenho quase certeza
de que me viram, mesmo à distância. Aqueles cães rastreadores!
Porra! Será possível que nem mesmo aqui no subterrâneo a
gente consegue alguma tranquilidade, fugir desses animais da Limpeza Pública?!
Azulturquesa sempre foi exagerado no falar, muito gestual, aguaceiro em copo
d'água. Mas naquela meio-tarde-meio-noite ele com certeza estava, esforço
nítido, procurando transmitir a urgência com a maior fidelidade
possível. Até porque, nunca foi homem afeito a brincadeiras de
gosto duvidoso. Mentiras muito menos. Artista plástico inigualável
até ser decretado Inútil pela Sociedade Mundial Oficializada,
daí seu codinome entre nós os quatro que habitávamos em
conjunto aquele buraco escavado na parede do metrô intermunicipal com
assessoria arquitetônica de carcerários fugitivos da execução
no Abatedouro, artista plástico, por vezes perdia o fio da meada duma
narrativa, adicionando tintas particulares para colorir os relatos quase sempre
cinzentos de sua existência. Mas era divertido. Considerávamos
essa particularidade muito mais licença poética do que propensão
a embustes. Seguramente aquele alarme era verídico. Precisávamos
encontrar novo local seguro, portanto.
Corremos todos. Ou quase. É que os cambitos de Azulturquesa não
obedeciam à sua vontade apaixonada de preservar a vida. Nunca entendi
tamanho entusiasmo. Vidinha, porcaria infeliz, mas... E ele gritava tanto que
eu sentia um rasgo no precário coração ainda no meu peito.
E ele urina, fezes ralas, lágrimas grossas, enquanto o mundaréu
de Autorizados corria em sua direção. Revólveres, punhais,
outras armas permitidas. Poderiam, quisessem, videofonar à Polícia
Social. Ele, oficialmente, seria recolhido ao Calabouço-Mor e então
outra vez a quietude na metrópole. Embuste! Farsa do Estado! O destino
mesmo, o Abatedouro Central. Mas perderiam eles o ensejo de conseguir proteínas
gratuitas por quê? Carne magra, muita pele e pouca fibra. Proteínas
vagabundas, entretanto se fossem aos Açougues Reconhecidos gastariam
uma pequena dinheirama. Além do mais, a sombra da punição
por homicídio inexistia: a morte de Inúteis como nós, os
quatro, ainda que inaproveitados pelo Abatedouro, não significava prejuízo
relevante à Sociedade.
Até por que eu conhecia minha culpa no assassinato, dificílimo
esquecer a pintura do horror na expressão de Azulturquesa momentos antes
de retalhado. Não! Por favor, não! Quero viver! Sacou dos bolsos
pincel e tintas, ajoelhou o corpo mortiço entre súplicas ininterruptas,
braços erguidos e rosto como quem implora auxílio à divindade.
Para onde escorrera o sólido ateísmo dele? Com a velocidade habitual,
principiou a traçar na plataforma de embarque sua última obra.
Acanhada, quase conseguiu pintá-la por completo. Teria sido um Jesus
Cristo, pelo rápido que percebi. O único em toda a carreira artística.
Urrava dores inacreditáveis a cada vez que as lâminas dilaceravam
seu corpo esquelético. Ouvi cinco ferimentos. Com certeza mais, entretanto.
Além dos tiros. Eu já estava na metade da escada, passagem à
superfície onde seria preso, quando emergiu força para interromper
a fuga e mirar os olhos mais detalhadamente em meu amigo. Todo retalhado. Alguns
mastigando ali mesmo suas partes, gargalhadas felizes. Hienas pós-contemporâneas.
Outros ensacolando músculos, mãos, nádegas... E, procedimento
tornado prosaico devido às minhas descobertas na Universal Foods Inc.,
no mínimo uma dúzia sorvendo de canudinho os sais minerais existentes
no sangue do cadáver, artérias escancaradas. Até gostava
dele, mas adiantaria bulhufas tentar defendê-lo contra aquela súcia.
Minha morte antecipada em vinte e quatro horas, se tanto. Mas ao menos ímpeto
chorar sincero eu deveria sentir. Nem isso!... Apenas lamentei. Protocolarmente.
Como quem pêsames à avó do colega da madrasta. Quis dar
início a uma reza sem fé, mas o metrô, silencioso. Portas
abrindo. Um mar desembarcando, burburinho educado. Degustação
interrompida, entraram. Sossego. Nada tivesse acontecido. O trem subterrâneo
acelerou cheio. O vazio. Apenas um resíduo de corpo na plataforma.
O esquartejamento a poucos metros, cicatriz aberta de minhas atitudes equivocadas
num passado vizinho. Cuja história esforçava-me ao máximo
para ocultar deles, parceiros no infortúnio. Até por questão
de sobrevivência: acaso soubessem, é certo seria espancado à
morte. Muito provavelmente, concluo hoje que a morte está próxima,
galope puro-sangue, ainda residem em mim escórias da velha ideologia
que defendi, tanta veemência, quando indicado Senador da Assembleia
Renovável dos Homens Bons, em função de minhas pesquisas
à frente da Universal Foods Inc. Como fui tolo... Eu e minha certeza
menina nunca seria ferido pela quinta emenda ao projeto federal, que autorizava
o Estado a empobrecer cidadãos mediante o Decreto Categórico.
A emenda, minha autoria, outorgava à Limpeza Pública a prerrogativa
de capturar Inúteis para suprir a insuficiência no mercado consumidor
de carne humana. Ainda me lembro dos cumprimentos cafajestes e tapinhas nas
costas que recebi pela "ideia lapidar", que duma só
vez solucionava dois cânceres sociais: nas ruas, o excesso de Inúteis;
nas cozinhas, a escassez de matéria-prima para as refeições
dos cidadãos.
Dependurado, cabeça para baixo, veias dos pulsos abertas, cotovelos unidos
por corrente, pernas em quarenta e cinco graus. Sei, passo a passo, todos os
becos tenebrosos pelos quais o restolho de vida que ainda me carrega caminhará
antes da visita da morte inevitável. Conheço toda a cadeia produtiva.
Nem poderia ser diferente, se eu mesmo quem, engenheiro de alimentos na Foods,
dei o primeiro passo rumo ao abate dos Inúteis em escala industrial.
Deveriam servir para alguma coisa, aqueles entulhos metidos a gente. Refeição
para os Autorizados, por exemplo. É que por um desses auxílios
do acaso, descobri: a carne humana é extremamente saudável ao
corpo. Tanto mais se crua. Apesar de o sabor, quando sem condimentos, um tanto
agridoce a paladares elegantes. O que não ocorre com o coração.
A víscera, uma vez arrancada ainda pulsando para só depois sofrer
todos os processos industriais, é iguaria muito mais saborosa do que
qualquer outra. E restrita aos Autorizados Distintos. Aos quais um dia pertenci.
Mastiguei muito coração alheio em recepções, posses,
cerimônias, outros salamaleques sociais equivalentes. Deliciava-me, muito
orgulhoso de mim. Embora soubesse a carne, e isso nunca revelado por motivos
óbvios, acarreta, em algumas personalidades, profundos traços
de morbidez e impulsos suicidas. Para efeitos estatísticos, o expressivo
aumento nos índices de mortes voluntárias sempre foi creditado
ao nível de competição a que está exposto o indivíduo
na Sociedade, jamais à ingestão de músculos e vísceras
humanas.
Goteja... e goteja... O sangue vazando dos pulsos feito fluxo menstrual. Encher,
quase transbordar, vasilhames térmicos para posterior gaseificação
com dióxido de carbono e venda no comércio especializado em refrigerantes.
Minha consciência está querendo ir embora, visão dupla,
a certeza forasteira daqui a pouco vou estar com Azulturquesa e ele me vai engolir,
viva, a alma. Enxergo, imagens turvas, no início do corredor, passeando
entre outras vítimas suspensas pelos ganchos, o proletário cujo
dever é extrair meu coração ainda latejante. Traz a motosserra
que me vai navalhar o peito. A dor, sem precedentes nem anestesias, fará
de mim por alguns minutos corpo desfalecido assim que as mãos dele assaltarem-me
o tórax aberto e, truculência e talvez cinismo nos lábios,
puxar o músculo que palpita. Para só após remover a epiderme.
Desossar. Lá vem ele. Não é funcionário bem remunerado
da Limpeza Pública (migalha que o Abatedouro paga), entretanto exibe
no rosto a mesma crueldade gratuita, a mesma alegria em ser mais um dos tantos
verdugos responsáveis pelo sofrimento alheio. O último da cadeia
produtiva. Agora ele a menos de dez metros. Meu coração será
arrancado, feito em pedaços, em conserva, valor exorbitante. Mas, se
pesos e medidas corretos, ele não deveria custar vintém: moído.
Porque o peso dos remorsos esmaga. Um metro o operário, se muito. Fecho
os olhos lentamente. As energias escoaram-se todas, sobrou apenas a constatação
de que a morte me vai adotar o corpo. Mas ainda consigo rir sem prazer, apenas
autopiedade. É a lembrança boa, o desejo abraçar Azulturquesa
pela última vez... Quem sabe, explicando meus motivos injustificáveis,
a absolvição?
- Sabe o que é o pior, meu caro Inútil? A motosserra está
meio banguela, muitos dentes cegos. Vai doer bem mais do que o normal. Coisa
triste, né?