Quantos golpes de marreta, temperados com sua decisão irrevogável
e ira, já havia dado no soalho não contara. Um leve aborrecimento
por causa disso, agora que aos cacos boa parte da cerâmica europeia,
o contrapiso visível. De repente, a curiosidade: quantas vezes precisei
ferir o chão? Logo ele, executivo caro a muitas empresas, berço
de ouro, nunca precisou consumir seus músculos de academia em trabalho
braçal. No início, nem mesmo segurar corretamente a ferramenta.
Tolice sem propósito essa minha curiosidade, só falta arrebentar
o concreto e pronto: terra. Blêiser, gravata italiana, camisa de seda chinesa,
perfume masculino e francês: sob tudo isso, rios dum suor-periferia a que
não estavam acostumadas suas narinas sensíveis. Pausa. Enxugar o
rosto. Pulmões trabalhando repletos de urgência. Porque oxigênio.
- Já acabou a escavação, querido?
Televisor ligado, horário nobre, o repórter do Jornal desdizendo
notícias redigidas para entrar por um ouvido e sair por outro. No sofá
vermelho-paixão o corpo posicionado como praticasse yoga, calcinha lingerie
preta cavada exatamente para não cobrir toda a bunda, seios tenros à
mostra; cabelos úmidos, esculpidos em ondas, cheirosos, tão compridos
que no ombro. Indisfarçável patcholi: pele higienizada. Sabonete,
cremes, certamente. Com esmalte café pintava as unhas das mãos,
na fisionomia o prazer e a serenidade quando se dedicava à tarefa de embelezar-se.
Mas fisionomia também é lábios, e neles, não apenas
o convite ainda que involuntário ao sexo sem margens: o sarcasmo desenhado
quase toda a vez em que dirigia a palavra ao marido, quando a revolta tomava conta
dele.
- Se ainda restou algum respeito por mim, fecha o quanto antes essa boca imunda.
Abre os olhos! Valoriza o mundo que construí para nós, os dois,
mas fundamentalmente pensando em você. O conforto. A lipoaspiração.
A Ferrari prata na garagem. O dinheiro farto para alimentar nos shoppings seus
histerismos consumistas. As viagens ao exterior todo santo réveillon. Tudo
isso com a única exigência de você não sair de casa,
nem os pés na rua. Para manter nosso segredo. Não macular minha
imagem enquanto homem de negócios. O meu amor, até anteontem mais
sem olhos do que cegos de esquinas, segurava-me com carinho as mãos, atravessava-me
ruas, conduzia-me às lojas e sempre antes de sussurrar obstinado e nas
situações mais improváveis: "compra isso, presenteia
sua paixão..." Tudo para lhe ver feliz! E também porque no
íntimo sabia: nunca brotou amor verdadeiro nesse peito. Deus, acaso ele
existir, talvez saiba o quanto gostaria acreditar nele para ter a quem pedir em
rezas às dúzias você sentisse por mim ao menos uma esmola
de amor, qualquer farelo do tanto que eu lhe amei... Olha em volta! Vê a
riqueza? Sabe qual o preço? Ética. Honestidade. Amor-próprio.
Nenhuma pechincha, garanto. Nunca deixei você descobrisse, mas... não
foram dois nem três os que, após a confiança fisgada por mim,
tiveram-me em boa conta, amigo para qualquer hora. Todos levei à falência.
Em nosso proveito. Carrego nas costas até um suicídio por causa
desse amor cardiopata, solitário: sempre gritou por você no deserto
e o máximo que conseguiu foi vislumbrar a miragem de ser correspondido.
Mas, onde a importância? Minúsculo drama particular, não é
mesmo?
- Como você é cansativo, querido... Outra vez o mesmo discurso bolorento
da vítima? É provocação ou masoquismo? Enfim... desfiemos
a ladainha. Mas, por caridade, entenda: nenhum dia houve em que não tenha
amado sinceramente o seu bolso. Amor daqueles que acendem fogueira na alma, creia.
Fogueira da cobiça, é lógico. Pilantragem? Fui pusilânime,
e outras tolices semelhantes repetidas à exaustão por você?
Entenda como bem quiser. Mas... diga-me: qual foi o instante em que optei por
não mentir ao dizer-lhe as palavras românticas moldadas ao deslumbramento
nutrido por mim? Muito natural eu me aproveitar duma espantosa carência
afetiva. Predador e presa, sabe como funciona. Ambos conhecem o papel que lhes
cabem. Portanto, nunca iludi; apenas, por conveniência, não esfreguei
em sua cara a verdade que você se recusava a entender. Além do mais,
há séculos não é mais nenhum menino. Entendeu, tolinho
da mamãe? Eu sei, eu sei... presenteou-me com o ócio remunerado.
Graças aos Céus! Eis outro erro: fazer nada dá uma canseira...
Por isso resolvi trabalhar.
- Trabalhar? Nunca houve necessidade. Pior, você se expondo causaria sérios
prejuízos à minha imagem, conforme tentei explicar quando me informou
sua decisão. Teimosia, pirraças, greve, chantageou abandonar-me
na vida. Algemas nos punhos, impossível argumentar. Venceu! Mas daí
a prostituir-se?!
- Puta é a senhora sua mãe, aquela criatura adorável, meu
pequeno imbecil de estimação... Considera-me alguém que fornece
orgasmos, é bem mais adequado. Afinal, cobro alto preço em troca
do serviço. Cuja qualidade não se pode discutir, sabemos. Outra
coisa: usa a inteligência ao invés das emoções para
raciocinar, homem... É um ótimo negócio para nós,
estará sempre proporcionando lucros muito além do razoável.
Não imagina o mundo de homens mal amados vagando pelas ruas, nos lares,
ungidos pelo sacramento do matrimônio... Carência afetiva em último
grau. Quase inacreditável. Concorda, amorzinho? Mas o fenômeno tem
explicação: as prendadas e virtuosas esposas que esqueceram os maridos
num canto da sala. Exatamente as mesmas que juraram amor eterno perante o altar
católico ou evangélico. Conhece algum caso assim, de abandono?
- Vagabun...
- Não completa a palavra! O juízo perfeito mandou-lhe o seguinte
recado: muita cautela com o que diz... Para enterrar o assunto: estes peitinhos
macios aqui, está vendo? Pois é... neles, amor da minha vida, mama
quem eu bem quiser, ou melhor, aquele cuja carteira possuir recheio mais gostoso;
a calcinha, eu deixo tirar quem...
- Cala a boca!
- Sossega. Ficar nervosinho provoca rugas temporãs, prisão de ventre...
Um caos para a saúde. Por exemplo: insistindo dizer grosserias, você
pode duma hora para outra perder alguns dentes frontais. Condutas assim causam
hemorragia interna em qualquer casamento. Mas está muito bem, mantenho-me
silêncio. Em contrapartida, não precisa fazer tanta algazarra ao
cavar esse túmulo interminável; está quase na hora da novela
do MacJhony Júnior, aquele sorriso volúpia. Homem maravilhoso! A
ele meu corpo até de graça, caso pedisse. O único por quem
suspiro, acredita? E peço uma gentileza: conclui a sepultura antes das
vinte e duas horas. Explico: em minha agenda, todo o dia lotadíssima, há
um cliente especial para receber. Em nossa alcova, onde mais? E não adiantam
chiliques, surtos de ciúmes. Falando nisso... veja só o quanto viver
é ironia... você o conhece melhor do que eu: é aquele supervisor
administrativo da matriz, subordinado às variações do seu
humor.
Pressionou um lábio contra o outro no intuito de amordaçar o ressentimento
que lhe mastigava a alma por causa das palavras perfuro-cortantes desferidas por
aquela boca magnífica, língua enlouquecedora. Dor. Lacerando fibra
por fibra seu coração sincero de homem apaixonado. Lágrimas
ameaçaram vir à tona. Não se permitiu, porém, demonstrar
fraqueza: engoliu-as a seco, farpado garganta abaixo. Sangrando dolorosamente.
Aquilo tudo se traduzia em quê? Matar-me assim, tão aos poucos e
aprendiz de Torquemada, seria algo parque de diversões? Uma primeira sequência
de golpes raivosos no concreto nem tão duro quanto supunha porque, além
de o ódio ser força rompedora, já domesticara a ferramenta
braçal. Porém, imagens. Contínuas. Aborrecidas. De mamãe.
Lepra da minha vida! Marretadas e dor. Filho, tenta um esforço e guarda
nessa cabeça inútil o que vou lhe dizer: nunca, do verbo "nem
pense nisso", nunca apaixona sincero por mulher nenhuma. Estamos longe imenso
de valermos a pena. Aqui não é sua mãe, e sim a experiência
quem está falando. Pela primeira e última vez. Por maior a cachoeira
de ejaculações que você atinja com fulana; por mais convicto
esteja de que o grande amor reservado pelos Céus chegou para lhe trazer
aquela felicidade Carochinha proclamada nas igrejas, o Paraíso terrestre.
Acaso tenha alguma simpatia por si mesmo ainda, filho... abandona o quanto antes
a fábula de enxergar-se Príncipe Encantado da primeira Cinderela
que resplandecer na esquina. Bruxas Más, todas somos. A essa regra inexistem
ressalvas. Rindo?! Então continua o sorrisinho imbecil e em poucos anos
sua vida será uma colossal abóbora-moranga. Inexorável. Com
um agravante: viver é todos os dias fugir inutilmente do Cavalo de Troia.
Exige tenhamos alma musculosa, repleta de coragem inarredável. Mas você,
querido filhinho, já garoto cultivava covardia às toneladas. Que
até hoje lhe pesa na moleira. Nunca percebeu o quanto de nojo isso me causa,
não é mesmo? Algo como... sei lá! Você fedesse a esgoto!
Mas é verdade!... Fazer o quê?! Sua maior herança (ou maldição?)
genética é paterna, infelizmente. Até a timidez na firmeza
de propósitos é idêntica à daquele atraso de vida com
quem me casei apenas para ver papai feliz. Ah, esqueça: ameaçar
beicinhos, caras e bocas não tem mais eficácia.
Rompido o concreto magro, abrir a terra. Tarefa simples, a pá aguardava
ordem mãos à obra. Não consigo atinar com os motivos de tamanha
perfídia por parte de quem amei o máximo que me foi possível.
Com certeza, os raros colegas e os incontáveis inimigos sabem em minha
cama dorme um travesti. Nenhuma tragédia solteira está feliz da
vida, a História é pródiga em exemplos. Justamente por isso,
sabem da humilhação máxima: pior do que amar fora dos padrões
tolerados, muito pior, é a prostituição anunciada aos ventos
e sob todos os aspectos dispensável. Ainda se dinheiro fosse problema!...
Adeus carreira profissional, respeito... Porra, mãe, foi bruxaria sua...
tanta solidez ruindo como se isopor, não foi?! Fiz tudo o que mandou, nunca
me apaixonei por nenhuma mulher! Em troca, a vida reservou para mim o quê?
Ou a senhora me educou como quem desenha um falso mapa do tesouro, esse sofrimento
todo planejado, inevitável? Vingança, só pode ser! Nunca
gostou de mim mesmo!...
- Amorzinho, agora chega. A campainha está tocando. Pelo horário,
é o cliente com hora marcada. Já acabou com isso?
- A cova está feita. Mas preciso de sua ajuda. Enquanto me ajeito no fundo
da sepultura, você poderia fazer-me o favor jogar terra por cima?
A má vontade e a pressa em servir o cliente fizeram com que pouca terra
cobrisse o corpo vivo do homem enterrado mais ou menos no meio da sala ampla.
A televisão foi calada à força, embora ela ainda preferisse
assistir mais um pouco de MacJhony Júnior, o galã. Entretanto, lei
de mercado, é suicídio deixar esperando quem remunera com generosidade.
E foi no sofá mesmo (não houve tempo para sugerir meu bem vamos
para o quarto, é mais confortável) que a prestação
de serviço efetivou-se, cliente cheio de pressa e tara.
- Hum... não segura aí... ah, você também gosta do
que eu gosto? Enrustidinho, heim... Calma, não precisa arrancar minha calcinha
assim, tanta força... Ei! Cuidado com esses dentes, machucam! Apenas língua
e lábios. Vem cá, deixe-me explicar melhor.
Debaixo da terra insuficiente, ele ouvia todos os gemidos do amor alugado por
uma ou duas horas, testemunhava justamente o que procurava esquecer: a traição.