O ponteiro do velocímetro conhece bem o tamanho desta dor íntima,
que me digere aos poucos após ter cravado os maxilares na carne de minha
alma indefesa: mantem-se estacionado nos oitenta; no rádio, violões
com recheio de flauta choram um chorinho antigo no sabor e parece que este sofrimento
começou hoje e não há dias atrás, por acaso; quantos
quilômetros eu e os pneus já engolimos? Muitos, mas é indiferente...
parece ainda não saí do cemitério, nem mesmo venci os limites
da cidade; faróis aos pares, ferozes, passam por mim em sentido contrário,
numa pressa que é um desespero só. Quantos motivos existem incontestáveis
o suficiente para entender tanta vontade de chegar aonde quer que seja? Boa
parte dos meus, perdi. Desvio a pouca atenção para a esquerda,
e no céu de luto algum artista plástico desenhou uma lua gigantesca.
Com todos os contornos do vulto de Jorge e seu dragão do Mal. Está
a rir de minha indigência afetiva, ela, ou através do suas palavras
simbólicas e poéticas tenta acenar solidariedade, ao seguir-me
a cada pedaço de chão? Pouco importa, se em ambos os casos a estrada
desconserta-se em ondulações à minha frente: lágrimas
afogam-me os olhos outra vez. Outra vez as mesmas lembranças.
Vovó, como fora batizada pela água benta do carinho oferecido
pelos moradores daquele antigo bairro onde minha infância nasceu, foi
uma personalidade ímpar para mim, menino, e para mim, adolescente. Sempre
caminhando a passos miudinhos, como fosse uma pressa mentirosa, falando sozinha,
cabeça baixa porque olhos sempre à procura de tudo porque quase
nada das coisas habitantes do chão, para ela um Universo deitado, a interessava.
Muito embora, às vezes, encontrasse uma qualquer bobagem e aí
era como houvesse garimpado alguma pedra preciosa: dançava sozinha nas
calçadas e ruas, velha porta-bandeira sem mestre-sala. Também
isso foi responsável por ela morar em meu coração. Talvez
fosse um pouco bruxa e nem percebesse. Mas sabia do encantamento para a vida
toda que lançou sobre mim.
Sempre nada por fazer, persistia em seus descaminhos pelas ruas. Estatura abaixo
da média, um tanto corcunda, mais negra que a própria miséria
congênita em que estava mergulhada. Xale tão puído que os
meninos brincávamos ser do tempo da Lei Áurea, só mesmo
para vê-la encenar sem convicção que estava era muito da
braba conosco. Os cabelos (alguém os sabia brancos?) ocultos sob lenço
amarrado à portuguesa. Nenhum dente para tanto sorriso generoso. A torto,
a direito. Distribuído indistintamente, sem sovinice, a qualquer um que
a cumprimentasse. Calçando os pés, sandálias franciscanas
e meias que subiam aos joelhos. Numa das mãos, bengala sem préstimo:
perambulava com igual desenvoltura sem a escora, e nunca foi arma contra ninguém.
Como fosse objeto cênico, pelo qual era apaixonada da mesma maneira peculiar
como certos idosos se apegam a relíquias pessoais. À época,
menino, era-me impossível entender. Tudo aquilo não passava de
mais um detalhe divertido e original.
Quando a fome rugia-lhe alto, leão solto e indomado, jamais esmolava
um prato de comida por amor a Jesus. Não senhor! De jeito maneira! Batia
à porta de alguma residência cuidadosamente selecionada, quer fosse
pelo seu apurado sexto sentido, quer fosse conhecimento do tipo de família
que a casa escondia. Toda sorrisos e timidez, perguntava na maior das intimidades,
como se amigos fossem desde sempre: "E então? Qual prato gostoso
haveremos de saborear hoje?" Quase ninguém se recusava a calar a
boca da fome duma velhinha tão vovó, tão carismática.
Os que em seu íntimo davam guarida ao vírus da solidão
(e em mim, naquela época, meu espírito já estava semente
do que é hoje: janela sem jardineira, casarão sem crianças
brincando de correr), os muito solitários até bendiziam sua presença
sem aviso ou convite, suas estórias incoerentes, sua cultura autodidata
que conhecia um tantinho de quase tudo, o vasto vocabulário em geral
utilizado anarquicamente nas construções frasais, um irrevogável
horror aos palavrões (as almas penadas da língua portuguesa, afirmava
muito categórica ao ouvir alguém perto dela vomitar algum impropério).
E sempre a insistência em lavar toda a louça da refeição,
cantarolando músicas nagô. Lindíssimas, bem me lembro. Na
verdade, sentia-se mesmo aviltada não a deixassem doar-se com semelhante
gesto em troca da fome extinta.
Houve um tempo naqueles tempos em que ninguém morria assassinado, ninguém
homicida. Por isso, nos dias em que a rotina da delegacia local ainda mais tediosa
do que o suportável, vovó, a imagem da felicidade por estar viva,
entrava sem pedir permissão, abraçava todos os policiais como
filhos. Que um deles lhe servisse xícara de café amargoso. Palavras
mansas, modos frágeis, "como vai essa coragem, Seu Doutor Delegado?"
E jogavam vinte e um usando baralhos desonestos que ela trazia sempre amarrados
à barra da saia. Mas quase não tinha graça: adiposo e lento
no raciocínio, o homem era por demais obtuso. Eis o motivo pelo qual
divertia-se melhor ao trocar ideias arejadas com os poucos presidiários
e recitar-lhes alguns poetas de quase todas as escolas literárias brasileiras,
sem fazer uso da voz impostada, da falta de naturalidade típica duma
interpretação amadora: antes a poesia dita em tom de prosa. Assunto
emendava assunto, um mundo inteiro era percorrido por eles no interminável
rio de onde brotam afluentes que é a palavra quando foge língua
afora. No fim, enorme colcha cerzida com todos os sem liberdade estava composta
por vários trapos coloridos: política, família, amores,
filhos, morte, Deus. Não que pretendesse evangelizar ou converter os
homens, porém enxergava nos Salmos um perfume especial. Sabia-o de cor,
praticamente. Quando algum deles pedia, no rosto a expressão neto pedindo
à avó fizesse aquele doce fora do comum, o gesto era invariável:
buscava o fôlego, olhos fixos numa Escrava Anastácia colada na
parede da cela porque assim conseguia recordar-se com precisão dos trechos.
E silêncio. Emoção regando o canto dos olhos. Em seguida,
duas ou três passagens como que aromatizava o ambiente. Não raro,
todos eles se emocionavam. Algum sentia o espírito leve, algodão,
alado, veleiro em oceano sonolento. Ato contínuo, riam-se desenfreados,
nunca na vida felicíssimos por existirem, planos para um futuro que certamente
viria melhor. Pelanca retomaria sua quarta série; Caolho jurava encontrar
a mãe tão abandonada quanto acompanhada pelo fogo-selvagem; Ponto-Quarenta
lutaria pela vereança só para apresentar projeto que florisse
as ruas. Quando saía, deixava saudades nos corações prisioneiros.
Ao ir embora, adeus meninos, dizia sempre ao delegado: "Doutor, nas próximas
semanas vou trazer quindins para os rapazes. Já fazem por merecer".
Os invernos na minha infância eram anêmicos. Soprava um ar seco
e até friozinho, porém quase nunca chovia de verdade. Digo chover
aquelas chuvas adultas, águas pesadas sobre as telhas francesas, vendaval
descabelando as árvores; digo enxurrada que transformasse as ruas em
leitos de rios nervosos e os bueiros, sedentos, bebessem. Mas qual! Minha infância
podia contar nos dedos as vezes em que testemunhou casas aborrecidas por causa
de infiltrações nas paredes, moradores alvoroçados com
panelas e bacias para fazer a colheita das goteiras. Também quase não
via, minha infância, pessoas imóveis sob marquises aguardando a
chuva cansar de cair. Nem entrincheiradas nos cobertores, procurando o mínimo
de movimento com o corpo para não desarvorar o oxigênio gelado
em torno, verdadeira lâmina ossos adentro. Nada disso! Tudo o que tínhamos
era uma ventarola muito mixuruca. Jamais minha infância e eu conseguimos
construir, como nos filmes vespertinos e mal dublados da tevê, bonecos
de neve. O que causava certa frustração com as nuvens. Muito incompetentes,
elas.
Vovó, contudo, não me decepcionava: sentia a friagem que, conseguisse
eu roubar as torneiras de São Pedro, todos sentiriam. Mas ela fazia questão
de sentir, ainda que o frio inexistisse. Ainda que fosse com exclusivo intuito
de justificar a existência daquela estação do ano. E próxima
à carcaça do antigo Maverick, dentro do qual dormia suas noites,
preparava gravetos (madeirazinhas, quase lenha) para dar luz à fogueira
noturna. Esfregava as mãos. Tudo isso atraía os meninos (as meninas
também, mas sempre foram um tanto medrosas), a bisbilhotice inseparável
da infância. Ela fazia uso do momento, meio mágico, para encarar
muito fixamente em nossos olhinhos. Todos atentos. A maioria de nós achávamos
que na verdade toda a preparação era um ritual nas entrelinhas,
uma magia oculta em andamento. Ria-se, cândida, de nossa certeza infantil.
Aproveitava a atmosfera impregnada de misticismo para contar, maestrina, belos
contos povoados com trinta e sete assombrações por centímetro
quadrado de estória. Mergulhávamos narrativa adentro por todas
as portas e janelas que se iam abrindo. Fazíamos visitas temerosas a
cemitérios, becos escuros, ruínas... O fogo crepitava. Onde o
frio mesmo? Vez por outra um de nós (eu? Nunca) lançava mão
duma desculpa amarrotada para justificar o medo e saía. Mas retornava
poucas luas seguintes, a mesma curiosidade acessa. Encerrado o desenovelar do
enredo, era como tivéssemos ido a outro mundo composto por outras substâncias,
lá estado por um tempo... um tempo... quanto tempo mesmo? Balão
cheio de cor, sua narrativa era asas pousando tranquila no céu da
minha alma. Com certeza cresci. Ao redor do fogo e da ficção.
Certa vez pus algemas naquela timidez que me sufocava e perguntei, no meio de
todos, entre medo e respeito, se acendia a fogueira apenas para espantar o frio,
invariavelmente ralo, ou se por gosto mesmo.
- É Deus, meu menino de Deus...
- Como assim?
- Assim: quando sentamos perto das chamas, Ele, que está sempre aqui
dentro de nós, se acende. Mas atenção: apenas nos invernos
mais rigorosos a gente entende melhor o quanto Deus nos alumia e aquece.
Ainda hoje permanecem as dúvidas se consegui entender exatamente o que
pretendeu com tais palavras ditas em sussurro, como um segredo, como uma brisa
que vem de surpresa e chuac! Beijo no rosto.
Falta-me a vontade de continuar viagem, retornar à cidade onde construí
minha vida acadêmica e leciono Jornalismo para muitos indigentes intelectuais
e poucos até promissores, se de fato quiserem comprometer-se a explicar
os porquês das coisas. Logo ali, quinhentos metros pouco mais ou menos,
um posto de gasolina onde é possível um descanso razoável,
jantar qualquer coisa. Reviver à exaustão a cena: talvez o mais
boçal dos meus universitários disse-me, sem suspeitar da eloquência
com que a notícia gritaria em mim, sobre uma engraçadíssima
nota de jornal com ares folclóricos que informava a morte no Estado vizinho
duma velha caduca cuja excentricidade havia exercido influência em várias
gerações jovens do bairro onde viveu. Um texto hilário,
professor, acentuando muito bem os aspectos evidentemente ridículos.
O senhor deveria ter lido. Mas, difícil... o jornal é caduco também:
pelo menos seis meses de velhice. Bom esse trocadilho... certo, professor? Querendo,
posso trazer o jornal para a aula de amanhã... Lembro-me muito bem da
colisão com a notícia. O impacto. Os destroços. Eu em caquinhos
espalhados. Sim, porque a principal artífice da infância que vivi
já não existia. Embora imortal para sempre. Só mais quinhentos
metros. Preciso repouso, trazer à memória o vocabulário
do Céu e orar em silêncio, e chorar em silêncio as lágrimas
espontâneas. Necessárias. E outra vez a memória vindo à
tona: o retorno ao bairro onde cresci, para descobrir-lhe o túmulo e
visitá-la, há dois dias atrás... Essas imagens se mostram
num tempo presente, como estivessem acontecendo aqui em torno. Agora. Outra
vez. O que vi nas ruas do lugar e no cemitério é um relógio
morto, não caminha. Como pode uma pessoa povoar o imaginário de
outra assim, Deus, pelo resto da vida? O passado é presente.
Há um desejo contraditório que me acompanha os passos enquanto
passeio atento por estas ruas do meu antigamente: protelar ao máximo
a visita ao cemitério, embora esse o motivo pelo qual viajei quilômetros.
Um receio descabido, um frio na espinha. Triste ver as ruas desvirginadas pelo
"progresso", sem aquela inocência da geometria mais ou menos
caótica dos paralelepípedos. As casas, as mesmas que um dia deram
de comer à vovó, alguém as transformou em edifícios
monstrengos, desenhados com traços lineares e simetricamente angustiantes.
Néons, monóxidos, decibéis, gente que não mais se
conversa nas esquinas. Igual à cidade onde vivo e morro todos os dias
um pouco. O bairro onde fui menino também morreu, não é
mais lugar para uma infância crescer amadurecendo degrau a degrau, sadia.
Triste. Por isso ela foi embora, nem tanto pela idade octagenária...
Seu tempo passou, foi substituído por outro mais frio e sem fogueiras
de inverno. Nem percebo e já estou dentro do cemitério. Estremeço.
Por onde iniciar a busca?
- Olhe para frente.
- O quê? Mas quem...
- Em linha reta, terceira tumba.
- Vovó? Mas a senhora...
- Morri? É o que dizem, mas não dê ouvidos a tudo o que
esse povo diz. Pelos cotovelos. Falemos de felicidades, é melhor. Conseguiu?
- Consegui o quê?
- Acender sua necessária fogueira. Tanto tempo passou...
- Engraçado... não sei dizer. Talvez sim.
- Você está tremendo muito, menino. Não me conhece mais
minha voz? Daqui a pouco o sino da igrejinha vai badalar as seis horas da noite.
Hora de friagem, lembra-se? Estou preparando a fogueira, gostaria que participasse
das estórias.
- Mas...
- Fixe bem os olhos para frente. Atenção. Queira enxergar. Assim.
Está vendo o bom e velho Maverick, com certeza. Dentro dele um vulto.
Sou eu. Daqui a pouco alguns daqueles amigos de infância que já
não estão mais aqui estarão aqui. Espere para matar essas
saudades.
O posto de gasolina, finalmente. Melhor uma boa janta, um sono. Amanhã
estarei melhor. Desligar o chorinho do rádio.