Na última casa da rua, a rua do ponto mais periférico e alto
da cidade, estava sobre uma ribanceira a assistir o escurecer do dia e o acender
das luzes noturnas.
"Precisamos voltar para casa, daqui a pouco chove e ainda não preparei
nossa jantar" - falava Matilde a sua fiel amiga Filó, um de seus
trinta gatos que faziam companhia dentro de sua velha casa, fora os cachorros
que eram dez.
"Miauuu" - respondeu Filó em um longo miado, o qual a velha
já reconhecia como sinal de fome. Enquanto caminhava, Matilde deixou
o silêncio preencher aquele instante, olhou para o mesmo céu o
qual diariamente ia saudar e se despedir da presença do sol. Olhou a
rua, trovejou, sentiu medo, sentiu-se só.
Matilde perdera o marido logo cedo, um belo capitão (segundo ele lhe
dizia) que anos mais tarde, após seu falecimento, Matilde veio a descobrir
que ele não passava de um traficante de vida dupla. Luiz Ricardo Trindade
usava o uniforme que fora de seu avô, era conhecido por todos como "Capitão"
- o dono da boca. Matilde nunca desconfiou, não tinha amigos e raramente
saia, achava demasiadamente confortável a vida que levava, recebendo
presentes diários de seu marido.
"O frio me faz bem, sabia Filó? Não sei porque, mas gosto
desse ar gelado, esse lugar é como um semelhante."
Quando casada, Matilde ocupava suas tardes cuidando da casa, bordando e cosendo,
além de devorar romances que o Capitão sempre comprava na volta
para casa. Agradecia beijando-o sobre o bigode amarelado pelo tabaco.
Filó balança o rabo com graça enquanto ouve sua amiga recitar
alguns versos que compôs, inspirada em seu passado solitário que
ainda é tão presente.
"bela a menina
que por histórias de amor
suspirava.
No seu amado
encontrou a paz desejada.
Foi tão enganada, a coitada
Mas a mentira não roubou
O sentimento de ter sido amada."
Parou frente ao portão, olhou novamente ao seu redor. Notou que o mundo
lá fora não estava diferente do vazio em seu peito. Gatos e cachorros
para alimentar, plantas para aguar, fantasmas para conversar, dores da velhice
para praguejar.
Matilde decidiu que naquele dia iria dormir mais cedo.