A Garganta da Serpente
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Solidão e Loucura

(E. Prearo)

Quando os murmúrios lhe vinham em forma de siglas, certamente que se reportavam a algum defeito seu, e não parecia haver como escapar deles. Donald não tolerava ser visto com desconfiança por gente desconhecida, mas iria ser assim até o final dos tempos de sua vida. Em cada lugar em que parava, imaginava se ali seria seu gólgota, se ali morreria. Ninguém gostava dele, que vivia em uma solidão não muito profunda, haja vista algumas amizades que vez ou outra ligavam. Donald queria a juventude de volta, os cabelos, o sentimento de que a velhice está longe, sentir-se desejado, acordar todas as manhãs de bem com a vida, sentir-se profissional em alguma coisa importante. Mas a vida estava terminando e ele não evoluíra. Que falta lhe fazia um carro, o fusquinha dos seus vinte anos!

Em uma manhã de dezembro, despertou bem cedinho, como sempre. Queria que algum entregador batesse à porta lhe trazendo flores corais, flores de G.; mas isso era tão impossível quanto um pobre entrar no reino dos céus. Tentou meditar mas estava certo de que não obteria nenhuma resposta às suas indagações, talvez por causa do tabaco. Enfim, aquela santidade por que tanto sonhara estava morta, decompunhasse a cada dia, a cada segundo. Por que alguém interessante olharia para ele, se G. que era G. não olhava mais? Pensou em sair para passear, pois era domingo, mas havia tanta gente nos ônibus, nas ruas, que desistiu e foi tentar dormir mais um pouco. Serpentes o apavoravam em sonhos, umas serpentes albinas. Donald desta vez despertou sem muito susto, mas com um terrível mal-estar. Era um tímido e isso parecia um ponto pacífico entre todas as pessoas que conhecera. Era desprezível, descartável, meu Deus, quanta coisa ele era, ou pelo menos imaginava ser. G, agora, ainda lhe era uma obsessão, e ambos os dois não estavam mais ligados um com o outro; no entanto, Donald desconfiava de que seus sentimentos para com G. não partissem só de sí próprio, mas havia aí uma bilateralidade. Acendeu um cigarro, achando-se um vagabundo, tomou um banho, vestiu-se com as roupas que tinha e saiu sem comer nada. Encontrou Shirley, uma vizinha problemática, na porta do edifício...

- Oi Shirley. Estive pensando e creio que eu vá me tornar budista.
- Não é recomendável, pois em outras vidas a maioria de nós já foi oriental.
- Espere um pouco, não suba ainda. Hoje estou me sentindo meio insano. Nesses últimos vinte anos não fui capaz de me estabilizar. Preguiça, na certa, ou então, tenho o QI um pouco baixo.
- Não estou entendendo. Ah, dizem que nunca é tarde. Outros dizem que sempre é tarde.
- Bom, vou direto ao assunto. Quero aquela arma sua emprestada e...
- Donald, você não tomou seu remédio, hoje? Só pensa besteiras. Sabia que é pecado pensar assim? Bom, no seu caso vai saber... Até nunca mais, materialista, egoísta, porco chauvinista, Hitler!

Atacavam-no, gente desconhecida. Depois, ele revidava, não aguentava. Então, faziam-se de vítima e chegavam a ameaçá-lo, alguns pediam retratação. Mas ao se olhar no espelho, quando voltou para onde morava, Donald não viu as imperfeições que viam nele. Afastavam-se dele como o diabo da cruz; davam a crer que o achavam um bandido ou coisa pior. Seu destino? Solidão e loucura. Quem era G? Não sabia mais, não deveria saber...

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