A Garganta da Serpente
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A vingança

(Edilson Landim)

Vingança é um sentimento que, quando se instala no cérebro, como veneno contamina a alma.

Candinho tinha seus motivos de ódio. Mas não para matar! Não se entende como um profissional competente, de bons costumes, cor clara, 36 anos, solteiro, educação religiosa, esteja possuído por um instinto tão selvagem. Jurou que ia matar seu desafeto e matou-o friamente. Seu nome é João Cândido da Silva.

Trabalhava como tipógrafo de um Jornal de Curitiba e escrevia quando sobrava espaço algum artigo sem grande significação sobre fatos políticos. Foi contratado para dirigir um jornal, há meses fechado, numa cidade do interior do Paraná, com 30 mil habitantes, cidade pacata, a não ser pela política, dominada por dois chefes: Cel. Fontes, dono de uma grande fazenda, e Cel. Matos, seu novo patrão, que possuía uma engenhoca para preparar a soja e exportá-la. Cel. Fontes conseguia eleger quem quisesse e atualmente era o presidente da Câmara Municipal e o seu filho, o prefeito.

Candinho reaparelhou o jornal de circulação quinzenal e resolveu sair em campo à cata de noticias. Nada melhor que assistir á sessão das 14 horas da Câmara Municipal que funcionava numa casa de altos e baixos, toda pintada de amarelo, com uma placa na fachada, em frente à Praça Principal. Encontrou muitos queixosos, mas nada interessante. Iniciada a sessão, sentou-se num dos bancos destinados ao público. No centro do salão, em um plano mais elevado, fazendo separação, se posicionavam as cadeiras dos vereadores e, mais afastada, a mesa diretora.

O presidente da câmara abriu a sessão e para surpresa de Candinho, quando leu a pauta dos trabalhos não fez as inflexões da pontuação e isso se repetiu até o fim da leitura. Discursaram dois vereadores e o secretário, o Dr. Fernando Leite, redigiu uma ata, assinada por todos. A ata foi lida da mesma maneira que os outros documentos. Candinho estava abismado e encontrara o assunto para o próximo artigo. O Cel. Fonte lia a ata da seguinte maneira: 'Aos tantos dias do mês , dizia, ao invés de dar inflexão da voz, vírgula, e continuava e dizia ponto e vírgula e continuava e onde estavam grafados dois pontos falava: dois pontos. Lia literalmente os sinais de pontuação.

Aquilo foi um prato cheio. Correu para a sede do Jornal e escreveu um artigo, que, entre linhas, chamava o Presidente da Câmara de analfabeto. Clamava o povo da cidade para assistir à sessão da Câmara e comprovar o fato. "O artigo terminava bombasticamente: `Uma nação, como uma cidade, não pode ter futuro sem instrução e educação, quê dizer de uma cidade dirigida por semianalfa...".

Candinho pegou pesado! O Cel. Matos, o primeiro a ler o artigo, lambendo os beiços, bradou: - Dessa nem eu sabia. Estou eleito.

Na segunda feira circulou o quinzenal. O Cel. mandou dobrar a tiragem do jornal e pagou a outras pessoas para distribuírem-no na cidade e arredores, onde se localizavam os redutos eleitorais do adversário. Foi o dia primeiro e talvez único que o jornal rodou direto. A cidade inteira queria ler o artigo, não se falava de outra coisa. Um dia de glórias para Candinho a que se seguiram uns poucos, porque domingo, quando saia do Bar do Aprígio, para ir à movimentada Praça em frente, ao subir o elevado, sentiu uma pancada na cabeça. Levou um brutal soco pelas costas, caindo por sorte na grama, por pouco não rebentou a cabeça na calçada.

Fora o filho do Cel. Fontes com mais dois amigos, que esbravejava raivoso:

- Isso é para você aprender a respeitar os outros.

- Levante-se para apanhar mais.

Não pôde levantar-se e todas as pessoas que estavam na praça acorreram ao local do incidente. Algumas o ajudaram a se erguer, mas viram que as calças do rapaz estavam sujas e exalavam um cheiro horrível de fezes. Aquela incontinência intestinal, de que sofria desde criança e que já o fizera passar muita vergonha, se manifestara num momento crítico.

O episódio multiplicava as chacotas dos amigos e correligionários do Cel. Fontes. O Bezerra, no seu armazém de secos e molhados, não parava de gritar aos berros para os clientes, em gargalhadas homéricas:

- Pois não é que o homenzinho se borrou todo.

Candinho amargou alguns dias de molho. Quando saia de casa, sentia-se alvo de risinhos irônicos e ainda sentia dores na cabeça.

Ficou alguns dias penando pela cidade, não deu nenhuma queixa à Polícia, mas não aguentou tanta humilhação. Pediu algum dinheiro ao Cel. Matos e viajou para a capital ao encontro de um amigo de família chamado Varejão. Ex-tenente enfermeiro da Força Expedicionária Brasileira, expulso do Exército, era um velho conhecido da Policia de Curitiba. Costumeiramente alugava casas em locais bem pobres da periferia e colocava uma placa, intitulando-se médico e passava a dar consultas e fazer abortos - sua especialidade médica.

Varejão ouviu o relato e perguntou:

- E agora o que pretendes fazer de tua vida?

- Vou matar aquele desgraçado que me pegou pelas costas.

- Matar como, rapaz, se não sabes atirar. E brincou - E se der de novo aquela cólica?

- Não queres me ajudar, procuro outro amigo.

- Calma, não sou homem de largar os amigos, mas primeiro vamos a um médico tratar da constipação intestinal.

- Mas me compra uma arma e me ensina a atirar.

- Veremos.

Dias depois, Varejão procurou um amigo da velha guarda em Monte Castelo na Itália, perito em consertar e esperto em vender armas, e conseguiu por bom preço uma raridade, bem conservada: uma pistola alemã, colt-cavalinho, 45, usada pelos da SS da Gestapo. Com 12 balas alojadas no pente, automática, leve, é mais ligeira que uma metralhadora. Ao apertar o gatilho, as balas saltam para serem picotadas pelo percussor, uma atrás da outra, sem dar muito soco na mão.

Chamou Candinho e no fundo do quintal, com um boneco desenhado num papelão, ensinou-o a atirar. Numa manhã, Varejão mandou arrumar a trouxa e exclamou: Já estás bom dos intestinos, estas pronto até para derrubar um pelotão, segue o teu destino.

E brincou: - Dê noticia de um desses buracos onde estiveres. Os documentos de identidade estão perfeitos.

Despediu-se com um abraço no amigo.

Candinho voltou à cidade e verificou que, depois de seis meses, as coisas eram outras. Não se sentia mais alvo de chacotas de ninguém. Poderia até desistir daquela ideia maluca. Mas não desistiu. Procurou esconder-se dos mais conhecidos e por três dias esperou sentado no banco da Praça, perto do local onde fora agredido. Sabia que o Prefeito sairia à uma hora qualquer do Bar e viria para Praça, pois era o caminho normal e rotineiro. Naquela noite, às 9 horas, segundo o Boletim de Ocorrência Policial, o prefeito na companhia dos mesmos capangas dirigia-se para a Praça. Ao subir um degrau, Candinho levanta-se do banco, há aquela surpresa, retira a arma e despeja quatro tiros no prefeito, pegando dois na cabeça, um no peito, e o outro resvalou atingindo o abdômen do companheiro. O terceiro homem estava mais atrás, segurou-se e não foi atingido.

Candinho saiu calmamente como se nada tivesse acontecido, sem ser molestado.Caçado na cidade, não foi encontrado. Como o nosso país é muito grande, com muitos esconderijos, difíceis de ser encontrados pelos órgãos policiais, até agora, 30 anos depois, também em lugar nenhum não se sabe de Candinho.

  • Publicado em: 07/06/2010
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