Poderia uma declaração de ódio ter o mesmo peso de uma
de amor? Não importa, pois eu, que já declarei todo o meu amor,
não tenho mais nada a declarar. Exceto meu ódio.
Sempre me espantou a capacidade humana de mudar de opinião. Não
que eu seja contra - até acho bastante saudável -, mas como é
que se passa de vítima a algoz?
Foi há dois anos que esse homem entrou na minha vida e não tenho
ideia de quando irá finalmente sair. Ele chegou como uma resposta
aos meus anseios. Sabe quando você encontra o seu tipo de homem? É,
eu encontrei, mas parece que só eu me dava conta disso. E ainda tinha
o maior prazer em fazer papel de boa samaritana, achando que estava salvando-o
de um abismo de solidão rumo à felicidade que só eu poderia
proporcionar.
Ele se achava tão incompreendido, tão carente de afetos, que eu
me desdobrava para não ser mais uma a lhe negar essas necessidades tão
primárias. E a armadilha do canalha era perfeita, pois enquanto estava
preocupada em não decepcioná-lo, deixava que ele me decepcionasse
de todas as formas. Permitia que ele me sufocasse com negligência, desafeto
e falta de respeito. Relevava as noites passadas em claro evocando os farelos
de um amor que só existia como uma promessa no meu coração.
Ele invadia, tal qual posseiro, minha casa, minha família, meu círculo
de amizades, e tudo mais que eu tivesse de particular. Enquanto sua vida era
um relicário dos mais sagrados. Mas é lógico, eu não
podia compreender, eu que tinha uma boa vida e era cercada do carinho dos meus.
Eu era insensível diante duma vida tão desgraçada... Vil,
mentiroso, cruel. Sordidamente transformando tudo que era motivo de orgulho
numa deficiência de caráter. Chego a pensar que tudo foi premeditado
desde o início. Talvez seja o seu modus operandi. E depois que
ele se cansa do novo brinquedo, fica tão prático descartá-lo,
já que nunca prometera nada. Eu sempre me comprometi por nós dois.
Não que ele fugisse, simplesmente se omitia. O que, convenhamos, torna
tudo mais difuso. Afinal de contas, acusá-lo de quê? De ter permitido
que eu fizesse dele a razão do meu viver? Como colocar em palavras cada
cena que passou por minha cabeça sonhadora e infeliz? E, mais que tudo,
como remendar esse maldito coração?
Depois de todo mal que causou, não teve nem a decência de ir embora
de vez. Não, ele fica sempre rondando. Como um abutre escroto, que não
descansará até devorar todos os restos da vítima. Sempre
arrebentando os pontos com que tento suturar meu sutil equilíbrio.
Sei que ele adoraria ser meu amigo. De preferência, um amigo que tivesse
direito a compartilhar da minha cama. Amigos é algo que nunca poderemos
ser. Acho que nem mesmo uma convivência pacífica poderia ocorrer.
Eu não aguentaria uma situação de ódio velado.
Não. Se é só ódio que me resta, que seja declarado,
destilado com puro prazer. Eu me reservo o direito de ser baixa, antissocial
e desequilibrada. A minha imagem perante as polianas de plantão é
o que menos incomoda. Se ao menos eu pudesse retirar esse travo amargo que me
acompanha. É difícil lembrar que gosto já teve minha boca,
antes de virar um receptáculo do mais odioso veneno.
Ele é culpado. De não saber me amar, de não acreditar que
tínhamos um futuro, de não ter me abandonado antes de eu me apaixonar.
Poderia ter tido a misericórdia de me agredir. Assim eu o amaria menos
e, por conseguinte, não chegaria a conhecer essa flor cancerígena
que envenena mais quem a cultiva do que a quem é destinada. Minhas mãos
tremem, conduzidas pela loucura e desgraça.
Olho o corpo dele estirado na cama. Me demoro nesse flerte, pois sei que outro
não haverá. Me deito a seu lado e beijo sua boca. Está
fria. "Amor, embora a foice roube o riso à face e ao lábio
rosa, em constância resiste até o Dia do Juízo". Shakespeare.
Numa coisa o imortal bardo tinha razão: algo me perseguirá até
o Dia do Juízo. Mas não será amor. Quem sabe um dia, a
culpa. Por ora, nem remorso consigo sentir. Apesar de ter as emoções
anestesiadas, sei perfeitamente qual o próximo passo a ser dado. Olho
o telefone. Disco. Uma voz educada quer saber em que pode ser útil.
- Eu gostaria de comunicar um assassinato - respondo friamente, enquanto meu
olhar se perde na última xícara de café que ele tomou.