A Garganta da Serpente
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Um dia em duas vidas

(Eduardo Kruschewsky)

Na Avenida do Canal, caíram de surpresa em cima da vítima. Estático, o homem sentiu o objeto pontiagudo encostado na barriga, o que lhe fez suar frio. Percebeu, então, que os assaltantes eram dois pivetes. Parecia mentira que duas crianças como aquelas pudessem estar assaltando! O menorzinho, aparentando dez, doze anos afastou-se um pouco, portando uma pedra de tamanho razoável e dividiu a atenção entre vigiá-lo e ver se não vinha alguém. O maior, já taludo, imberbe, com a cara cheia de espinhas, era quem o ameaçava, portando a faca e exigindo que esvaziasse os bolsos. O transeunte analisou os prós e os contras de uma reação e preferiu aceitar o assalto passivamente. Afinal, se escapulisse da faca, poderia levar uma pedrada. Sentindo-se histriônico, foi roubado. O assaltante disse:

- Deita no chão e num levanta a cara sinão nois lhe fura!

Sentiu que pés se afastavam em correria e quando o barulho sumiu, agradeceu a Deus não lhe ter acontecido nada. Mesmo assim, quando ia para casa, ao ver a antiga Olimpio Vital toda iluminada, em vez de subir para o bairro da Rua Nova onde morava, resolveu prestar queixa no Modulo Policial da Prefeitura. Era primo do sargento.

Os pivetes, tomando direção oposta, subiram a ladeira, diminuindo o passo na porta do Ali-Babá onde acontecia uma festa. Adiante, tomaram à esquerda, parando na porta do antigo Palácio do Menor, prédio abandonado. Sem parentes, fugidos do reformatório, era ali o "quartel-general", a casa que usavam para dormir vez por outra, esconder os furtos, cheirar cola e fumar crack. Observando que não passava viva alma na rua, entraram no sobrado abandonado e, na escuridão, demonstrando conhecimento detalhado do local, caminharam com firmeza até um compartimento nos fundos do imóvel. Lá, o mais velho levantou alguns pedaços de madeira que estavam amontoados e, afastando os paus, apanhou a lata de cola de sapateiro. Sentaram-se, as costas contra a parede e abriram a lata. Começaram a cheirar o conteúdo com voracidade, passando de um para outro, até que, em meio a devaneios, perderam a consciência e a lata ficou esquecida em um canto...

Badunga, o mais velho, acordou no meio da madrugada, com fome. Apalpou o bolso, sentindo as notas que conseguiram no último assalto. Sacudiu Minguinho, o pequeno comparsa, e este resmungou alguma coisa. Insistiu:

- Minguinho, Minguinho... vamo rangá!

- Vou, não, cara! Tô alombrado. A cabeça tá doendo, bicho!

- Pó, tu é frouxo, moleque!


Badunga levantou-se e deixou o parceiro com o corpo largado no chão, entregue ao seu abandono de drogado. Chegou do lado de fora da casa, passou a mão nos molambos e nos cabelos, a cabeça ainda entorpecida pela droga. Ajeitou a faca na cintura e saiu andando. A noite estava muito fria e a friagem foi fazendo com que recuperasse a lucidez. Passou por trás da Igreja Matriz, na esperança de alguma birosca aberta no Feiraguai, mas não viu viva alma. De calças curtas, as pernas pareciam dois palitos de picolé e sentia dormência nos pés desprotegidos, enfiados em tênis surrado e furado de tanto uso, roubado, há um bom tempo, de um "filhinho de papai". Tentou entrar na lanchonete do posto que estava aberta, mas o segurança barrou seus passos:

- Aonde vai, pivete? Aqui não... Cai fora, vai...

- Qualé, meu! Só tô querendo uns jornal velho e uma caixa de papelão pra colocá no meu pisante. Oia aqui, oia! Tá furado e tá fazendo um frio retado!

- Fica ai fora que eu vou providenciar...


O homem entrou na lanchonete e, daí a pouco, voltou com um pedaço de papelão e um jornal velho. O menino caminhou até o canto onde estava o calibrador de pneus e sentou-se. Tirou o par de calçados, bateu no chão e, recortando o papelão fez palmilhas. Depois, enrolou os pés nos jornais e calçou o tênis. Acenando para o segurança, seguiu caminho, procurando os esconsos das edificações por onde passava com medo dos que ele chamava de "cana". Se a Civil passasse àquela hora e o visse, iria parar no Juizado de Menores e teria que enfrentar de novo a Fazenda do Menor. Resolveu diminuir caminho, indo pela Conselheiro Franco, rua de comércio menos vigiada pela polícia. Na esquina do Beco da Energia, encontrou outros menores que fumavam crack. Sendo seus conhecidos, misturou-se com os outros e lhe foi passado o cachimbo com a droga. Optou por dar, apenas, uma baforada e seguir adiante porque sentia muita fome. Não se alimentava desde a manhã, quando comeu um pão e tomou uma média no boteco do Joaquim. Saiu dali, caminhando, alcançou a Praça da Bandeira. Passou, desconfiado, pelo modulo policial e estranhou por não ter visto a viatura e só um policia que parecia ver televisão, de costas. Pensou que deveria estar acontecendo alguma batida e , finalmente, chegou na Praça de Alimentação onde encontrou alguns quiosques abertos e pessoas que lanchavam. Ao lado, embora frio e madrugada, alguns rapazes, corajosamente, praticavam na pista de skate. Pediu um lanche e um refresco. O dono da lanchonete exigiu pagamento adiantado e ele atendeu, achando aquilo normal. Com um pastel em uma mão e o copo descartável com refresco na outra, sentou ao lado da pista para ficar apreciando os praticantes. Um rapazote saiu da rampa em velocidade e perdeu o equilíbrio, caindo em cima dele. O lanche esbagaçou-se ao cair no chão e o refresco derramou, quebrando-se, com ruído, o copo descartável. Mal se recuperou do susto, levantou ligeiro, irado, e puxou a faca:

- Tá louco, cara! Que zorra é essa, mermão?

- Desculpa, foi sem querer.

- Sem querer um katis! Vai pagá a merda do lanche! Senão, vai tê bucho furado! Tô falando, cara! Vambora... Compra logo ali outro...


Um outro moleque que vinha correndo, conhecendo Badunga, parou nervoso e agitado:

- Cara, a "cana" tá grossa! Assaltaram um na Avenida do Canal e parece qui o home qui robaram é parente do sajento! Os samango tão rodando a cidade, com o home no carro, atrás de dois pivete. Vai sobrá pra um! Vamo si picá!

O informante continuou a correr e Badunga chegou à beira do passeio. Confirmando o que o outro lhe passara, uma viatura policial dobrava a esquina da Prefeitura, dava uma rápida parada no modulo e, depois, seguia, aproximando-se. De imediato, sabendo que seria reconhecido, esqueceu o aborrecimento e fugiu pela rua que leva ao SAC Municipal. Para evitar que o carro chegasse na esquina e o visse, dobrou à direita, na direção do Beco de Miguel das Ervas. Embora com a mente embotada pelo crack, lembrou-se que iria retornar, chegando praticamente no mesmo lugar onde estava. Sem parar, entrou na ruela que fica nos fundos da loja de bicicletas. Coração disparado, encostou - se numa porta, escondendo - se no vão de entrada. Ficou ali durante cerca de dez minutos. Quando sentiu que não era seguido, voltou e entrou na Rua dos Contabilistas, saindo na Avenida Sampaio. Tomando a esquerda, caminhou em direção à Rodoviária, alerta. Quando chegou na subida da rampa, onde ficavam os taxistas, uma mulher vendia mingau. Tomou a beberagem quente acompanhada de um pedaço de bolo de puba e, alimentado, sentiu moleza. Ficou por ali, perambulando, escutando as estórias dos taxistas e quando sentiu muito sono, foi pular o portão baixo do estacionamento do supermercado. Dentro do pátio, lado direito, ficavam as árvores frondosas e ele, protegido pelas copas, dirigiu-se à escada de ferro que liga o estacionamento do supermercado à Rodoviária. Esgueirou-se por baixo do equipamento e percebeu que outros meninos de rua dormiam espremidos uns contra os outros, por causa da baixa temperatura. Sem cerimônia, alojou-se e daí a pouco dormia...

De manhã, bem cedo, acorda com o barulho de gente subindo e descendo a escada de metal. Impossível continuar dormindo... Levanta-se, boceja e, espreguiçando-se, deixa o esconderijo. No bar da esquina, pede uma média de café com leite, come um pão com margarina. Saciada a fome, toma o caminho de volta para o sobrado abandonado, descendo a Avenida Presidente Dutra. Sem pressa, pára na porta do Pronto-Socorro e ver, sendo descarregada de uma ambulância, uma mulher que grita de dor, o rosto ensanguentado. Pergunta o que foi, não lhe dão atenção e ele, arteiro, fica ali como quem não quer nada, analisando a possibilidade de um descuido de alguém. Pensa: "-Se um otário desse bobiá vou leva mais uma grana pra casa!". Quando colocaram a mulher de volta na ambulância e esta partiu, de sirene ligada, lembrou de que estava sendo caçado. Resolveu ir embora e o faz, apertando o passo. Quando está perto do esconderijo, olha para trás e ver luzes girando. A viatura policial! Sai correndo em disparada, atravessa a Praça Padre Ovídio na diagonal e entra no Palácio do Menor ouvindo a viatura cada vez mais perto. Esbaforido, esconde-se atrás do muro, atirando-se no chão, justo no momento em que a viatura vai passando... Fica ali, o coração disparado, ofegante. No silencio do dia que começa, ouve que o barulho do carro se distancia. Levanta com um leve e maroto sorriso nos lábios. Agora, está calmo porque sabe que, com o amanhecer, havia terminado o plantão dos policiais e, como o dinheiro que pegara do otário fora pouco, a policia ia deixar para lá... Entra. Lá dentro, Minguinho ainda dorme. Badunga aproxima-se do parceiro adormecido e dá um chute no seu traseiro, dizendo:

- Levanta, seu merdinha! Tô de volta!

- Pô, Badunga! Tou cansado, vêio... - reclama a criança que ainda dorme.

- Vambora, cara! Trabaiá, rapaz!.. - insiste o outro, tornando a chutá-lo.


Vencido pela insistência do amigo, Mingunho levanta-se e, de má vontade, acompanha - o. Os meninos apanham os bastões enrolados de "ximbica" colorida e vão para a sinaleira.

Ali, quando o sinal fecha, no meio da rua, Minguinho, em que pese seu pequeno tamanho, exibe o riso mais simpático, revelando-se magistral na arte de fazer piruetas com os bastões. Cumprindo sua parte, ator formado no teatro da vida, Badunga demonstra abandono e falta de proteção ao estender a mão em súplica para recolher uns trocados de penalizados motoristas...

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