A Garganta da Serpente
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Sem o calabouço

(Eduardo Gutierres Ruiz)

...Sem dizer nada, ela descia rapidamente a escadaria esfumaçada, se esgueirando pelos seguidos corrimões de mármore. Nada era o som que se ouvia prolongar das paredes, que ardiam em chamas de caudas longas e com vida própria. Ela tentava fugir mesmo envolta em braços ardis, conscientes da fuga desta em maldita prisão. O lugar isolado era subjacente ao quarto mofado do Medo. Porém, algo arde mais furioso do que a centelha da traição tencionada por motivo puro? Sem delongas, nenhum fogo resistiu perante hálito frio desse ser austero. Desfeito o desafio, esquivou-se de fragmentos soltos dos tetos agora decadentes graças à ruína.

Ruína causada pela Razão, que esmoreceu diante da pressão infligida por sua fraqueza perante Moral. "Mas agora não há tempo. Preciso ao menos uma vez, depois de tantos anos, pedir a liberdade total para meu pai, Consciência, agora encontrado trepido perante a verdade", pensava Maldade com a vingança desejada nas alturas, apesar da evidente calamidade.

Já moradora deste casarão, desenterrou uma senda. Ela caminhava como se fizesse parte do ambiente e chegou antes do que esperava.

O fogo não reagiu mais. Fez alusão ao papel deste ser enclausurado e deixou os rumos seguirem como o era ordenado.

"Eis a porta que troçava de mim em meus sonhos", pensava ela. Tudo que a separa do esperado a retém um momento.

"E se for um plano de Razão para me testar? Depois de me trancafiar naquele porão vítreo a pedido de Bondade, foi muito fácil fugir de lá com as grades sem controle. Será que razão realmente perdeu o juízo? Não tenho tempo a perder agora!", e abriu lentamente o obstáculo. Conforme girava a maçaneta, sua mão queimava em calor maior que o do Sol, mas nem por isso seu rosto se contraiu. O rugido da batente e do chão com o mogno de infindáveis séculos anunciavam sua entrada. Estarrecida, se viu dentro de saguão sem fim. O começo e o presente se entrelaçavam num caos incompreensível, onde apenas o Tempo segurava as rédeas e galopava tal bizarrice. O pó que se erguia formava um tabuleiro herbáceo e Consciência. Este era jogador de xadrez nada hábil comparado com Futuro, seu rival e personalidade conflitante que aflora da psique do primeiro.

Tudo seria belo e majestoso se o incêndio não tivesse se alastrado até lá. Sem nenhuma surpresa, Consciência e seus companheiros analisaram a cena que imaginavam desenrolar. Com exceção de Tempo, ninguém enxergou o invisível.

Confiante e percebendo não ser um truque de Razão, Maldade viu crescer interiormente a desforra, e um sorriso irônico banhou sua face como a muitas gerações realizava. Ensandecida, correu em zig-zag para evitar o furor das navalhas de seu pai.Nada atônita, saltou em pirueta até o céu, penetrando na angústia criada pela situação em andamento desde antes. Apoiou-se no manto de couro de Futuro e desembainhou as garras perniciosas, desferindo corte profundo na garganta paternal. Porém, logo foi repelida energicamente com trovões de tempestade tenebrosa, alimentados pelo ódio de Consciência pela filha e ao todo descoberto. Mesmo tendo forças, seu pai se encontrava enfermo, sentando-se para mostrar um sinal de paz. Disse logo, como se esperasse um ataque:

- Rápido, não tenho tempo, diga logo o que quer de mim- Soltou em voz leve:

- Depois de tudo ainda me pergunta? Me adota, me recondiciona e me tranca em recinto morto pelo tempo, mesmo sem consentimento meu, e ainda me pergunta? A liberdade e seu trono, o que mais esperava? - Respondeu inebriante ao ver pequena agitação no semblante do pai.

- Acha fácil assim, chegar aqui e desejar grande façanha? Se logo morro, a Insanidade rouba o trono do qual sento, e nem mesmo meu irmão a tirará de volta a seu lugar. Nosso Deus precisa de nós todos como estamos, não compreende? Minha função é ser lógico a este mundo, e nada mais (consciência não criou ainda a lógica interna).

- Mas como pode ser lógico evitando minha natureza? "A realidade aqui está desconexa... E nós mediremos comedimento", blá, blá, blá. Grande coisa! Nascemos e nada mais: o resto nós fazemos. O Instinto quis assim. Ele veio até mesmo antes de você, quase junto com o Triunvirato.

- E desenvolveu ele mesmo através de meu primeiro irmão Inconsciência o Raciocínio, árvore que germinou a mim como o fruto do juízo, mediador entre meus primos- Respondeu Consciência em tom alto e com gestos insinuantes. Até ali ninguém se movia, estando sempre os dois com olhos fixos um no outro.

Porém, Maldade lentamente começa a rodopiar e a andar levemente, como se flutuasse pelo ar quente das chamas. Reminiscências de seu ardil a trazem de volta ao pensar. Consciência somente assistia a tudo, sem saber estar perplexo ou admirado com pequena atuação. Maldade então diz maliciosamente:

- Então... Você faz o lógico neste mundo... Não é?

- Claro!

- E o que ocorre agora, pelo que percebi...

-... Percebeu...

-... É que Razão por algum motivo sumiu, ou se estiolou?...

- Ela não aguentou a pressão de Moral e desfaleceu.

- E as chamas são o calor...

-... Do inferno que quer a alma dela. Maldito inferno de Insanidade! Você ela deixa caminhar por minha casa?! Malditos irmãos que se abstém do inevitável a estas horas!- Termina a frase esmurrando a parede calorosa. As chamas apenas assistem ao espetáculo. Com mesmo ar falso, retorna Maldade:

- Se razão está, digamos, "não presente", quem a assumi?

- Ninguém, pois é dela que parte essa decisão. Eu apenas realizo, não crio éditos.- respondeu sem saber onde ela quer chegar:

- Se a Razão aceitou trato com Bondade, é porque me temia... Indiretamente, é claro. Considerava-me imprópria num reino calmo, onde poderia contaminar todos com minha natureza. A terceira linhagem teme reverberação interior com luz minha, até mesmo eu sendo do clã... Apesar de ser bastarda.- Balbuciou para si mesma no final- Logo, ponho fim em tudo o que ocorre desde já. Como Razão conseguiu belo posto?- Terminou fixando olhar corrosivo em Consciência, que responde curioso nestes casos:

- Ela, junto dos irmãos, sacrificam os gostos que vão contra o Código Interno. Gostos que, como sabe, nascem do seu clã, minha filha. Este código guardo eu, e só eu sei onde.-Terminada a fala, Consciência percebe o dedo a girar de Maldade, sem saber o que insinua:

- O que foi? Diga!- Furioso, implica com Maldade, com esta respondendo:

- É movido para isso, papai, somente isso...

Assim dito, Maldade repara nos outros seres presentes, e pensa: "Tempo é um Primordial, um dos formadores do Triunvirato, e Futuro... Agora estará morto!".

No lampejo do pensamento, algo rápido ocorreu. Consciência nada percebeu de anormal, até uma gargalhada alucinante ter invadido o recinto. A seguir, viu toda chama cobrir com maestria um corpo humanóide e sua sala resplandecer novamente o salão de outrora: Pilastras que sustentam o céu avermelhado cobertas de vetiver, camélias, margaridas e mais flores e plantas de outra espécie em uníssono. As paredes iluminando com a escuridão do infinito o piso de terra enlodada, com a qual frutos crescem para alimentar o presente. Tudo voltava ao normal. O sonho de preservar a integridade colocava-o nas nuvens, já que nasceu apenas para isso. Feliz com a paz, se tornava o interior perfeito. Conseguia ver o futuro novamente... Até o choque do presente.

Isso mesmo! O fogo alimentava Maldade, maldita filha que com um punhal trespassou o coração de Futuro. Com a mesma, abriu seu ventre inexistente e retirou o Código Interno, mostrando compreender tudo. Em puro frenesi, Consciência cai do irreal momentâneo para a realidade dito injusta. Um choque terrível, como o bêbado em sua ressaca. Ele fluía em puro pranto, principalmente tendo de aturar fala solene e com ar de pompas de Maldade:

- Achas que não entenderia ridículo enigma? Você vive para o futuro, por isso nunca termina este maldito jogo de xadrez! Nunca se cansou de perder pra ele? Bem feito por nunca ganhar! Retirar o tédio de Futuro para não o cansar do agora... Putz, me poupe!

Aflito, Consciência refletia se fazia ou não uma pergunta quando ela tornou a dizer:

- Sim, caro papai, tenciono algo... Sou livre rainha!... Agora, me questiono... Como Deus Mente pode te ajudar? Ele perdeu a Razão, não foi? Tome, vá a meu antigo cubículo e veja como se governa isto aqui!- Naquele momento, Maldade entrou em pura nostalgia, e uma pequena lágrima escorreu em seu lindo rosto sujo de fuligem. Depois de um pequeno momento eterno, concluiu- Verás como aquele calabouço ensina a ver o mundo sem estar nele. Não vai se cegar como da outra vez, quando bondade enganou a mim e a razão, junto de Inconsciência? Quero lágrimas de sangue, não de medo!

Sem mais, Consciência se arrastou fúnebre sem ser pelas verdades ouvidas. Muito pelo contrário, foi por imaginar ter de suportar novamente querida esposa, que se isola de tudo e de si para todo o sempre quarto acima. Fácil foi a conquistar, difícil a aturar.

Em contrapartida, Tempo a tudo vê e nada faz, já que nunca pediu para ter fardo fora de sua natureza. É inato dele o metafísico e o tudo composto simplesmente por sua existência.

Futuro jazia quieto, mas nem tanto para um morto.

Maldade queria ver os rostos de seu irmão Bondade justamente naquele momento inexpressivo. Ela queria aplacar a sua sede, e algo a alimentava com um fervor que, como dizer... Um fervor insano!!!

E assim termino esta anedota.

Doravante, quem saberá quanto tempo durou este reino? Querem saber?...

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