...Sem dizer nada, ela descia rapidamente a escadaria esfumaçada, se
esgueirando pelos seguidos corrimões de mármore. Nada era o som
que se ouvia prolongar das paredes, que ardiam em chamas de caudas longas e
com vida própria. Ela tentava fugir mesmo envolta em braços ardis,
conscientes da fuga desta em maldita prisão. O lugar isolado era subjacente
ao quarto mofado do Medo. Porém, algo arde mais furioso do que a centelha
da traição tencionada por motivo puro? Sem delongas, nenhum fogo
resistiu perante hálito frio desse ser austero. Desfeito o desafio, esquivou-se
de fragmentos soltos dos tetos agora decadentes graças à ruína.
Ruína causada pela Razão, que esmoreceu diante da pressão
infligida por sua fraqueza perante Moral. "Mas agora não há
tempo. Preciso ao menos uma vez, depois de tantos anos, pedir a liberdade total
para meu pai, Consciência, agora encontrado trepido perante a verdade",
pensava Maldade com a vingança desejada nas alturas, apesar da evidente
calamidade.
Já moradora deste casarão, desenterrou uma senda. Ela caminhava
como se fizesse parte do ambiente e chegou antes do que esperava.
O fogo não reagiu mais. Fez alusão ao papel deste ser enclausurado
e deixou os rumos seguirem como o era ordenado.
"Eis a porta que troçava de mim em meus sonhos", pensava ela.
Tudo que a separa do esperado a retém um momento.
"E se for um plano de Razão para me testar? Depois de me trancafiar
naquele porão vítreo a pedido de Bondade, foi muito fácil
fugir de lá com as grades sem controle. Será que razão
realmente perdeu o juízo? Não tenho tempo a perder agora!",
e abriu lentamente o obstáculo. Conforme girava a maçaneta, sua
mão queimava em calor maior que o do Sol, mas nem por isso seu rosto
se contraiu. O rugido da batente e do chão com o mogno de infindáveis
séculos anunciavam sua entrada. Estarrecida, se viu dentro de saguão
sem fim. O começo e o presente se entrelaçavam num caos incompreensível,
onde apenas o Tempo segurava as rédeas e galopava tal bizarrice. O pó
que se erguia formava um tabuleiro herbáceo e Consciência. Este
era jogador de xadrez nada hábil comparado com Futuro, seu rival e personalidade
conflitante que aflora da psique do primeiro.
Tudo seria belo e majestoso se o incêndio não tivesse se alastrado
até lá. Sem nenhuma surpresa, Consciência e seus companheiros
analisaram a cena que imaginavam desenrolar. Com exceção de Tempo,
ninguém enxergou o invisível.
Confiante e percebendo não ser um truque de Razão, Maldade viu
crescer interiormente a desforra, e um sorriso irônico banhou sua face
como a muitas gerações realizava. Ensandecida, correu em zig-zag
para evitar o furor das navalhas de seu pai.Nada atônita, saltou em pirueta
até o céu, penetrando na angústia criada pela situação
em andamento desde antes. Apoiou-se no manto de couro de Futuro e desembainhou
as garras perniciosas, desferindo corte profundo na garganta paternal. Porém,
logo foi repelida energicamente com trovões de tempestade tenebrosa,
alimentados pelo ódio de Consciência pela filha e ao todo descoberto.
Mesmo tendo forças, seu pai se encontrava enfermo, sentando-se para mostrar
um sinal de paz. Disse logo, como se esperasse um ataque:
- Rápido, não tenho tempo, diga logo o que quer de mim- Soltou
em voz leve:
- Depois de tudo ainda me pergunta? Me adota, me recondiciona e me tranca em
recinto morto pelo tempo, mesmo sem consentimento meu, e ainda me pergunta?
A liberdade e seu trono, o que mais esperava? - Respondeu inebriante ao ver
pequena agitação no semblante do pai.
- Acha fácil assim, chegar aqui e desejar grande façanha? Se logo
morro, a Insanidade rouba o trono do qual sento, e nem mesmo meu irmão
a tirará de volta a seu lugar. Nosso Deus precisa de nós todos
como estamos, não compreende? Minha função é ser
lógico a este mundo, e nada mais (consciência não criou
ainda a lógica interna).
- Mas como pode ser lógico evitando minha natureza? "A realidade
aqui está desconexa... E nós mediremos comedimento", blá,
blá, blá. Grande coisa! Nascemos e nada mais: o resto nós
fazemos. O Instinto quis assim. Ele veio até mesmo antes de você,
quase junto com o Triunvirato.
- E desenvolveu ele mesmo através de meu primeiro irmão Inconsciência
o Raciocínio, árvore que germinou a mim como o fruto do juízo,
mediador entre meus primos- Respondeu Consciência em tom alto e com gestos
insinuantes. Até ali ninguém se movia, estando sempre os dois
com olhos fixos um no outro.
Porém, Maldade lentamente começa a rodopiar e a andar levemente,
como se flutuasse pelo ar quente das chamas. Reminiscências de seu ardil
a trazem de volta ao pensar. Consciência somente assistia a tudo, sem
saber estar perplexo ou admirado com pequena atuação. Maldade
então diz maliciosamente:
- Então... Você faz o lógico neste mundo... Não é?
- Claro!
- E o que ocorre agora, pelo que percebi...
-... Percebeu...
-... É que Razão por algum motivo sumiu, ou se estiolou?...
- Ela não aguentou a pressão de Moral e desfaleceu.
- E as chamas são o calor...
-... Do inferno que quer a alma dela. Maldito inferno de Insanidade! Você
ela deixa caminhar por minha casa?! Malditos irmãos que se abstém
do inevitável a estas horas!- Termina a frase esmurrando a parede calorosa.
As chamas apenas assistem ao espetáculo. Com mesmo ar falso, retorna
Maldade:
- Se razão está, digamos, "não presente", quem
a assumi?
- Ninguém, pois é dela que parte essa decisão. Eu apenas
realizo, não crio éditos.- respondeu sem saber onde ela quer chegar:
- Se a Razão aceitou trato com Bondade, é porque me temia... Indiretamente,
é claro. Considerava-me imprópria num reino calmo, onde poderia
contaminar todos com minha natureza. A terceira linhagem teme reverberação
interior com luz minha, até mesmo eu sendo do clã... Apesar de
ser bastarda.- Balbuciou para si mesma no final- Logo, ponho fim em tudo o que
ocorre desde já. Como Razão conseguiu belo posto?- Terminou fixando
olhar corrosivo em Consciência, que responde curioso nestes casos:
- Ela, junto dos irmãos, sacrificam os gostos que vão contra o
Código Interno. Gostos que, como sabe, nascem do seu clã, minha
filha. Este código guardo eu, e só eu sei onde.-Terminada a fala,
Consciência percebe o dedo a girar de Maldade, sem saber o que insinua:
- O que foi? Diga!- Furioso, implica com Maldade, com esta respondendo:
- É movido para isso, papai, somente isso...
Assim dito, Maldade repara nos outros seres presentes, e pensa: "Tempo
é um Primordial, um dos formadores do Triunvirato, e Futuro... Agora
estará morto!".
No lampejo do pensamento, algo rápido ocorreu. Consciência nada
percebeu de anormal, até uma gargalhada alucinante ter invadido o recinto.
A seguir, viu toda chama cobrir com maestria um corpo humanóide e sua
sala resplandecer novamente o salão de outrora: Pilastras que sustentam
o céu avermelhado cobertas de vetiver, camélias, margaridas e
mais flores e plantas de outra espécie em uníssono. As paredes
iluminando com a escuridão do infinito o piso de terra enlodada, com
a qual frutos crescem para alimentar o presente. Tudo voltava ao normal. O sonho
de preservar a integridade colocava-o nas nuvens, já que nasceu apenas
para isso. Feliz com a paz, se tornava o interior perfeito. Conseguia ver o
futuro novamente... Até o choque do presente.
Isso mesmo! O fogo alimentava Maldade, maldita filha que com um punhal trespassou
o coração de Futuro. Com a mesma, abriu seu ventre inexistente
e retirou o Código Interno, mostrando compreender tudo. Em puro frenesi,
Consciência cai do irreal momentâneo para a realidade dito injusta.
Um choque terrível, como o bêbado em sua ressaca. Ele fluía
em puro pranto, principalmente tendo de aturar fala solene e com ar de pompas
de Maldade:
- Achas que não entenderia ridículo enigma? Você vive para
o futuro, por isso nunca termina este maldito jogo de xadrez! Nunca se cansou
de perder pra ele? Bem feito por nunca ganhar! Retirar o tédio de Futuro
para não o cansar do agora... Putz, me poupe!
Aflito, Consciência refletia se fazia ou não uma pergunta quando
ela tornou a dizer:
- Sim, caro papai, tenciono algo... Sou livre rainha!... Agora, me questiono...
Como Deus Mente pode te ajudar? Ele perdeu a Razão, não foi? Tome,
vá a meu antigo cubículo e veja como se governa isto aqui!- Naquele
momento, Maldade entrou em pura nostalgia, e uma pequena lágrima escorreu
em seu lindo rosto sujo de fuligem. Depois de um pequeno momento eterno, concluiu-
Verás como aquele calabouço ensina a ver o mundo sem estar nele.
Não vai se cegar como da outra vez, quando bondade enganou a mim e a
razão, junto de Inconsciência? Quero lágrimas de sangue,
não de medo!
Sem mais, Consciência se arrastou fúnebre sem ser pelas verdades
ouvidas. Muito pelo contrário, foi por imaginar ter de suportar novamente
querida esposa, que se isola de tudo e de si para todo o sempre quarto acima.
Fácil foi a conquistar, difícil a aturar.
Em contrapartida, Tempo a tudo vê e nada faz, já que nunca pediu
para ter fardo fora de sua natureza. É inato dele o metafísico
e o tudo composto simplesmente por sua existência.
Futuro jazia quieto, mas nem tanto para um morto.
Maldade queria ver os rostos de seu irmão Bondade justamente naquele
momento inexpressivo. Ela queria aplacar a sua sede, e algo a alimentava com
um fervor que, como dizer... Um fervor insano!!!
E assim termino esta anedota.
Doravante, quem saberá quanto tempo durou este reino? Querem saber?...