A Garganta da Serpente
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Catete 1954

(Eduardo Guilhon)

23 de agosto de 1954. Reunião Ministerial no Palácio do Catete, Rio de Janeiro. José servia café na tensa reunião. Há vinte anos servindo no Catete, já passara por vários presidentes, infinitas reuniões, mas em nenhum daqueles anos sentiu um momento tão tenso no ar especialmente no Dr. Getúlio. Aquele homem por quem ele sentia extrema admiração - fora inclusive ele que o trouxera para Catete em seu primeiro governo - não escondia a tristeza.

Cada vez que entrava e saía era abordado por Gregório, que parecia ainda mais tenso que os homens lá dentro. Perguntava o que eles estavam falando, se citavam seu nome, se pediam para o Dr. Getúlio renunciar.

Sua companheira, Maria, também lhe narrava as piores tensões por parte da família do Dr. Getúlio. Cuidava das cousas pessoais dele e também servia Dona Darcy, sua esposa. Ela inclusive havia deixado de tomar seu chá das cinco na varanda do Palácio, pois era constante a presença de manifestantes na rua hostilizando. Dos filhos, Alzira era a mais presente, e de todos a que temia um final trágico. Chegou a presenciar, alguns dias antes, ela pedindo ao pai que não fizesse nada contra si mesmo, pois o ajudante de ordens havia achado, dias antes, uma carta em que Dr. Getúlio dava claros sinais de suicídio.

De noite, em seus aposentos em um quarto nos fundos do Catete, os dois conversavam e atualizavam-se das notícias do dia. Eles mesmos muitas vezes narravam os casos em lágrimas. Convivendo há tantos anos tão de perto com a família e mesmo com o governo, era impossível não sentirem-se tocados.

Todo este drama devia-se a um atentado ocorrido alguns dias antes, precisamente em 5 de agosto de 1954. O jornalista Carlos Lacerda, ferrenho opositor do governo, sofrera uma tentativa assassinato na Rua Tonelero, Copacabana. Dois pistoleiros abordaram o jornalista na porta de sua casa e disparam a queima-roupa. Acompanhado do filho e do Major Rubens Vaz, da aeronáutica, Lacerda foi abalroado e ferido por um tiro no pé. Seu filho saiu ileso, mas o Major não teve a mesma sorte. Morreu com um tiro certeiro no peito.

Lacerda aproveitou-se do atentado passando a atacar ainda mais o governo, manipulando o episódio politicamente a seu favor. A comoção popular foi enorme e rapidamente o inquérito ligou o atentado a Gregório. Havia indícios suficientes para apontá-lo como mandante, o que certamente atingiria o governo.

Finda a reunião, Dr. Getúlio sobe para conversar com sua filha Alzira e seu genro Dr. Amaral Neto. José está recolhendo as xícaras de café, quando ainda ouve a conversa de dois ministros:

"Ele não pode continuar. O país está muito instável, quase não consigo chegar hoje aqui."

"Mas o quê fazer? Ele jamais aceitará a renúncia."

Dr. Ernani e Alzira permaneceram no Palácio durante toda a noite recusando-se a ir para casa. Estafado, Dr. Getúlio beijou a esposa que se encontrava na cozinha, dizendo que ia descansar. Maria foi na frente preparar o quarto como sempre fazia todas as noites. Preparou-lhe a água quente para o chimarrão que ele gostava de tomar antes de dormir e retirou a colcha da cama deixando o pijama em cima. Quando estava acabando, ele entra.

"Boa noite, minha boa Maria."

"Boa noite Dr. Getúlio. Já está tudo pronto para o senhor deitar. Sua água já está quente, passei seu pijama e deixei lençóis novos. O inferno no Rio não é como no sul, mas hoje até que faz frio."

"Nada importa mais Maria."

"Não fale assim Dr. Getúlio. Isto tudo passa daqui a pouco o povo esquece."

"Eu fiz tudo que podia por este povo Maria. E agora o quê acontece? Sou acusado de coisas que não fiz, meus próprios ministros me pressionam para renunciar. Para mim chega Maria. Mas obrigado por tudo. Por todos estes anos cuidando de mim e da minha família."

"Boa noite Dr. Getúlio. Qualquer coisa o senhor me chame."

Ele olhou pra ela e sorriu. Ela fechou a porta, enxugou uma lágrima no rosto e desceu as escadas do palácio. Foi até a cozinha e encontrou José sentado sozinho. Ela nada precisou dizer, ele levantou-se e a abraçou. Ficaram ali, parados e abraçados, chorando um chorar silencioso e contido. Foram para o quarto mas quase não dormiram aquela noite. Além de terem deitado tarde, ficaram conversando sobre antigos planos de deixarem o Catete, de tentarem construir uma casa no interior, de fugir de toda aquela tensão. Não queriam mais aquilo, só resistiam por consideração ao Dr.Getúlio.

Por volta das sete da manhã já estavam de volta na cozinha do Palácio. Ao entrar, cruzaram com o Dr. Ernani, que visivelmente também não tinha dormido nada. Maria ficou em pé passando o café, enquanto José sentou-se folheando os jornais que se encontravam na mesa. Assim estavam quando ouviram um forte estampido vindo do andar de cima. Era do quarto do Dr. Getúlio.

Subiram correndo, foram dos primeiros a alcançar o quarto. Entraram e viram Alzira chorando sobre o Dr. Getúlio, que sangrava pelo peito, mas ainda com vida. Alzira desesperada cobrava-lhe que ele havia prometido não fazer aquilo, mas ele apenas a olhava e sorria. Um sorriso terno e franco. Ficaram os dois ali olhando aquela cena, sem saber muito o que fazer. Logo o quarto estaria cheio de gente, Dr. Ernani, Bejo, o chefe da guarda pessoal, os militares de plantão, o Major Fitipaldi, ajudante de ordens, ou seja, todo o círculo mais próximo do presidente.

Rapidamente a notícia se espalhou. Ainda de madrugada muitas pessoas voltaram a se aglomerar em volta do Palácio. Mas não eram mais hostis a Vargas. A morte foi seu último ato político. O povo agora lhe apoiava e hostilizava Lacerda, que logo depois teve que deixar o país com a família. Getúlio, com o suicídio, virou um jogo perdido. Seu cortejo fúnebre até o aeroporto para o enterro em sua cidade natal, São Borja, foi o maior que cidade tinha visto até então. Uma multidão acompanhou pelas ruas.

José e Maria não. Aquela cena de Vargas sangrando no quarto, foi a despedida deles. Não viam mais sentido continuar no Catete. A falta do Dr. Getúlio era o que precisavam para sair dali de vez. No meio de todo aquele alvoroço, juntaram seus pequenos pertences em surradas malas e saíram pelos jardins. Caminhando, ele ainda roubou uma singela flor e ofereceu à Maria. Pararam no portão, viram o Palácio iluminado pela última vez.

"Adeus Dr. Getúlio" ambos disseram.

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