Eleonora erguera, com sua imaginação fértil e na época
ébria de contentamento, as lajes de um suntuoso castelo o qual abrigaria
a si e Manuel após a união conjugal. Ele, um sapateiro de boa índole,
calmo, corpo robusto e alma tenra, era sem dúvida o príncipe que
sentaria ao seu lado na corte. Contudo, numa casinha de pedra onde passavam seus
dias de veemente júbilo, em um terreno ladeado de casas também simples
por onde seguia uma rua plana e extensa, mal sabia a princesa a forma cruel e
impiedosa que o destino lhe desferiria a branda espada da escuridão.
Nas horas em que seu amor se ausentava ocupado com o ofício, Eleonora via
em sua vizinha, Silmara, a forma de arrebatar o silêncio e a solidão
que afligiam o lar. Na esquina da rua, agitado e de muito movimento, crescia o
Bar Beba Sempre, ministrado pelo Sr. Siqueira, homem de pouco respeito e elevada
grosseria.
Certo dia Manuel não voltou a casa no horário habitual e sua esposa,
temerosa de que algo pudesse tê-lo tirado de seu seio, fez com que sua cabecinha
de anjo apaixonado imaginasse as cenas trágicas em que ele era personagem
e vítima fatal.
O marido mal pôs os pés no assoalho e Eleonora despregou os olhos
do cuco em que fitava cada tic-tac tamanha era a agonia por saber novas, pulou
em seus braços de vinte e seis anos para beijar-lhe os lábios e
liquidar seu sofrimento. Recuou, estarrecida com o fedor que Manuel exalava pela
boca:
- Sempre se considerou avesso à bebida, meu companheiro. O que lhe sucedeu?
- Arr, deixe-me - rosnou ele, entrou e desabou no sofá.
A mulher não quis aborrece-lo conformada com a suposição
de que seria um momento único depará-lo naquele estado, totalmente
fora do habitual, provavelmente provocado por aborrecimento no serviço.
No dia seguinte havia de tê-lo de novo!
As trevas daí por diante começaram a revestir o céu do alvor
do dia com seu manto escuro trazendo tempestades que aos poucos subjugariam o
grande castelo a cinzas.
Manuel tornou-se assíduo frequentador do Bar Beba Sempre retornando
ao aconchego do lar altas horas da noite. Silmara tratou de ser o pano que enxugava
as lágrimas que escorriam do rosto tristonho da vizinha, agora grande amiga
de Eleonora, com a qual desabafava a amargura de ver seu reino sem rei.
Três dias, três noites passaram desde a mudança de Manuel porém
não se notava desprezo por parte da esposa e sim um amor que ardia em chama
viva, encarregado de trazer a antiga graça dos primeiros dias em que se
uniram em uma só alma. Ele devia sofrer de algo que ocultava e amansava
o monstro desconhecido com álcool; ela também, com a diferença
de que a palidez e o refúgio em casa eram conhecidos por todos da rua.
O quarto crepúsculo encarregou-se de ferir o coração da pobre
mulher. Silmara bateu na porta de carvalho, agitada e com certa relutância
em pronunciar estas palavras à amiga, conseguiu, era necessário:
- Sinto muito... muito mesmo! Desculpe dizer o que certamente não passou
por sua mente ouvir um dia. No entanto, as circunstâncias me obrigam: Manuel
está estirado em frente ao boteco e o dono pediu para avisá-la e
que o retire de lá.
Eleonora não pestanejou e se dirigiu ao local, uma pontada atingiu o peito
ao ver seu esposo caído, deitado como mendigo sobre o chão sujo,
amortecido em sono profundo. Ela o acordou, passou o braço do homem em
seu ombro de modo a apoiar o frágil corpo dominado pela droga como se fosse
a muleta de um aleijado. Partiram para a casa e , nas calçadas ou pela
janela, diversos olhos curiosos se perdiam na cena comovente. Eleonora manteve-se
firme aos olhares impiedosos e de escárnio.
A mulher do bêbado encontrou uma resolução insensata para
libertá-los dos tempos escuros: estava decidida em ter com o Sr. Siqueira
uma conversa séria. E foi, num horário em que o sol irradiava forte
e Manuel talhava sapatos. Ao pisar os pés, o chão sórdido
e imundo trouxe repugnância, o semblante surpreso de homens aos ver uma
mulher penetrar em seu santuário sagrado aumentou o receio de voltar. Todavia,
um basta era imprescindível! Chegou ao balcão, sondou os mínimos
detalhes do rosto do algoz de sua felicidade.
- Qual o pedido da bela moça que se traz aqui presente? - indagou o dono
do estabelecimento. Compreendeu que não era tempo de gozação.
- Quero que pare de destruir meu marido! - vociferou aos soluços - Deixe-o
em paz e não torne a vender esta droga que lhe enriquece a custo do fim
das pessoas.
- Ora, ora... Com quem pensa que dirige a palavra? Talvez você seja a mulher
daquele bêbado que não arreda os pés enquanto não esvazia
três garrafas. Jamais daria ao luxo de perder um cliente desse porte - zombou
ele e sua voz grossa e rouca emitia um som capaz de assombrar e retirar a alma
do corpo com o susto.
Eleonora disse firme:
- Não discutirei. Está dado o meu recado - virou as costas e voltou
a casa, aliviada por deixar ambiente tão pesado.
Manuel chegou pela madrugada enaltecendo o desespero da esposa que lhe veio abrir
a porta e de súbito recebeu dele um tapa no rosto formando um vermelhidão
graças a dilatação dos vasos. Ela caiu e não obstante,
o marido enfurecido e impedido de se controlar pela cachaça, apanhou a
vassoura de um canto da sala e desferiu golpes contra o delicado corpo da esposa
de modo que não se faz a um animal, além de insultá-la dos
mais vis nomes em tom alto que acordou a vizinhança.
Arrastando o corpo pois as pernas se faziam doloridas pela pancada, Eleonora fechou
a porta com a chave e a cada muro e grito que o bêbado executava, mais caiam
lágrimas do cândido coração que aspirava ajudar ao
seu amor. O telefone do quarto tocou; era Silmara, alarmada com o barulho audível
por toda vizinhança:
- O que está acontecendo, minha amiga? Vou contatar a polícia para
libertá-la desse terrível verdugo que não merece um pingo
de compaixão.
- Não faça isto! - disse imperiosamente, as palavras dificilmente
pronunciadas devido à concorrência com os soluços e o pranto
- Estou bem, obrigada. Pode retornar ao seu leito e dormir tranquila que
amanhã tudo há de melhorar.
- Vou consentir por acreditar que tem um plano infalível.
- Sim, eu tenho.
O quinto dia amanheceu com a esperança, os pássaros chilreavam perto
do quarto de Eleonora um canto mavioso que a fez acordar leve e disposta. Na sala
o sofá, bagunçado e com cheiro de bebida, indicava que fora o local
escolhido por Manuel para cair em sonhos, naquela hora vazio por ele ter ido ao
ofício. A mulher saiu de casa decidida a ir à farmácia e
obter um frasco de um pó que vira em um comercial de televisão prometer,
com todos os artifícios e inverdades da propaganda, libertar os dependentes
alcoólicos do vício. No decorrer do trajeto, sentiu que as pessoas
presentes na rua a tagarelar, desviavam a atenção para si mostrando
desprezo ou pena. Mas ela pouco se importou, o remédio era a salvação
e a reconstrução de seu castelo até então sem defesas
contra o capanga de Lúcifer.
O marido chegou à noite, embriagado como de costume, porém menos
violento comparando ao dia que se passou. Era horário de janta, Eleonora
dispôs os pratos sobre a mesa adicionando à comida de Manuel a dose
indicada de Fora Álcool, não alterando o cheirou ou o paladar da
refeição. Sentou defronte a ele, permaneceram quietos como dois
estranhos, diferente dos dias de noivado em que conversavam animadamente inventando
os mais cabulosos assuntos quando os polidos esgotavam.
Um mês passou desde o início das doses. O frasco continha os últimos
vestígios do pó milagroso que não surtira efeito, suplantado
pelo vício que se mostrava em seu apogeu. Nesses trinta dias, difícil
é a descrição e também o número de vezes em
que a nossa heroína buscou seu amor caído próximo a uma sarjeta,
muitas das quais auxiliada pelo braço amigo de Silmara diminuindo o peso
de seu fardo. Espíritos maliciosos saíam as ruas ou janelas das
casas para se tornarem espectadores da tragédia alheia, aspirando a um
final nada feliz.
Silmara, no trigésimo dia, sugeriu à amiga:
- É tempo de tomar uma decisão enérgica. O que me diz de
tratá-lo em uma clinica destinada a este tipo de caso?
Eleonora ficou lívida ante a proposta de internar seu marido deixando-o
longe de si e aos cuidados de outrem mas tratava-se de uma alternativa, a única
naquela ocasião
- Com que argumentos direi a ele que precisa de cuidados? Sabe muito bem que os
dependentes de álcool não compreendem que o vício lhes corrói
o ser.
- Se necessário o levaremos a força! Tenha hoje mesmo essa conversa
com ele.
Manuel, de imprevisto, retornou no horário em que terminava o expediente
direto para o lar. O motivo da atitude resume-se de que o Bar Beba Sempre estivera
fechado por que o dono reporia o estoque naquele dia, contrariando o desejo sufocante
dos bêbados que o queriam aberto. Tal ação aumentou as funestas
esperanças da esposa, ansiosa por conversar com ele a respeito da clínica.
Sentaram sob a mesa defronte um do outro, a claridade subjugava a escuridão
tornando visível a beleza pura do colorido das flores e o som fino das
folhas das árvores balançando sob o vento. Começou, um pouco
sem o controle dos nervos:
- Manuel, creio que não esteja ciente de sua condição - somou
forças e prosseguiu - Encontrei uma porta, a saída no fim do túnel,
porém o único que pode abri-la é você, apenas lhe posso
mostrar o caminho até ela. Deixaria, por minha felicidade e nosso amor,
tratar-se com os médicos?
Houve um silêncio, daqueles que possibilitam ouvir a respiração
mesmo que não esteja ofegante. A ansiedade atingiu o limite, o coração
palpitava desferindo socos no peito, à espera de um singelo "sim".
Manuel não respondeu, desvanecendo a última gota de esperança
como pingo de orvalho caindo sobre chapa quente. O homem levantou da mesa, pegou
lápis e papel na estante da sala e rabiscou, tendo a parede como apoio,
palavras que Eleonora não ousou bisbilhotar. Em seguida dobrou várias
vezes o bilhete colocando-o no bolso das vestes e partiu para o quarto onde se
trancou. A mulher caiu no sofá a chorar, chorar e chorar, absolutamente
prostrada de ânimo. Seu corpo foi pesando, as pálpebras fecharam
de leve e depois dormiu.
No sonho da heróica dama, ela caminhava sobre um campo de relvas o qual
assemelhava-se a um tapete gigante, à frente via-se uma grande árvore
de copa espessa e ao seu fundo uma fogueira alimentada pelas toras empilhadas.
Acordou com o estrépito da porta sendo golpeada. Era manhã e Silmara
falou com desvelo:
- Preciso que venha e que seja forte...
- Saíram à rua de braços entrelaçados e na esquina,
ao lado do Bar Beba Sempre, fincavam-se as raízes de uma árvore,
a mesma que Eleonora vira no sonho. Estava envolta de pessoas cujo olhar dirigia-se
atento a um corpo que o usava o tronco como apoio. Ao chegarem perto, ouviu-se
um murmúrio:
-Estava ébrio de cachaça, andou trôpego e bateu a fronte contra
a sarjeta.
A mulher reconheceu o marido e disparou em seus braços frios e inanimados,
a testa jorrava sangue através do ferimento, passou a mão pelo corpo
do falecido e encontrou no bolso da calça o bilhete que escrevera na véspera
" Perdão por não ter a coragem de dizer-lhe, de afogar minhas
amarguras com quem em qualquer circunstância me acolheria. Sofro de uma
enfermidade incurável, câncer no cérebro, e quando soube deixei-me
ser levado pela fraqueza e a partir de então não pude mais dominar
meu vício. Desculpe por ser sua catástrofe, por acabar com sua vida"
Deu um último beijo nos lábios gélidos e roxos de Manuel,
cena triste, capaz de amolecer o duro coração do mais atroz dos
vizinhos. Pediu um lápis a um presente e escreveu no verso do bilhete palavras
trêmulas e garranchudas. Entregou-o a Silmara e partiu em disparada ao boteco
repleto de clientes.
Sem se importar com o sórdido ambiente, pediu um objeto a um dos bêbados
numa mesa recebendo-o de imediato e caminhou até o balcão.
- Dê-me a garrafa da mais cruel, forte e impiedosa cachaça de que
dispõe - disse com a voz lânguida.
O Sr Siqueira entregou e comentou com o caixa:
- Esta terá o mesmo fim do marido.
Eleonora retirou a tampa da garrafa, caminhou para um lugar onde todos pudessem
vê-la, virou o recipiente despejando o líquido sobre todo o corpo,
acendeu o fósforo que pedira ao bêbado e jogou em si tornando-se
uma tocha de fogo chamejante. As trevas não só destruíram
metade de seu castelo, carbonizaram o que restava em cinzas.
Silmara leu o bilhete:
"Deixo-lhe, como prova de minha gratidão e reconhecimento de sua
sincera amizade, todos os bens que possuo. Adeus e obrigada por seus amparos"
Os dias passaram e o Bar Beba Sempre entrou em ruínas por que os bêbados,
senhores de incontestável ignorância, acreditavam que a alma da mulher
suicida viria atormentá-los.
(10/01/04)