Segunda feira. A raiva presa como um nó entupindo a garganta. Lembranças
da véspera. Ôh domingo maldito aquele!
Fazer comida, esperar marido, gritar com filhos, colocar a mesa, sentar e comer
sozinha engolindo lágrimas a cada garfada.
E quando, finalmente adentra o rei, o dono, o todo poderoso senhor da sua vida
e sorte, está mais pra porco que pra leão.
Já veio comido e bebido. Só lhe faltou a dormida. E, com o olho
a fuzilar palavras não ditas teve que engolir mais esta garfada amarga,
o peso sujo dele nos seus lençóis puramente brancos, imaculadamente
limpos.
Mas a noite passa, a segunda sempre vem, e veio!
Então abriu a porta do quarto, saiu, pé ante pé, como se
criminosa fosse.
Não era! Era só fugitiva da vida,.
Passou pela sala, pegou as tralhas que deixara arrumada de véspera, camufladas
atrás do sofá, deu uma última olhada, sem dó, piedade
ou remorso, para os retratos em cima do aparador, quase na porta de saída.
Eles lhe retribuiram o olhar, desconfiados. Ela jurava que sorriam de dentro de
suas prisões emolduradas.
Apertou o botão do elevador, e o desgraçado não subia. Praguejou.
O vizinho do apartamento ao lado lhe esgueirou uma miradela de suspeita. Ela nem
aí.
Continuou nobre e na pose, embora já começasse a se sequelar no
interior.
E este maldito elevador que não chegava. E este desgramado de vizinho que
não arredava o olho e nem se dignava a descer pelas escadas, afinal estava
com as mãos abanando, não carregava o peso do mundo nas costas e
a valise na mão, como ela.
O corredor começava a respirar cheiros de café, perfumes baratos,
urros de crianças acordando, portas se abrindo atrás dos jornais
do dia. E o elevador dormindo no térreo, cansaço de vidas passadas
a limpo, de beijos escondidos e apressados, de casos que não podia contar.
Coitado do elevador. Tinha todas as desculpas do mundo pra acordar mais tarde.
Aguentava os chiliques da síndica, os porres do primeiro marido, muitas
vezes jorrados em jatos ali mesmo, no seu chão frio.
Acompanhava o romance do moço casado do 1203 com a divorciada, mais velha,
do 1501, sem dar um pio, cometer uma inconfidência.
As aulas da menininha, ainda no ensino fundamental, dadas de graça e com
graça
pro filho do zelador. Moleque esperto, aprendia rápido, e a lição
andava correndo solta e num progresso que só vendo.
E o elevador parado no primeiro piso de garagem, ué, ele desceu um andar?
Então acordou! Mas cadê que não sobe?
Perguntas, pensamentos, questões por resolver, a fome do café da
manhã não tomado, vontade de fazer xixi apertando e o elevador só
no bem bom, andares baixos, talvez sofresse de pânico de altura.
Olhou pro lado e se deu conta que o vizinho, cansado talvez de olhar pra sua cara
que não deveria estar das melhores, descera as escadas e nem um tchau.
Se escafedeu!
Conferiu o relógio, dez pras sete, daqui a uns cinco minutinhos o corredor
iria ser tomado de assaltos por babás e bebês, moleques de mochila,
mães praguejantes,
homens de terno e gravata, outros de moletom usando a barra da escada pra alongamento.
Coçou a cabeça. desgrenhou, sem querer, mais ainda os cabelos que,
na pressa, nem viram um pente.
Conferiu o painel, e lá estava o elevador, um andar abaixo do seu.
Virou as costas, rodou a chave na fechadura, entrou pé ante pé,
depositou suas tralhas no mesmo esconderijo e decidiu que não era um
dia propício.
Talvez na segunda-feira que vem ela fugisse outra vez.