O mundo do circo mudou de tal forma a minha infância que se tornou impossível
para mim desvencilhar das atividades que hoje exerço as lembranças
de quase tudo que vivi, pois que deixaram rastros e manias que tento ocultar
de alguma forma, mas com grande dificuldade. Minha ocupação obriga-me
a viagens constantes e não consigo dominar-me no sentido de evitar uma
ou mais idas aos espetáculos em cartaz pelas cidades em que me encontro.
Os picadeiros exercem sobre o meu espírito uma atração
que não consigo explicar e os divãs dos maiores especialistas
que o meu bolso comporta ainda não foram suficientes para amainar minha
compulsão por esta forma de arte. Sem o vislumbre da solução
a vista resta-me entregar-me a esta fraqueza, o que me satisfaz sobremaneira.
Porém, o prazer que desfruto só se torna completo com o deslumbrante
e majestoso número dos elefantes amestrados. Sem eles não há
espetáculo e, mais de uma vez, já deixei para trás o abrigo
das lonas ao ficar sabedor de que os meus artistas favoritos não se fariam
presentes.
E, o grande culpado por estas coisas acontecerem comigo não é
outro senão Toby. Os cartazes traziam sua foto em primeiro plano ao anunciar
"O Grande Circo Africano". Toby era ainda filhote, uma criança
mimada como eu na época em que o assisti pela primeira vez. Algo nele
deixara-me impressionado.Lembro-me que acabara de sair com papai de uma sorveteria
e, ao avistar aqueles dois homens pendurados em escadas a colar o imenso cartaz
no muro de uma estação de trem, parei e não tirei de lá
os meus olhos nem deixei o local enquanto não obtive de papai a promessa
de que, já na estreia do espetáculo, me levaria ao circo.
Em casa espalhei a notícia e, após um almoço incompleto
e ansioso, saí com Sofia, minha irmã caçula; queria mostrar
a ela o cartaz.
- Não a trouxe aqui para ver o cartaz apenas. Olhe em baixo o endereço.
É perto daqui e acabaram de chegar.
Acho que ela entendeu a mensagem pois, deu-me a mão e saímos,
frenéticos, correndo pela calçada em direção ao
local. Por trás do cais do porto havia uma área de proporções
gigantescas recentemente aterrada. A restinga não apresentava utilidade.
O lamaçal fétido, a proliferação de mosquitos e
outros inconvenientes levaram a prefeitura a optar pelo aterro definitivo da
região, atitude esta mais do que lucrativa ao gerar impostos e arrecadação
de aluguéis.
Dezenas de caminhões, trailers e automóveis dominavam aquela área.
Chegamos no exato momento em que erguiam e fixavam a lona gigantesca, o que
fez transfigurar totalmente a paisagem. Contornei com Sofia o terreno a procura
de Toby, mas não encontrei os animais. Sabíamos que estavam em
jaulas cobertas, sobre caminhões, fora de nosso alcance e protegidas
por seguranças. Frustrados, retornamos à casa e aguardamos o dia
seguinte.
Na inocência dos meus oito anos e, vendo o que vi pela primeira vez na
vida, numa cidade interiorana onde a mesmice imperava, é bem óbvio
que aquilo me marcaria pela vida afora. Eram tantos os animais que perfilaram
diante de mim, com a vantagem de uma visão privilegiada, que podia deles
sentir o cheiro, o hálito e quase tocá-los, até. O que
antes só vira na forma de imagens ou de ouvir falar, mostrava-se ali
real e magnífico. Conforme calculara, Toby foi o último a se apresentar.
Pisou o picadeiro acompanhado de mais oito elefantes, todos adultos, e conseguiu
roubar o show. Pouco passava de oito metros de altura, mas a tromba imponente
e o grito retumbante davam-lhe enorme confiança. A pele era de um marrom
muito claro e, os olhos, vivos e penetrantes.
Em dado momento da apresentação, ao passar por mim em uma das
voltas que fazia, Toby parou antes da hora, atrapalhando o número. Seus
olhos, que dardejavam um brilho incomum, mas repletos de ternura, caíram
sobre minha pessoa, deixando-me como que hipnotizado. O animal erguia belamente
a tromba e soltava no ar gritos que superavam os de um adulto. Os que vinham
atrás dele não conseguiram para a tempo e alguns chegaram a perder
o equilíbrio, quase indo ao chão. A verdade é que Toby
não conseguia mais se concentrar no que precisava fazer e deixou de atender
aos comandos de sua domadora.
E a razão de tudo era a minha presença. Para espanto geral da
plateia e meu, principalmente, Toby saltou sobre o picadeiro e parou
à frente da minha cadeira. Extasiado por sua beleza e pela candura daquele
olhar inocente, comecei a alisá-lo na cabeça e no dorso macio
feito seda recém curtida. Papai, ao meu lado, era a imagem do desespero
ao var que o animal, ao retribuir meus carinhos, roçava-me com a tromba.
No auge de sua palidez papai levantou-se e, puxando-me pelo braço, deixamos
o recinto, com mamãe e Sofia a nos seguir os passos.
- Não sei o que deu naquele animal! - disse papai quando já estávamos
na rua. - Você ficou totalmente exposto àquela fera, meu filho.
- É apenas um filhote de elefante, papai. Não ia me fazer mal.
Não viu como é doce e inocente?
- Sim, é certo que vi, mas, junto àquela inocência há
quase meia tonelada de peso - acrescentou, ainda pálido.
Não consegui resistir à tentação de ver Toby novamente
e, dias depois, durante um fim de semana que passei em casa de minha tia, confessei-lhe
a enorme vontade de assistir a um espetáculo circense. A cena com Toby
se repetiu e ele desta vez se mostrou ainda mais entusiasmado do que antes e,
só com muito trabalho e relutância, voltou para junto dos seus.
Passados alguns dias recebemos em nossa casa uma visita totalmente inesperada.
Era o Sr. Trudow, o dono do circo, que vinha conversar com papai. Este, ao saber
que o contrariara ao retornar ao local em que sofrera enorme susto, prometeu-me,
para mais tarde, uma reprimenda à altura.
- Venho ao senhor na esperança de poder solucionar um problema muito
sério para o nosso circo.
- E o que temos a ver com o seu problema? - papai respondeu decidida e intencionalmente,
querendo mesmo não se mostrar muito simpático.
- Espero que me compreenda e perdoe esta minha intromissão, mas é
uma tentativa desesperada de não ver o fracasso total do meu empreendimento
aqui nesta cidade. - E, antes que papai o interrompesse novamente, ele prosseguiu,
um tanto nervoso e inseguro: - Acontece que Toby é a mascote da nossa
trupe. O que ele consegue fazer, já nesta tenra idade, tem superado as
nossas maiores expectativas, como também as de seus domadores. E o Sr.
viu com os seus próprios olhos.
- Sim, ele é realmente impressionante - concordou, laconicamente papai..
- Como o Sr., todos estão impressionados. Nunca, em nenhum lugar do mundo,
um elefante se igualou a ele. Isto já foi comprovado.
- Sim, mas onde entramos nesta história? - Notei que papai já
dava sinais de impaciência.
- Toby vale uma fortuna. Não tem preço, para ser mais exato. O
que venho propor-lhe poderá, se não torna-lo rico, impulsionar
sua vida financeira como o Sr. nunca imaginou.
- Mas, por que eu, por que escolheu a mim?
Quando passou a ser sobre dinheiro o assunto, papai mudou de semblante e tornou-se
mais calmo e atencioso.
- Esta é a questão principal: por que o senhor? Na verdade, o
seu filho é a razão da minha vinda aqui. Deve estar lembrado do
que ocorreu na semana em que foram ao nosso show. A cena se repetiu no último
sábado e novamente com o seu menino. Acontece que Toby adoeceu nesta
mesma noite e não quer, por nada, retornar ao picadeiro. Já há
quatro espetáculos não o tenho como atração e minha
bilheteria tem caído vertiginosamente. Já tive uma experiência
semelhante a esta em outra cidade, mas não consegui adesão a minha
proposta. Felizmente, o animal conseguiu recuperar-se e voltou a atuar. Mas,
é opinião convicta do veterinário que o acompanha, que
uma recaída seria fatal a Toby. E eu não quero perdê-lo,
pois é valioso demais para todos nós.
- O senhor está dizendo que o bicho está doente por causa do meu
filho?
- Certamente que sim.
- E o que quer que eu faça?
- A vida de nossa mascote, a principal fonte de renda do "Grande Circo
Africano," está nas mãos deste menino - disse, apontando
para mim. - Quero que trabalhe para nós como domador dos elefantes amestrados.
- Mas, ele não passa de uma criança! Ainda vai completar nove
anos de idade.
- Isto não representa um problema, pelo contrário. É nesta
idade que se destacam os melhores domadores. Garanto que não precisa
se preocupar. Vamos treiná-lo muito bem. Conhecerá todos os segredos
da atividade. Já está mais do que provado que ele nasceu para
o circo. As atitudes e o comportamento de Toby não me deixam nenhuma
dúvida. - Tome - completou, estendendo até papai um cartão
de visitas. - Compareça esta tarde em meu escritório e conversaremos
melhor a respeito. Garanto que não se arrependerá, mas preciso
de uma resposta o quanto antes.
Uma mudança total ocorreu no estilo de vida de toda a minha família
a partir daquele dia. Passávamos na ocasião por grandes dificuldades
financeiras. As dívidas acumuladas e a insegurança quanto ao futuro
foram as razões que levaram papai a aceitar a proposta do empresário
circense. Mas, não foi nada fácil; tivemos que nos adaptar a muitas
novas situações; algumas inusitadas. Os benefícios a que
eu tinha direito não eram extensivos a minha família. O salário
era alto, digno de um artista que ia melhorando à medida que transcorriam
os anos. E pontual. Ia integralmente para as mãos de papai. Apesar do
sucesso profissional o estudo não teria que ser descartado. Recebia-o
por meio de aulas particulares no próprio circo onde quer que este se
encontrasse. Este foi um dos fatores que, no caso de minhas duas irmãs,
causou transtornos e muitas discussões entre meus pais. Isto porque mudávamos
constantemente de cidade e elas nunca conseguiram levar adiante os seus estudos.
Estes problemas, porém, perduraram até que completei 18 anos.
A confiança na minha capacidade, a vida sadia que eu levava e as ótimas
companhias aumentavam a segurança de meus pais. Percebia no semblante
deles como estavam felizes comigo. Nossa situação econômica
era então formidável a esta altura. "O Grande Circo Africano"
retornou ao Brasil para uma turnê. Minha família morava em Porto
Alegre por esta época. Vínhamos da Europa e minhas visitas em
casa ou as idas de papai e mamãe, que chegavam a levar seis meses para
acontecerem, passaram a ser mais frequentes.
Tornei-me realmente um expert na arte de adestrar um elefante e um dos favoritos
do Sr. Trudow. Ele nunca esteve tão certo ao mencionar a minha vocação
para o negócio. Usando de criatividade, adaptei novas técnicas
de adestramento e, não só Toby, mas todos os outros, mostravam-se
dóceis e colaboravam integralmente. As bilheterias dos últimos
anos foram as mais altas como nunca na história do circo. Isto propiciou
a possibilidade de investimentos que alavancaram o nosso sucesso. A imponência
de nossa estrutura vinha atraindo multidões fenomenais. Superávamos
a concorrência com os melhores e mais tradicionais circos da Europa, palco
dos grandes espetáculos. Ostentávamos casas lotadas em todas as
cidades por onde passamos. Éramos esperados com avidez e entusiasmo pelos
amantes do picadeiro.
A prosperidade do Sr. Trudow trouxe uma gama de profissionais disputados a peso
de ouro. O espírito de união, mais do que os ótimos salários,
os mantinha presos a nós. Este ponto era de extrema importância
e considero-o um dos pilares do nosso imenso sucesso. Diferentemente do que
se possa supor, não é nada fácil a vida de um artista de
circo. O glamour das noites iluminadas, os aplausos, as expressões de
alegria e a satisfação dos que os assistem são o paliativo
da rotina estressante e solitária a que somos forçados a nos submeter.
A disciplina e o auto controle são os companheiros de todas as horas,
além da saudade e do tédio que castigam sem piedade a alma do
artista, embora seja tudo isto o preço da fama.
Conforme prometera a papai, o Sr. Trudow não descuidava do meu bem estar.
Afinal, era eu o responsável ou o pioneiro de toda aquela fase maravilhosa,
não esquecendo de Toby que cresceu em eficiência, tornando-se ainda
mais incrível do que fora anteriormente. Era agora um adulto cheio de
garbo e vigor. Pai de dois belos elefantinhos que treinei a fazer alguns dos
números que foram dele no passado. Três meses passamos em Porto
Alegre, com casa cheia, como sempre. Uma preocupação andou rondando
minha cabeça, pois sabia que a qualquer dia teria minha família
assistindo ao espetáculo. Havia no meu número um momento que,
certamente, deixaria meus pais com os cabelos arrepiados de pavor e desespero.
Após conseguir dos elefantes que encantassem a plateia com suas
fantásticas habilidades, dava-se a despedida. Sob uma chuva de aplausos
eu me deitava no centro do picadeiro e, todos os paquidermes, em fila indiana,
passavam sobre o meu corpo, numa câmara lenta desconcertante. Toby era
o último a passar e, ao fazê-lo, tocava, com sua enorme pata dianteira,
o meu peito de forma leve e carinhosa. Dava-se aí o ápice da apresentação
e ouvia-se nitidamente, junto ao rufar dos tambores, suspiros de espanto e admiração.
Fechavam-se então as cortinas e, ao reabrirem-se, via-me no centro do
palco, montado em Toby e sob nova chuva de aplausos e ovações.
Deu-se o inevitável. No camarim, minutos antes do inicio de um espetáculo
vespertino, procurei disfarçar meu nervosismo conversando animadamente
com minhas irmãs, enquanto o Sr. Trudow era todo atenção
e cortesia para com papai e mamãe.
- Então, como se sentem hoje com um filho famoso e respeitado no mundo
circense? - perguntou, com um sorriso largo e repleto de simpatia.
- Ele é nosso orgulho! - disse mamãe, sorrindo também.
-Verão, após o espetáculo, que está melhor do que
nunca. A cata por seus autógrafos e o assédio da imprensa são
as melhores provas, sem mencionar os suspiros femininos por onde passa.
- Não vejo a hora de conferir - disse papai, saboreando o uísque
que lhe fora oferecido.
Eu ouvia, disfarçadamente, a conversa e crescia em nervosismo e ansiedade.
Recebi de todos um beijo de boa sorte e, quando me vi só, joguei-me sobre
um sofá que havia no canto da saleta como para expulsar a tensão
que me dominava. Pelo que conhecia de papai, pressenti que ele não iria
gostar do que estava prestes a assistir. Este seria, portanto, o ponto chave
da minha carreira. Ainda tentei, em conversa com o Sr. Trudow antes de entrar
em cena, suprimir aquela parte do show, mas ele mostrou-se contrário
e irredutível nos seus pontos de vista. Não queria se arriscar
a perder com a mudança. Era firme na sua crença de que toda a
apresentação, para arrebatar o público e fazer valer o
ingresso adquirido, devia trazer a emoção do perigo e do suspense.
Destituído destes ingredientes, perdia o circo, segundo ele, o seu valor
intrínseco e a sua razão de ser.
A meu lado, sobre uma mesinha de mármore, ficou a garrafa de uísque,
como a me convidar para o gole, o que nunca havia feito antes na vida. Mas,
como tudo tem a sua primeira vez, e meu estado de espírito sugeria algo
nesse sentido, levei a mão até a garrafa e virei no copo uma dose
com duas pedras de gelo. O aroma era agradável, o que me encorajou ainda
mais. Um gole e outro em seguida deixaram-me leve e descontraído. Repeti
a dose; vinte e poucos minutos ainda me separavam da minha apresentação.
Recostei a cabeça no espaldar da poltrona e o efeito relaxante da bebida
me fez adormecer e só despertar com as batidas na porta alertando-me
de que seria o próximo a entrar em cena. Levantei-me um pouco tonto,
lavei o rosto na pia, aprontei-me sem demora e fui ao encontro dos meus animais.
Apresentei-os ao meu público.
Enquanto se organizavam no picadeiro, percorri a visão pela plateia
e não custei a localizar minha família. Estavam bem mais próximos
do que eu imaginava. Ocupavam posição privilegiada em um dos camarotes
reservados a convidados especiais. Indo direto ao assunto, o que aconteceu foi
o seguinte: Ao ver aqueles imensos paquidermes passando sobre meu corpo e, como
se não bastasse, Toby, tocando-me com as patas e quase fazendo-me desaparecer
sob sua montanha de carne, mamãe passou mal e teve um desmaio. Os aplausos
que deveriam vir em seguida não aconteceram porque papai quebrou o silêncio
da cena ao levantar-se e sair gritando impropérios enquanto descia, furioso,
as escadas do camarote em busca do Sr. Trudow, ao mesmo tempo em que mamãe
era atendida por uma equipe médica. Quanto a mim, entre temeroso e envergonhado,
ergui-me e montei em Toby, aguardando o reabrir das cortinas. Todavia, o público,
por não atinar talvez com a verdadeira razão do ocorrido, bateu
as costumeiras palmas e pareceu mostrar-se satisfeito e recompensado. A orquestra
executou o tema indicador do encerramento da matinê.
Preocupado com o desenrolar daquela situação, deixei o picadeiro
e retornei para o meu camarim. Ali, encontrei o Sr. Trudow andando de um lado
para outro, visivelmente tenso.
- Onde está minha mãe? - indaguei, assim que o vi.
- Sossegue, ela está bem. Seu pai é quem me preocupa.
- O que disse?
- Quer cancelar o contrato. Acusou-me pelo que aconteceu; fui ofendido e não
gostei. Só me controlei por sua causa. Converse com ele, meu rapaz; está
completamente equivocado. Já fizemos a cena dezenas de vezes, não
há razão para tanto alvoroço. Não existem animais
melhores e bem mais treinados do que estes.
- Concordo plenamente, mas pense um pouco, Sr. Trudow, coloque-se no lugar de
papai. Foi um choque para ele, um duplo choque; por isso está exaltado.
- Neste momento, abre-se a porta e surge papai a nossa frente; sequer olha para
o Sr. Trudow.
- Fiquem à vontade, preciso voltar a minha sala - disse este e se afastou.
- Filho, não posso permitir que continue nesta atividade, é arriscada
demais - disse, servindo-se de uma dose de uísque.
- Não quero contrariá-lo, meu pai, mas já vou completar
21 anos e posso decidir o que é melhor para mim. Não sei fazer
outra coisa, o circo é minha vida. Depois de todos estes anos aprendi
a amar o que faço. E, não se esqueça, foi o senhor que
aceitou que eu ...
- Por isso mesmo! - interrompeu-me. - Por isso mesmo. É por amá-lo
e temermos uma tragédia que optamos por esta decisão, meu querido,
todos nós. Acabamos de conversar. Suas irmãs são da mesma
opinião e sua mãe, nem se fala.
- Vocês estão sob o efeito do que aconteceu com mamãe, mais
do que a cena em si que faz parte do universo do circo. Tenho certeza de que,
ao irem para casa e pensarem melhor, não quererão jogar fora a
oportunidade que mudou as nossas vidas.
- Pode ser, meu filho, pode ser. Mas, não posso garantir que mudaremos
de opinião. Você sabe, em casa sempre fazemos tudo em comum acordo.
Não respondo por sua mãe, ela está muito abalada.
Conversamos com o Sr. Trudow naquela mesma noite e consegui dele a permissão
de não atuar no espetáculo que encerraria as apresentações
do dia. Mais do que isso, ele me concedeu vinte dias de férias. Senti,
neste período, que tantas alegrias me proporcionou, um bem estar e uma
felicidade há muito guardada no recôndito da minha alma. Falo da
convivência em família, do prazer inenarrável de dormir
e despertar em um quarto aconchegante de alvenaria, numa casa de verdade. Levei
dias a me adaptar a uma vida tão comum à maioria das pessoas.
Tinha lembranças vagas do que fora minha infância e peguei-me saboreando
estes momentos, desta vez com maturidade e muito mais emoção.
Fui lançado prematuramente no mundo profissional ao desenvolver uma arte
que me projetou e me enriqueceu. Quando completei 18 anos comecei a administrar
o meu próprio dinheiro. E muito bem. Enviava para casa uma parte e, o
restante, que pouco usava, porque pouco necessitava, ia guardando para o futuro.
Diante do dilema, precisei tomar uma decisão e, ver minha família
sofrer por minha causa era algo que não cogitava. Demais, esta maravilhosa
experiência de tê-la junto a mim por tantos dias surgiu como agravante
a interpor-se no caminho da minha decisão. Como resultado, sentindo no
peito enorme tristeza, mas seguro da minha escolha, optei por deixar a carreira
que tantas glórias havia me proporcionado. Não foi muito difícil
para o Sr. Trudow aceitar minha demissão. Chegamos a conversar sobre
outras possibilidades para a minha permanência. Propõs-me outros
números, mas rejeitei-os todos. Acho que nunca teria neles a paixão
que me motivou a passar todos aqueles anos distante de casa, fazendo de Toby,
e os seus, a minha verdadeira família.
- Tenho algo a dizer-lhe - confessou-me o Sr. Trudow em um de nossos últimos
encontros quando estive no circo para tratar do meu desligamento. - Toby já
não é mais o mesmo; não atuou um dia sequer durante as
suas férias.
- Está doente? - perguntei, aflito.
- Não, não está. Mas sente a sua falta. Nunca vi um animal
apegar-se desse jeito a uma pessoa. Não sei se notou, nos últimos
tempos, não é mais o mesmo no picadeiro. Talvez esteja cansado
desta rotina de artista - completou, sorrindo. - Você treinou tão
bem os que vieram depois dele que estou pensando em aposentá-lo.
- Mas, é ainda muito jovem. Tem toda uma vida pela frente.
- Não para o circo. Há um período mágico em suas
vidas em que atuam belamente. Sentem-se o centro das atenções
e dão tudo de si. Mas, é um período, que precisa ser ao
máximo aproveitado. Maior ou menor, a depender do tipo do animal e de
sua raça. Venha, vamos vê-lo, vai gostar de sua visita.
Caminhamos e, na baia dos elefantes, lá estava Toby, meu querido e velho
amigo. Quando me viu, o brilho característico do seu olhar intensificou-se.
Acariciou-me com a tromba como sempre fazia. Diante de tão carinhosa
recepção, alisando seu dorso macio, revi na mente todos aqueles
anos maravilhosos. A antecipação da saudade que, por certo, me
assaltaria ao deixar Toby e aquele local, apertou-me o coração
e deixei escapar uma lágrima. Sr. Trudow que, de certa distância,
acompanhava a cena, aproximou-se e eu ouvi de seus lábios, ao mesmo tempo
em que senti um de seus braços sobre meus ombros:
- É seu. Pode ficar com ele. - Incrédulo, como a buscar confirmação,
olhei para ele fixamente.
- Sim, Toby é todo seu! Estive pensando num jeito de agradecê-lo
por todos estes anos de profunda dedicação. Isto não é
nada diante do que você representou para o nosso circo. E para mim, principalmente.
Sempre o tive como um filho, . Mas, vamos! Essa agora. Não quero me despedir
de um bebê chorão de 21 anos - completou, ao ver as lágrimas
banhar-me agora o rosto sem trégua. Mas, não foi diferente com
ele.
- Obrigado, Sr. Trudow, obrigado! - pronunciei, enquanto nos abraçávamos
emocionados.
E termina assim a história de Toby e, com ela, muito de minha vida. Durante
anos convivi com meu amiguinho em uma propriedade que construí e adaptei
para lhe dar todo o conforto possível. Com o passar dos anos, ao casar
e constituir uma família, iniciei em uma atividade muito bem apropriada
a quem, como eu, era dado a viagens e excursões: tornei-me agente de
viagens. Doei Toby a uma reserva indiana, o que, segundo especialistas, seria
vital a sua saúde e longevidade. Doeu a separação mas,
por amor, suportei-a pois, sempre sonhei para Toby uma vida de liberdade, entre
outros de sua raça. E, além de visitar os circos nos lugares por
onde passo, reserva uma outra paixão, uma visita especial que indico
a meus clientes, no coração da África, pois um pedaço
de mim ainda vive por lá.