A Garganta da Serpente
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Um telefonema de Deus

(Edgard Santos)

Flávia Ramos estava tensa naquela manhã de segunda-feira quando atendeu ao primeiro telefonema do dia.

- Fique fora deste caso se quiser salvar sua pele - disse a voz do outro lado.

- Quem está falando?

- Pode me chamar de ... Deus.

- Vou desligar se não se identificar.

- Desligue se quiser e não dou a senhora mais três dias de vida. Refiro-me ao caso da Thompsom e Thompsom Imóveis e Serviços. A empresa está à beira da falência depois que a senhorita interferiu no processo. Saiba que está colocando em risco não só sua bela carreira jurídica, mas também sua vida, doutora. Abandone o caso imediatamente; ainda está em tempo.

- Perca suas esperanças - respondeu com voz trêmula, mas decidida. Trate-se de se identificar ou aciono a policia; posso rastrear esta chamada se desejar.

- Estaria perdendo o seu tempo, meu amor, em ambos os casos - disse a voz e desligou. Flávia, então, verificou no identificador de chamadas, mas não reconheceu o número. Ligou de volta.

- Pois não! - disse do outro lado, uma voz feminina.

- Com quem estou falando?

- Desejaria falar com quem, minha senhora? Isto é um telefone público.

- Ah! Sim; obrigada - desligou, desolada.

A duas semanas do julgamento, tendo em mãos todas as provas, Flávia dava-se por satisfeita e orgulhosa em sua brilhante atuação como promotora neste intrincado processo. Conseguiu colocar na cadeia, em prisão preventiva, os principais envolvidos no desabamento do prédio: o engenheiro de obras e o presidente da construtora. Teclou em seguida um outro número.

- Quanto falta para a conclusão do laudo? - era a voz de Caio Brandão, o juiz do caso.

- Apenas algumas páginas mais e estará concluído. Preciso sustentar alguns restos de provas e colher dados que me faltam. Acabo de ser ameaçada.

- Acostume-se a isto, doutora; faz parte do seu trabalho.

- O problema é que não sei de quem está partindo. Certa estou de que não é trote. Seja quem for, está a par dos fatos e parece bem seguro do que diz.

- É voz de homem?

- Sim. Preciso de um rastreador de chamadas, acha que consigo?

- Creio que não terá problemas; não neste tipo de caso. Vou providenciar junto à chefatura. Assegure-se da voz quando ligarem novamente e mantenha-me informado.

O dia seguiu calmo no escritório. Uma garoa fina e insistente esfriava o fim de tarde; as ruas do centro começaram a ficar movimentadas e as marquises concorridas. Penetra na sala a secretária, arrancando Flávia das suas divagações.

- A senhora ainda vai precisar de mim?

- Creio que não, Inês. Esteve no Fórum?

- Sim, está tudo em ordem. Não se esqueça de sua audiência; é amanhã as oito.

- Obrigada por me lembrar. Acho que já pode ir. Não deixe de chegar cedo amanhã, por favor.

Flavia absorveu-se em processos e petições e não viu o tempo passar. As 20h30min levantou-se para ir embora. Vestiu o casaco comprido alaranjado e saiu. No corredor, alguém a esperava.

- Não tente fugir, e nem grite - disse um homem de meia idade e cabelos grisalhos. Trajava um paletó azul-marinho sobre uma camisa vermelha e calças brancas; mostrou-lhe a arma na cintura.

- Vamos! Entre no elevador - disse com autoridade, segurando as portas que acabavam de se abrir.

- O que quer de mim?

- Preciso responder? Sabe muito bem que se meteu em encrenca. Mas não posso dar detalhes, meu bem; apenas cumpro ordens.

- Quem é o seu chefe?

- Não vou matar sua curiosidade. Vai ter que esperar até estar em sua presença. Vamos! Entre!

A porta se abriu, mas era ainda a sobreloja. Em um lapso de distração do outro, aproveitou-se Flávia e desferiu forte e certeiro golpe entre as pernas do homem que se contorceu, derreado pela dor. Ela usou deste tempo e lançou-se para fora do elevador antes que as portas voltassem a se fechar. Tinha que ser rápida: desceu correndo as escadas, ganhou a calçada e entrou em seu automóvel, conseguindo arrancar antes que ele reaparecesse.

- Minha vida corre perigo. Em um só dia sofri uma ameaça e uma tentativa de sequestro; preciso de proteção - disse já à mesa do delegado, no distrito policial. Estava na Rua Gomes Freire para onde se dirigira após livrar-se do criminoso. Estava nervosa e muito pálida.

- Mandei vir um copo com água. Acalme-se e conte o que aconteceu.

- Sou a promotora que investiga o caso da Thompsom e Thompsom.

- É a doutora Flávia Ramos?

- Isso mesmo; de onde o senhor me conhece?

- Muito prazer - disse o delegado, estendo a mão que ela apertou com um sorriso forçado.

- Recebi hoje mesmo um telefonema do Senhor Caio Brandão. Já estou ciente de toda a história; acompanhe-me, por gentileza.

Dirigiu-se a uma outra sala, seguido por Flávia. Funcionários trabalhavam em três mesas bastante espaçadas entre si, com computadores e linhas telefônicas. Por uma janela ampla via-se o movimento da rua.

- Vera, pare, por favor, o que está fazendo e me ajude com este depoimento - disse para a amorena de uma das mesas. A bela jovem sorriu para Flávia e atendeu prontamente.

- Narre a ela o ocorrido, doutora; voltamos a conversar em seguida. - Virou-se e saiu para atender a um outro chamado de emergência.

- Foi um ato instintivo o que fez; reconheço a coragem, mas não posso deixar de dizer que arriscou sua vida. - Já à mesa de sua sala, dirigiu-se assim o delegado à Flávia, sentada a sua frente.

- Tenho que concordar. Talvez o nervosismo ou mesmo o medo tenham me levado àquela reação. - Se mostrava agora mais calma, embora não menos preocupada. - Desculpe doutor, mas como é mesmo o seu nome?

- Dantas, Aécio Dantas.

- Amanhã é um dia crucial para minha profissão desde que coloquei no dedo este anel - mostrou a mão que expunha a bela joia em um de seus dedos compridos, de unhas alaranjadas. - Estarei frente a frente com acusados e depoentes e agora sinto juntas a ansiedade de amanhã com o choque do que aconteceu hoje.

Seus olhos castanhos claros enfitaram o vazio por alguns segundos e voltaram a fixar o delegado. Ele viu que marejaram e, penalizado, mas mostrando calma e experiência, inclinou-se um pouco, alcançando as mãos de Flávia.

- Olhe, tudo vai correr bem, não deve se amofinar antes da hora. Pelo pouco que já sei a seu respeito, posso assegurar-me do que estou dizendo.

- Obrigado - disse mais calma. O Senhor Caio falou da minha necessidade de segurança?

- Se já tinha autorizado, agora, muito mais, depois do ocorrido. A partir deste momento, não mais sairá sozinha e pode contar com nossa força policial naquilo que precisar. - Dizendo isto, despediram-se.

Ocorrido o julgamento (dada a brilhante atuação de Flávia, cujo profissionalismo e a postura exemplar foram primordiais) todos os réus foram considerados culpados e exemplarmente punidos. A natureza dos fatos e as evidências apresentadas eram irrefutáveis. No entanto, restaram inimigos que queriam sua morte, por isso, armou-se a trama.

- Tudo tem que parecer um acidente; o que está faltando? - disse a voz do prisioneiro que, de dentro da cadeia, falava ao celular com alguém sentado à mesa de um restaurante a poucos quilômetros dali.

- Só estamos aguardando a sua entrada em casa.

- Onde está Marcos? - perguntou a voz?

- Já está posicionado dentro do caminhão.

- Muito bem, ligo mais tarde; boa sorte.

- Ela acaba de chegar, posso ver daqui, olhando lá para baixo - disse agora a voz de Marcos para o mesmo aparelho no restaurante.

- Ok; desça do caminhão e solte o freio, assim que ela se sentar no sofá.

Flávia saiu do banho e ligou a televisão. Sua casa, de frente para uma rua em declive, ficava na confluência entre o fim desta e uma esquina cuja curva, à direita, era obrigatória. Marcos colocou o carro em ponto morto, desceu e destravou o freio de mão. O pesado veículo veio em disparada.

- Posso servir o jantar? - perguntou a empregada.

- Espere um pouco mais até que eu sinta mais fome - respondeu Flávia. Estava sentada de costas para a rua. Atrás de si, uma janela envidraçada.

- Alô! - disse Flávia ao telefone que tocou em uma saleta ao lado da sala de visitas e que ela fazia de escritório.

- Alô! - repetiu Flávia e, novamente, nenhuma voz respondeu. Colocou o fone no gancho. Ouve-se, então, o grande impacto, que arrebenta a janela, levando ao chão a parede, fazendo parar o caminhão, com sua cabine dentro da sala.

- A senhora está bem? - disse a empregada que surge dos fundos, apavorada com o barulho.

- Sim! Eu... Estava ali... Há menos de dez segundos - respondeu Flávia, tremendo estarrecida, apontando para os destroços.

- Graças a Deus, não se feriu - disse Aécio Dantas, no dia seguinte na delegacia.

- Já tem ideia de quem tentou me assassinar?

- Totalmente - respondeu o delegado. - Logo, estarão na cadeia; e graças a uma testemunha.

- E quem seria? - quis saber Flávia, curiosa.

Entra na sala um homem, de aparência jovem e discreta.

- Quero apresentar meu melhor colaborador e detetive - disse o delegado com um sorriso.

- Satisfação! - disse Flávia, também muito sorridente. - Quer dizer que eu não estaria aqui, conversando, se não fosse o senhor?

- Pode estar certa disso - disse o detetive com orgulho.

- Como é mesmo o seu nome? - perguntou a advogada.

- Deusdete, mas, pode me chamar de... Deus.

Ela se deixou cair, muito pálida, sobre uma cadeira. Novamente, um copo com água precisou ser-lhe oferecido.

  • Publicado em: 07/04/2009
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