A solidão continua sendo um mistério indecifrável para
a nossa compreensão. Não saberíamos explicar, ao certo,
os efeitos deste sentimento para a alma humana, pois sua interpretação
é e sempre será dúbia. Chega a ser uma questão de
tendência que, a determinada altura, torna-se irreprimível e incontrolável.
Sua satisfação pode trazer alegria ou tédio, dependendo
de quem a experimenta.
Devo dizer que no meu caso não foi nem uma coisa nem outra, mas uma necessidade,
a qual fui forçado e que me fez conviver melhor comigo e com minhas fraquezas.
Vivi uma experiência inenarrável por simples meios literários.
Mas como são os únicos de que disponho no momento, não
me resta outra alternativa senão utilizar-me deles. Tentarei exprimir
os fatos tais como me ocorreram, deixando para os meus leitores a liberdade
da interpretação. Quanto a provas, não as tenho pela simples
razão da impossibilidade e da inconveniência, pois ter intactos
os meus sentidos e minha mão para mover esta pena já me traz todo
um prazer e bem estar só comparáveis àqueles anos inesquecíveis.
E, o mais importante, estou vivo para contar a aventura de que tomei parte.
Vamos a ela.
Vivia eu confortavelmente em bela herdade à beira de imenso lago que
mandara construir ao natural após o décimo ano da minha permanência
ali. A mansão custara-me uma fortuna, mas, que para o padrão de
vida que possuía na época, muito pouco afetara minhas abastadas
finanças. A construção do lago viera de uma decisão
repentina, levando-me outra dinheirama. Contudo, encheu-me de felicidade. Escrever
fora sempre um de meus passatempos prediletos, o qual transformou-se em profissão
rendosa e gratificante após a prematura aposentadoria que passei a ter
direito aos quarenta e três anos. Optei por ficar solteiro e, todas as
manhãs, sem o burburinho de crianças ou as interrupções
interpelantes de uma esposa, já estava eu em meu recôndito espaço,
desfrutando o prazer de minha atividade literária na varanda em frente
ao lago. A paisagem era-me graciosa e aconchegante. Tal estado de relaxamento
facilitava sobremaneira a chegada de ideias de que precisava para as
minhas histórias e crônicas. A fim de não me afastar desta
onda benfazeja, cercava-me de todos os indispensáveis acessórios.
Sobre a mesa grande e quadrada de tampo de vidro, trazia o telefone, cujo fio
preto, já quase esticado, vinha da sala passando pela janela aberta ao
meu lado. Alguns dicionários, o inseparável cachimbo dourado,
a caixa de fósforos, o pacote de fumo, o cinzeiro, eram meus companheiros
de todos os dias. Até mesmo um pequeno sino vermelho estava ali para
os casos em que quisesse um suco de laranja com gelo ou, nos dias frios, um
chá bem quente a expelir fumaça. Era só balançá-lo
e Thomas, o criado, num rufo, aparecia em seu traje branco de cozinha e avental.
As samambaias enfolhadas que pendiam dos vasos ensombrecidos quase acima de
minha cabeça protegiam-me do sol muito forte que às vezes incidia
no local. Por baixo delas minha visão se estendia para longe e eu apreciava
o lago. As águas calmas eram um convite à inspiração.
Da varanda até ele eram não mais que vinte metros num plano levemente
inclinado. Descia-se três degraus de mármore para o chão
de grama que avançava até um jardim de espécies variadas
e baixas para não encobrir a visão de fundo. Contornando-se este
jardim tinha-se o lago em todo o seu esplendor. Não poupei recursos para
aproximar minha obra o mais possível do natural, fauna e flora. Plantei
caniços que ornamentavam a orla de um tom especial. As Sagitárias,
com enormes flores brancas e róseas, apontavam para o céu exóticas
folhas aéreas com a imponência de um guerreiro a exibir sua lança.
Íris vivazes e vigorosas davam um complemento perfeito ao todo. Em uma
zona mais profunda fiz conviver espécies enraizadas de folhas flutuantes
que, quando floresciam, surgiam fora d'água, belas e copiosas. Quanto
à fauna, apresentava uma diversidade que lhe era característica,
predominando várias espécies de média profundidade e temperatura.
Sentia-me assim em meu próprio paraíso particular. Os diálogos
reais que me faltavam fazia-os com os personagens das ficções
que escrevia. Envolvia-me com eles de tal forma que me pegava inúmeras
vezes falando comigo mesmo. Ao dormir, com um provável desfecho para
determinada história não poucas foram às vezes em que,
ao despertar pela manhã, tinha-a acabada, na ponta da língua e
na memória, restando-me não mais do que sentar e transcrevê-la
para o papel, impregnando-a do meu estilo próprio. Não é
demais ressaltar o prazer que isso me causava, pois, ao retornar para a cama
à noite e já livre daquele texto e dos personagens, não
raro recebia-os em meus sonhos. Via-os sorrindo alacremente, heróis e
vilões, unidos e confraternizando-se. Na ponta desse sonho eu aparecia
e recebia os seus agradecimentos. Dias se passavam nos quais todos os meus sentidos,
como que aprisionados a este estado de graça, a este gozo íntimo
e extemporâneo, já me impedia a concentração para
uma nova narrativa. Foi quando, em certa noite, um fato me surpreendeu.
Era inverno e a temperatura muito baixa que vinha fazendo nos últimos
dias trouxera-me para dentro de casa, distanciando-me do hábito salutar
de unir minha literatura à apreciação do paraíso
particular que grandes inspirações me proporcionava. Munido dos
meus instrumentos habituais, instalei-me na biblioteca contígua à
sala de estar. Minha posição dava agora de costas para uma janela
que costumava deixar entreaberta e que por hora vinha fechada por causa do frio.
Estive propenso, mais de uma vez, a alterar a posição dos móveis,
que não eram muitos, a fim de poder ficar de frente para ela, mas confesso
que a preguiça e a indecisão foram mais fortes. Outrossim, não
via nisso tanta necessidade. Utilizava aquele canto mais para a leitura e à
noite; geralmente fazia-o sentado a uma pequena poltrona encostada à
parede atrás de mim. A visão de um céu estrelado já
me era suficiente e benéfica. Quando não lia, passava para o computador
os textos manuscritos e procedia a revisão.
Pois bem, num desses dias em que a inspiração não me vinha,
devido às razões já mencionadas, estive vagueando ao redor
do lago, contemplando a natureza. Minhas espécies flutuantes estavam
no auge da sua floração e transmitiam-me inefável bem estar.
O conjunto dessas plantas formava estranha figura geométrica. Uma espécie
de paralelogramo cruzado, o qual, influenciado por um incomum movimento das
águas, partia-se em duas metades que por sua vez resultavam em dois triângulos
equiláteros que, após alguns instantes, voltavam a unir-se, dando
forma à figura primitiva. Olhei ao redor da vegetação e
vi formarem-se bolhas como se alguém houvesse ali atirado uma pedra ou
coisa parecida. O mais estranho - e aí não houve de minha parte
qualquer ilusão de ótica, pois estava inteiramente concentrado
- é que a direção das ondas que se seguiram não
correspondia ao que é comum numa situação idêntica,
ou seja, em vez de se expandirem concentricamente elas permaneciam paradas num
mesmo ponto em torno das bolhas. Intrigado, atirei naquele ponto uma pedrinha
e o fenômeno desapareceu por completo. Continuei meu passeio dando uma
volta inteira em torno do lago; satisfeito, retornei para dentro de casa.
O ar da manhã fizera-me muito bem. Senti que pegando a caneta e concentrando-me,
surgiria uma boa ideia para um conto; foi o que fiz. Já na biblioteca,
desfiz-me do casaco azul marinho de veludo de algodão, pois sentia calor,
e ajeitei-o sobre o encosto da cadeira. Sentei-me animado e comecei a trabalhar.
Abri um caderno grosso de espirais de arame com capa marrom dura e passei a
esboçar as primeiras linhas de uma história que me acabara de
ocorrer. À minha frente, ao lado do computador, outro caderno igual aquele,
porém mais fino, enchia-me de orgulho. Ali estava, inteiro, o romance
que havia terminado dias antes. Escrevera-o em menos de três meses tal
fora a ânsia que tinha de vê-lo concluído. Sequer o havia
ainda registrado em meu micro, pois pouco tempo e energia me sobravam após
horas intensas de emoção debruçado sobre aquela história
arrebatadora. Sendo assim, findo o primeiro parágrafo da obra recém
concebida, o telefone tocou a minha frente.
Confesso que detesto tal espécie de interrupção quando
me encontro aplicado em fazer brotar as minhas ideias. Mas como pessoa
agora de sucesso e admirada na sociedade, precisava exercitar a polidez e a
atenção que merecia, não só a mídia, como
também, e muito mais, o meu público em geral. Minhas conjecturas
duraram o suficiente para fazer com que o aparelho me alertasse por quatro vezes
da presença insistente de alguém do outro lado da linha. Da quinta
vez, entretanto, estiquei meu braço e peguei, com desdém, o fone
preto à minha frente. Não reconheci em absoluto a voz, o que reforçou-me
a convicção de que seria um admirador que havia, de alguma forma,
conseguido o número e estivesse querendo alguns minutos de prosa para
falar, talvez, de algum livro meu que lera ou algo assim. Ao responder ao primeiro
cumprimento, preparava-me gentilmente para desligar quando uma frase sua prendeu-me
a atenção. - Se fosse você não seria tão duro
com Cesário - disse num tom sério e amargo.
- Deve estar equivocado - falei, com certa impaciência, porém,
mantendo a calma, e despedi-me novamente, esperando a compreensão do
meu interlocutor, já que dei a entender que estava ocupado, - não
conheço ninguém com esse nome - completei. Realmente não
conhecia. O único Cesário com quem andara envolvido nas últimas
semanas fora o personagem fictício da aventura que já estava pronta.
Permaneci à espera de sua aquiescência para que eu pudesse, definitivamente,
abaixar o fone e dar por encerrado o diálogo. A voz, porém, no
mesmo tom angustioso e seco, retrucou:
- Você está falando com ele, muito prazer. - confesso que não
me sentia bem com aquele tratamento íntimo, especialmente vindo de um
fã, o que não costumava ocorrer. Tive a certeza de que o era no
momento em que finalmente se apresentou. Satisfeito respondi:
- Muito bem, Cesário. - Ainda com sua primeira frase na memória,
continuei: - Fico contente por ser um de meus leitores. Espero que aprecie o
meu trabalho. Será um prazer conversar com você, mas em outra hora.
Agora estou
- nesse momento a voz interrompeu-me.
- Sou um de seus personagens. - Demorei-me um pouco para voltar a falar, tal
foi a minha surpresa. Seria uma tremenda coincidência alguém cujo
nome era o mesmo daquele que figurava em minha mais recente criação,
neste caso o próprio protagonista, ter esse desejo sem saber que já
fora atendido. Apressei-me em dar-lhe essa boa notícia.
- Parabéns! Acabei de escrever um romance em que há um Cesário;
seu nome já consta em um dos meus livros.
- Eu sei disso, é por isso que estou telefonando.
- Impossível; os originais sequer saíram de minhas mãos.
- Achei que já estava desperdiçando o meu tempo e estive a ponto
de ser descortês, quando o sujeito veio-me com uma proposta tão
irracional quanto inconsequente.
- Para começar - disse agora num tom quase autoritário - O Cesário
é o personagem principal desta sua história. Se não estiver
satisfeito, o que posso garantir, estou pronto a narrar, se preciso for, toda
a trama de ponta a ponta, com algumas modificações que, por certo
irão ocorrer. - E, sem esperar minha aprovação, pôs-se
a destrinçar cada cena diante de minha audição atenta e
perplexa. Nem seria preciso dizer que aquilo deixou-me embasbacado. Todas as
preocupações e impressões rotineiras que vinham me atordoando
nos últimos dias desvaneceram-se para darem lugar a uma atenção
assombrosa e exclusiva. Enquanto ouvia-o pasmado, algumas imagens vieram-me
à lembrança como, por exemplo, os sonhos das últimas noites,
em que as imagens confusas denotavam a presença de alguém no fundo
que acenava em desespero como se pedisse ajuda, e quando eu tentava acudi-lo,
suas mãos se soltavam das minhas e ele caia como que numa queda infinita.
No meio desta queda, eu acordava.
A história procurava mostrar o lado negro da alma humana, vencida pelas
fraquezas e ilusões deste mundo. Cesário, homem arguto por natureza,
vivera este drama em sua vida. Não tinha do que se queixar, possuía
dinheiro, bens e pessoas que o amavam. Casou e não teve filhos. A desculpa
de amar tanto a esposa a ponto de não querer dividir com outros o amor
que sentia por ela, fê-lo amargar uma decepção que o marcaria
indefinidamente. Achava que o vigor de suas trinta e duas primaveras, o tipo
saudável e atlético e o dinheiro, seriam o suficiente para prender
o coração de uma mulher tão jovem e fogosa como Fernanda.
Morena índia, de olhos grandes e expressivos e treze anos mais nova.
Viveram uma paixão até mais longa do que seria de se esperar.
Todos os gozos que da carne se pode auferir mantiveram vivo o elo que, todavia,
não sendo imune, rompeu-se.
Fernanda arranjou um amante após quinze anos de convivência com
Cesário, e o que sonhava acabou conseguindo: engravidou. A separação
foi inevitável. Ele sumiu por uns tempos e nem mesmo aos amigos mais
íntimos deu notícia. Ao retornar, tentou nova vida mas já
aí seus sentimentos eram outros e os valores estavam transformados. O
baque da perda afetara-o sem piedade. As mulheres representavam não mais
que um símbolo, o do prazer sexual. O dinheiro, o poder da compra e as
amizades de agora eram depositários de suas frustrações
e catalisadoras de sua derrota. Daí para o fundo do poço não
faltou senão a força do empurrão de um dedo, e este veio
na perda do pai, o último merecedor de suas mais sinceras confissões
e transmissor de apoio e confiança. Fica notório o cunho trágico
e negativo dado à história, embora tenha eu permeado o seu conteúdo
de verdades e ensinamentos úteis a uma conduta de vida.
Terminado aquele relato, a voz emudeceu por instantes; queria o desconhecido,
por certo, sentir minha reação. Como demorava-me a pronunciar
qualquer palavra, pois nenhuma encontrava, tal o meu estado indescritível,
ele então prosseguiu:
- Creio que agora entende porque não deveria ser tão severo com
o seu personagem - frisou bem estas últimas palavras; "O seu personagem".
- Isto é alguma espécie de brincadeira? - indaguei com seriedade.
- Há muito que não estou para brincadeiras, se é que você
está bem lembrado da história. Não se joga um ser em sombrio
estado de solidão. Só mesmo quem passa por igual tormento pode
avaliar a dor. Por isso para que compreenda o meu sofrimento vou fazê-lo
sentir o que é estar só no mundo. Verá a vida como eu a
vi, da forma que escolheu para mim. A ficção vai tornar-se realidade.
Ah! Ah! Ah! Ah! - nesse ponto, desliguei o aparelho.
Enquanto durou aquele dia não mais firmei meu espírito. Fiquei
sem iniciativa, deixando-me levar pelo resto das horas que trar-me-iam a noite
e, com ela, o sono e o esquecimento. Este, poderia encontrá-lo na leitura
de um livro, desde que não fosse um dos meus; foi inútil. Não
suportei os Cesários que insurgiam dos parágrafos, cobrando-me
decisão. Pousei o volume e levantei-me, recolhendo o casaco. Fiz dois
passos até a porta e dei com o Thomas: - O patrão não ordenou
o almoço? Já passam das duas.
- Já almoçou?
- Não, senhor.
- Então faça-me companhia.
Terminada a refeição, passei à varanda. chuviscava. Recostei-me
à cadeira de balanço, acendi e me dispus a saborear o cachimbo.
Os gestos quase cerimoniosos que às vezes impunha a mim mesmo em certas
situações que me eram prazerosas, iam, aos poucos, serenando minhas
emoções. Foi bom enquanto duraram o fumo e minha disposição.
Tentei um cochilo, mas ele não veio. Os pingos, que já se faziam
grossos, ao invés de trazerem o sono, levaram-me a paciência e
eu entrei novamente. De tudo fiz para afastar de minha lembrança o intruso
indesejável que por todos os lados perscrutava-me sem trégua.
De tudo fiz para esquivar-me. Liguei a televisão, peguei o jornal, fui
à janela e olhei o tempo. Retornei à varanda; pus os pés
para o lado de fora e estive a ponto de entrar na chuva. Quis dar ao corpo,
quem sabe à alma, um banho inédito. Voltei à biblioteca.
Procurei nos livros um conforto. Tinha que fazer alguma coisa. Consegui. Por
quase uma hora. Ao cair da noite o telefone tocou.
Sem tirar os olhos do texto, que já me cativava, estendi minha mão
e trouxe o fone preto ao ouvido. Por pouco não quebro o arco da luminária
acesa, tal a minha displicência. - Pronto para seguir minhas instruções?
- disse a voz a qual reconheci imediatamente. Larguei o livro aberto em cima
da mesa. O vento da janela fez correr todas as folhas, levando as páginas
que eu lera, junto com as outras, para um lado e minha atenção
para um outro. A voz continuou:
- Não adianta todo o esforço que fizer; não vai livrar-se
de mim. Entre outras consequências de que mais tarde ficará
sabendo, há uma da qual já tem sentido os efeitos. Falo de sua
verve, de que tanto se orgulha e muito o tem auxiliado. É isso mesmo.
E não conseguirá escrever mais um capítulo sequer de suas
histórias tão afamadas. Portanto, se pretende continuar escritor,
é só fazer o que eu vou indicar, caso contrário, o seu
fim será o meu fim.
Como já disse, o caráter trágico que dei à história
perdurou até o último capítulo e para acentuar o castigo
do personagem, culminei-o com a morte. Inútil descrever o meu estado
naquele momento. Senti-me como o criador às voltas com o ódio
e o sofrimento de sua criatura. Pensei em dar um ponto final àquela situação
que, de ridícula, havia passado para o terreno do absurdo, sendo agora
real e temível. Uni todos os esforços mentais no sentido de encontrar
explicação e não encontrei uma que fizesse jus à
racionalidade de minha análise. Sendo assim, num ímpeto de coragem
e, por que não dizer, de curiosidade, indaguei:
- O que quer de mim, o que preciso fazer? - não nego que um sentimento
qualquer de hostilidade tenha-me impelido a fazer esta pergunta. Outrossim,
a tensão e o desejo de voltar a escrever já eram tais que sufocavam
qualquer possibilidade ou tentativa de minha parte. A insistência do vento
frio penetrando pela janela fazia voar o cortinado branco e úmido, roçando-o
em minhas costas. Quis erguer-me para cerrá-la mas desisti; apenas fechei
o livro, guardando as páginas que ainda vacilavam para ambos os lados.
A voz respondeu:
- É melhor desse jeito. Sabia que lidava com uma pessoa inteligente.
Terá o privilégio, acho que posso chamar assim, que nunca foi
de outro autor, de conhecer pessoalmente o protagonista de seu romance. Tudo
o que tem a fazer, acredite ou não, é mergulhar naquele lago e
ir até o fundo dele; é lá que eu vivo. Explicando melhor,
ao alcançar o fundo do seu adorado lago, vai encontrar a passagem que
dá acesso ao meu mundo. Lá ficará sabedor dos passos que
terá que seguir a fim de adaptar-se àquele meio. Acredito que
não terá dificuldades, por tratar-se das condições
e situações que você próprio escolheu para Cesário.
Porém afirmo: nem tudo será previsível. Entretanto, perceberá,
como bom observador que presumo que seja, as nuanças salvadoras do cenário
imaginoso o qual soube muito bem criar. Devo acrescentar que admiro deveras
o seu estilo, por isso dou-lhe esta chance de arrepender-se e repensar suas
tramas. Não se esqueça: nada tenho a perder, pois sou apenas ficção.
Ah! Ah! Ah! Ah!
Abri a boca para falar quando ouvi soar em meus ouvidos o eco da ligação
desfeita. As forças físicas e mentais que ainda me restavam após
tão inesperada e chocante experiência ergueram-me da cadeira e
lançaram-me prostrado sobre a pequena poltrona. Thomas, ao penetrar no
recinto, julgou, por meu estado lânguido e indiferente, que tivesse adormecido.
A chuva que vinha mais forte, fazendo sacudir o vento as janelas, trouxera ali
o meu criado. Ele fechou-as, desligou a luminária e saiu deixando-me
só com minha aflição.
Amanheci na cama. Tomei banho e fui para o desjejum. Enquanto comia ia refletindo
no acontecimento do dia anterior. Sequer tentaria, ao sair dali, o mínimo
esforço para desempenhar minhas atividades rotineiras; já tinha
a convicção de que seria totalmente inútil. Passei a ponderar
as palavras e, digo incrédulo e vexado, as orientações
que me foram transmitidas. Neste estado, saí para o meu costumeiro passeio
matinal, o qual me levaria inevitavelmente à beira do lago. Desci os
três degraus da varanda e caminhei sobre a grama. Pensava na incrível
necessidade de atirar-me naquelas águas geladas e impróprias,
quando me vi bem próximo delas. De onde estava já conseguia avistar
aquele conjunto flutuante e impressionei-me, pois estava bem próximo
à margem. Aproximei-me mais e, qual não foi a minha surpresa.
As formas geométricas estavam ali e o vão que deixavam, agora,
ao separarem-se os dois triângulos, era grande, bem junto a mim e de águas
azuis e convidativas. Associei aquela aparição - e aquele movimento
- ao mesmo das páginas do livro que insistentemente bailavam à
minha frente durante o sinistro telefonema. Concluí que seria este o
ponto exato do mergulho.
Olhei disfarçadamente para os lados e, como esperava, não encontrei
viva alma. Gaivotas rapineiras descansavam sobre os caniços ao longo
da costa e algumas poucas aves adejavam à distância. Vestia uma
roupa apropriada à temperatura reinante ao amanhecer, algo em torno dos
vinte e cinco graus centígrados: uma camisa de malha sem colarinho, de
mangas curtas e uma calça bege de tecido cotelê; calçava
chinelos de couro com solado de borracha.
Desfiz-me do calçado e respirei profundamente. Fixei mais uma vez o centro
do lago, aguardando nova separação. Quando esta ocorreu, deixando-me
a abertura, mergulhei para dentro dela. A princípio desci, de olhos fechados,
sentindo o roçagar de plantas e raízes. Foi um longo mergulho.
Jamais poderia imaginar-me capaz de descer a tal profundidade, tampouco me lembrava
de tê-la concebido em meus projetos de construção. Enfim,
retomei a visão. Outras espécies submersas, insinuavam-se em meu
caminho e tive que desviar-me de algumas para obter passagem. Cansado e sem
fôlego, estive a ponto de retornar à superfície no momento
em que pressenti um outro vão próximo do meu alcance. Além
dele, as águas eram azuladas atingindo as gradações de
cores comuns à água de uma piscina. Ato contínuo, aproximei-me
e entrei pela passagem, mesmo consciente da falta de nexo de sua presença
ali.
Já do outro lado, a primeira sensação foi a súbita
mudança na temperatura da água; agora gelava-me da cabeça
aos pés. Dei um impulso e subi rapidamente. Emergi. Estava realmente
dentro de uma piscina; de enormes proporções , digamos, quase
o dobro das piscinas convencionais. Dei algumas braçadas e apoiei-me
na borda para descansar; vislumbrei ao redor. Estava nos domínios de
uma propriedade refinada, diria mesmo aristocrática. Comecei a relacionar
o seu aspecto com as descrições que punha nas páginas que
escrevera e as semelhanças faziam-me estremecer. Por outro lado, detalhes
inusitados confundiam-me os pensamentos. Pouca coisa havia em derredor além
de três cadeiras deitadas e uma pequena mesa redonda de vime com porta
revistas. Havia, de fato, alguns exemplares. Alguns passos mais ao fundo, um
chuveiro atarraxado no alto de um cano sobre um piso arredondado de madeira,
tudo muito seco. Uma borracha vermelha, com um chuveirinho amarelo na extremidade,
mantinha-se presa ao seu lugar de apoio. No mais, um piso de grama, enfeitado
com imagens de gesso e algumas outras de bronze sobre pedestais de mármore.
Observei que, entre as figuras de aves e animais estranhos, havia um busto em
uma das laterais da entrada da mansão.
Saí da água tiritante de frio e fiz alguns movimentos para me
aquecer e secar meu corpo encharcado. Fui até à mesinha e olhei
os periódicos. Por estranho que pareça, aliás, já
nada mais poderia achar estranho, não reconheci nenhum daqueles exemplares
pelos títulos, tampouco ao folhear as páginas que expunham não
mais que residências, ricas e belas por sinal, por dentro e por fora,
além de entrevistas com arquitetos falando de suas obras e fotos de seus
prédios, igrejas, pontes, jardins, etc.
Ao menos havia relação
com Cesário que exercia esta profissão e aparecia em uma das reportagens.
Ao ler o texto não encontrei nada que pudesse indicar o meu paradeiro
ou orientar-me de alguma forma.
Andei então na direção da casa. Era com inúmeras
janelas, jardim frontal e caramanchão coberto de flores da estação
com certo excesso de trepadeiras. Tinha um só pavimento, mas parecia
ampla e muito confortável. Parei à entrada do alpendre para examinar
o busto. Intuí, somente pelo título de barão, que poderia
ser um dos avós de Cesário que muito vagamente mencionei na história.
Como não havia nome nem subtítulo, ignorei-o. adiantei-me para
bater à porta. Balancei a argola de ferro e fiquei aguardando. Bati novamente,
chamei pela terceira vez sem obter resposta. Dei uma volta pelo lado cujo muro,
alto, não me permitiu ver o terreno vizinho. Contornei. Daquele lado
as janelas estavam fechadas. Os fundos davam para uma via cheia de casas que
me pareceram desertas. De fato, nem um movimento. Na rua, com sinal luminoso
e faixas, sequer um automóvel vi passar.
Quando olhei para trás notei que não percebera uma porta em esquadria
de metal com caixilhos envidraçados. Quando me aproximei e bati, ela
se abriu, mas somente com a força de minhas batidas. Esperei um pouco
e adentrei; estava em uma copa. O silêncio era absoluto, o que me deu
quase a certeza de não haver ninguém em casa. Atravessei a cozinha
muito espaçosa, passei por outra porta, fechada, que supus ser um banheiro
e mais duas expondo-me quartos em perfeito estado de ordem e arrumação;
cheguei à sala. - Há alguém aí? - falei por falar,
já convencido de ser a única presença naquele lugar.
Pensamentos confusos, advindos de sensações variadas e incontroláveis,
soçobravam em minha mente. No estado em que me achava, inútil
era tentar qualquer ação. Joguei meu corpo sobre o sofá
de couro branco, trouxe para perto de mim uma almofada que pus sobre o colo
e nesta posição procurei refletir. O silêncio era tal que
contribuía bastante para a reflexão. Busquei na memória
as palavras de Cesário - vamos chamar então o louco do telefone
pelo nome que diz possuir e, (por que não?) já que não
resta outra saída, encará-lo como o meu personagem. Agindo assim,
quem sabe, um caminho mais fácil ou menos doloroso não se abriria
para mim? Deixou claro que a solidão a qual lhe imputei fora a causadora
de sua ruína e de sua morte; morte por suicídio e que, portanto,
o mesmo faria-me suceder por vingança ou o que seja.
Surge que, para meu alívio, alterações seriam feitas. Dentre
elas, a sorte de Cesário. Tendo em mente esta esperança, criei
um pouco de ânimo. Se era eu o personagem, aquele era o meu cenário,
logo, só tinha que agir em conformidade com o enredo, avaliando cada
episódio, suas tramas e seus desfechos. Então, saí à
rua, comparando o que via às minhas descrições anteriores.
Já aí um problema. Como me situava agora dentro do livro, não
tinha somente a visão do autor que remete sua imaginação
descritiva ao essencial da cena e não mais que isso. Como figurante da
história podia ver, e via, o que quisesse. Uma casa era uma casa e uma
rua, uma rua; com tudo o que possuem e mais o que a obra assinalou.
Como falei, as ruas estavam desertas. Andei por elas como Adão deve ter
andado no paraíso: só e carente de uma companhia. Lojas e comércios
expunham, ao seu único e desolado freguês, suas mercadorias. Bancos
ofereciam-me seus cofres abarrotados de valores. Restaurantes e padarias, de
pratos e guloseimas. Tudo o que precisava fazer era aproveitar a festa. Encher
de dinheiro os bolsos e de alimento o estômago. Esta última oferta,
confesso que não recusei; descobri a fome que já quase desistia,
tantas foram as horas em que clamou por satisfação dentro de mim.
Mas na primeira, não via vantagem, o que precisasse estava ali. Só
tinha que desejar e obter. Continuei minha peregrinação, vagabundeando
horas a fio. Não me lembro em quantas casas penetrei, quantos aparelhos
tentei fazer funcionar; telefones, computadores, rádios, televisões,
tudo em vão. Abri gavetas procurando pistas, chutei portas procurando
almas. Inútil. Tristemente reconheci que estava só.
Perseguido por este fantasma insustentável e na mente uma ideia
que era fuga e solução, corri por outras ruas, buscando um caminho
de volta. Sem olhar para trás, com medo de ser agarrado pela companhia
malquista, cheguei ao ponto de partida. Entrei na casa e, já tonto e
esbaforido, ganhei a piscina. Joguei-me sobre uma das cadeiras. Resfolegava.
Ao ver voltar as forças, fui até onde estava o chuveiro e o abri.
Puxei com raiva a pequenina borracha que esguichou um líquido salobro
mas, cuja frescura, saciou minha sede. Dali mesmo dei dois passos e mergulhei.
Que me importavam as ameaças de um louco? Enfrentá-las seria nada
comparado às sombrias perspectivas delineadas por aquelas primeiras horas
gastas ali. Contudo, e estremeço só de sentir as lembranças
do meu estado emocional de então, não encontrei a tal passagem
do fundo, mas ladrilhos cujas figuras riam seus risos molhados e cheios de ironia.
Enchi-as de golpes desferidos com punhos cerrados de ódio e revolta.
Muita água engoli ao esboçar inutilmente gritos e impropérios.
Vencido, voltei à superfície e pulei para fora. Com o pé,
chutei a pequena mesa, o que fez voar as revistas. Uma delas caiu à minha
frente e a foto dele, meu algoz, olhava-me e comprazia-se com o espetáculo.
Erguendo as mãos, levei-as à frente da boca e gritei: - Cesário!
Onde está você? Apareça!
De tão alto e rancoroso, meu grito ecoou pelos ares e atravessou as muralhas
da mansão pelo outro lado e desapareceu no meio das árvores de
um bosque próximo. Nesse momento e, que me perdoem os meus sentidos descontrolados,
vi (ou achei que vi) ou revi, ao voltar o olhar para baixo, a sua imagem na
fotografia, mantendo o sarcasmo, responder:
- Por que me chama? Já não pode falar comigo. Eu e você
somos a mesma pessoa. O mesmo Cesário, a mesma ficção.
Ah! Ah! Ah! Ah!
Sem forças para nada mais, caí sobre a grama e ali fiquei, prostrado.
Não sei por quanto tempo. Quando o vento frio da noite lançou
sobre o meu corpo impiedosa refrega, levantei-me e fui cair dentro da casa no
primeiro leito que encontrei. Despertado pelos primeiros raios de sol da minha
primeira manhã de total solidão, impus-me, como primeiro objetivo,
maduro e racional, controlar meu estado de espírito sob qualquer circunstância.
Saí mais uma vez às ruas. Quis nutrir o organismo do melhor que
encontrasse. Precisava estar bem alimentado para enfrentar um dia totalmente
insólito em minha vida.
Sentei-me à mesa de uma lanchonete, tendo à frente um café
da manhã recheado dos meus sabores prediletos. Preparei, ao meu gosto
e maneira, o suco de morangos, o café, os ovos e comi-os com os pães,
os biscoitos e a geleia que tirei de cima de uma prateleira. O dia começava
bem para quem possuía, como eu, todo o tempo e, que ironia, todo o dinheiro
do mundo. Senti que algo estava me faltando, olhei em derredor sobre as mesas
vazias a procura de um jornal. Como imaginei, não encontrei nenhum. Tomei
mais um gole de café ainda quente e saí; precisava localizar uma
livraria. - "Será que já estaria aberta tão cedo?"
- Pensei, para ver se mantinha o bom humor. Tendo cruzado o segundo quarteirão,
atravessei para a outra calçada e vi ao longe, após cruzar um
sinal luminoso, uma galeria quase no começo da rua. Caminhei um pouco
mais e entrei por ela. No meio de várias lojinhas enfileiradas, lá
estava uma, repleta de prateleiras abarrotadas com livros. Senti-me em meu elemento
ao pisar no recinto. Podia, se quisesse, gastar o dia debruçado sobre
eles, os amigos e suas mensagens. Poderia escrever, exercitar minha rotina;
acabei ficando por um bom rasgo de horas. Rabisquei linhas cujo teor e o objetivo
não podiam ser outro senão passar à posteridade os registros
da minha experiência. Todavia, ao ler o que redigira, senti a redundância
nas palavras, peguei-me reescrevendo a mesma história, o mesmo texto,
impregnado da solidão de Cesário, da minha solidão. Para
não acicatar ainda mais a turbação do meu espírito,
larguei papel e caneta. Com sonoro movimento, esta caiu por cima daquele e a
mesa, ambos caíram sobre o chão de cerâmica avermelhado.
Levantei-me, procurando na leitura outra forma de distração. Havia
de tudo, de fato conheci um período de paz que há muito não
desfrutava. A fome fez nova ronda. Empreendi um passeio calmo e vagaroso até
encontrar um restaurante. Avistei o que me pareceu ser um dos especialistas
nas massas que nos empanturravam sem dó nem piedade. Enfiei-me. Ao sair,
pesado e satisfeito, comecei a descobrir um dom que não sabia ser possuidor.
A necessidade fez-me cozinheiro, dos tais que, pelo menos até ali, adora
os próprios pratos. Por enquanto, neste pormenor, não sentia a
falta de Thomas.
Não tive outra opção, naqu1ele resto de tarde, senão
caminhar. Caminhei muito. Voltar aos livros já não me apetecia;
minha concentração não resistiria muito tempo. Tinha necessidade
do ar puro, do céu e do sol. De tanto vaguear, já não sabia
onde estava, aliás, nunca soube do próprio paradeiro. Sentei-me
no banco de uma praça. Senti que por perto havia o mar. Enquanto, olhando
em derredor, via os prédios, as ruas desertas, as lojas abertas, comparava
a minha situação à daquela cidade. Estávamos sós,
vivos e esquecidos. Duas garças-azuis pousaram no alto de um cedro de
flores brancas e tronco avermelhado. Meu olhar viajou por cima das travessas
de um playground construído no centro da pracinha e instalaram-se sobre
as aves. Elas logo alçaram voo, tomando uma direção
que acompanhei atentamente. Saí andando e peguei o sentido de uma alameda
sombreada e aconchegante. Bares, restaurantes, cinemas e casas noturnas ladeavam-na.
Segui por uma das calçadas, como se algum perigo houvesse em andar no
meio da rua e, olhando ao fundo, vi o que já contava ver: o mar, com
toda a sua imponência ali surgia, ágil e dominante. Não
fiz mais do que contemplá-lo até entrar a noite.
Senti que não era o mesmo do dia anterior quando despertei com o sol
em meu rosto sobre a areia quente da praia. A depressão atacara-me novamente.
Levantei, lavei meu rosto e pés na água salgada e fui procurar
um café. Não tinha fome, por isso, nada comi. Comecei a sentir
os sintomas avassaladores do tédio repugnante. Não carece narrar
o que fiz naquele dia e nos outros que se seguiram. Tudo não passou de
vazias repetições, da mesma habitual pasmaceira. Uma tarde, lá
pelo quinto ou sexto dia da minha montanha de sensações diversas
e já quase incontroláveis, peguei-me sentado na areia de frente
para o mar, o qual estava calmo e receptivo; na mente as lembranças de
um mundo real em que eu era feliz. Pensei na agonia de Cesário, protagonista
do meu romance. Um incontido sentimento de medo invadiu-me ao repassar as cenas
de sua morte. Suicidara-se no mar, afogando-se. Então seria este também
o meu fim? Não me restava outra sorte, já que devo ter fracassado
no que ele queria.
Ato contínuo, como aceitando resignado o desenlace, pus-me de pé
e, do jeito que estava, calção branco e sem camisa, andei ao mar.
Continuei conformado a caminhada para a morte, com a água pela cintura.
Mas, estranho como todo o resto, a morte não acontecia. As águas
já não me alcançavam e, por mais que me afastasse da praia,
elas mantinham-se à mesma altura, negando-se a encobrir-me o corpo. Fui
muito longe, sem resultado. O mar não me aceitava; não para a
morte talvez. Então pensei, já de volta à areia, que em
suas ondas poderia encontrar outras terras, ter uma chance. Quem sabe ver pessoas,
viver enfim, uma vida de liberdade que não transige com a solidão.
Foi o que fiz. Levei semanas a preparar minha nau. Recorri às ferramentas,
aos bosques e às matas, aos tecidos e às lonas, enfim, a tudo
que precisei e não tive dificuldades de encontrar. Supri-me ao máximo
permitido pela embarcação. Não esquecendo de algo agora
importante, o dinheiro. Fui ao banco e aceitei sua oferta. Satisfeito, fiz-me
à vela. Relutei com as vagas e os enjoos e ao fim de três
dias alcancei, de madrugada, uma ilha. Não era bem o que queria mas sua
beleza e exuberância acolheram-me e eu fui ficando. Ao fim da manhã
andei por ela, mas, de vida humana, nem um sinal. Porém, nos aproximados
oito quilômetros quadrados de sua área, poderia existir alguém,
animais, que fossem. Pensando neles, retornei e preparei minha cabana e, antes
de dormir, acendi uma fogueira. No dia seguinte concluí, ao vasculhar
de ponta a ponta a ilha, que estava sozinho ali também. Ao retornar,
constatei, desolado, que uma tempestade deixara destroçado o meu barco.
Ao ver seus restos espalhados na areia e na água não resisti:
chorei pela primeira vez.
Tudo o que contei até agora teve como objetivo colocar diante do leitor
os fatos que me ocorreram, os quais funcionaram não mais do que como
preparadores da minha alma para fazê-la conviver com a solidão.
E aprendi, exercitei e saí-me melhor do que eu próprio esperava.
Aquela ilha foi o meu lar por dois anos e cinco meses. A necessidade de adaptação
foi de tal maneira satisfeita que só fazia, a cada dia, aumentar a minha
felicidade. Quando consegui deixar o local, criei obras literárias cuja
repercussão deixou-me milionário. Nos últimos dias na ilha,
comecei a sentir que tudo poderia voltar à normalidade; que Cesário
dera-se por satisfeito e resolveria recompensar-me. Eis como aconteceu.
Uma manhã acordei e ao sair da cabana para um banho de mar, um susto
quase me fez cair para trás. À minha frente, a não mais
de cem metros além da praia, pairava um cargueiro que pareceu-me encalhado.
Desceram pelo tombadilho e entraram em uma canoa um senhor alto, barbudo, com
uniforme de capitão e um marinheiro. Remaram até a praia e vieram
ter comigo. Cumprimentaram-me e disseram precisar de água potável
para a tripulação. Confesso que quase choro de alegria ao ver
e falar com pessoas. Cheguei a beijá-los. Agradecido, levei-os até
um arroio próximo. Enquanto enchiam suas caçambas, contei-lhes
minha história. Não sei se acreditaram ou se tiveram-me como louco;
nem isso me importou naquele momento. O fato é que não conheciam
a tal cidade mas aceitaram, depois que levantassem âncora, levar-me até
ela. No dia seguinte, ao raiar do sol, aportava eu na mesma praia que deixara
há tanto tempo.
Pouca coisa havia mudado, mas, o que mais me impressionou e me alegrou o espírito
foi a enorme quantidade de gente; pessoas comuns como eu, a compartilhar com
outras os seus momentos e veículos engarrafando o trânsito. Imediatamente
corri e, não ligando aos olhares, cheguei a tal casa. Como imaginei,
não havia ninguém. À beira da piscina, troquei de roupa,
vestindo apressado as peças, as mesmas que vieram comigo do outro lado,
e me lancei à água. Como esperava, a passagem ali estava. Enfiei-me
por ela e subi. Ao emergir, saí do lago e calcei os chinelos. Em dado
momento, levantei-me e, ao olhar para trás, Thomas vinha chegando.
- Que tal o passeio Sr. Gerônimo? Telefone para o senhor.
Já ia respondê-lo, mas logo fechei a boca. Para que entrar em detalhes?
Apenas agradeci e acrescentei:
- Estou pronto para minhas novas obras, Thomas. Diferente de todas até
aqui. - Deixando para trás seu sorriso simpático, entrei e fui
até o aparelho. Na linha, um de meus editores, com o pedido de um novo
trabalho. Após o acordo, desliguei e, satisfeito, peguei na caneta que,
agora, corria fluentemente.