Esta é a história de uma prostituta. Que me perdoem o início
drástico mas ele é fruto de uma constatação arbitrária,
porém realista. Juliana (uso aqui um pseudônimo), nunca aceitou
calada as críticas da sociedade, mormente dos que viviam distanciados
do seu mundo particular e que só faziam, segundo ela, seguir a moda dos
preconceitos e taxar de imoral toda e qualquer conduta de vida inadequada a
certos princípios. Não procuravam conhecer as razões que
a conduziram a esta opção de vida, simplesmente execravam-na.
Opiniões pessoais à parte, Juliana tinha o seu mundo. Era, ou
parecia ser, feliz dentro dele. Fez da prostituição um negócio.
Teve uma vida tão ou mais atribulada do que muitos empresários
de multinacionais e ganhou tanto dinheiro que desbancou esta casta e chegou
a levantar muitos deles. Reuniu as vantagens do poder que dá o dinheiro
ao poder magnético de sua beleza física e inteligência para
conquistar o mundo e conseguiu, mas à sua maneira.
Estamos em Copacabana, o fascínio do turista estrangeiro. A inveja e
a vontade do brasileiro pobre que sonha com uma cobertura na Avenida Atlântica
de frente para a praia mais cobiçada do mundo, mas, também do
morador angustiado que nunca irá acostumar-se com os vícios incorrigíveis
do bairro: a poluição, a violência, o barulho infernal e,
triste realidade, a prostituição que hoje pragueja livre e impunemente.
Mas voltemos no tempo, ao ano de 1965. Ali existiu, na rua Duvivier quase esquina
com Barata Ribeiro, um imenso casarão explorado por portugueses como
armazém e pensão. Barões do café, importantes personalidades
do mundo político, social e militar frequentavam a casa do Cerqueira,
como era conhecido o dono do negócio. Uma mescla sem fim de anônimos
e notoriedades cruzava-se no local diariamente. Já na calçada,
o chamariz era o cheiro que vinha da cozinha. O vaivém incessante era
atraído na passagem e o tempero do macarrão, a gordura impregnada
do bife acebolado ou o aroma do café especial e dos pães feitos
ali mesmo, jogavam para dentro a freguesia indecisa que, uma vez satisfeita,
retornava sempre e o negócio ia crescendo.
Cerqueira precisou ampliar, pois, agora já hospedava. A fachada de armazém
continuou intacta. Quatro portas de enrolar escondiam logo cedo suas treliças
de aço, deixando expostas as pencas de alho e de belos salames, os cachos
de bananas e, atrás do balcão, o sorriso do Cerqueira. Sua fisionomia
agradável, os braços cabeludos e o corpo roliço, carente
de sol na pele, atendia todos com a mesma simpatia. Em pé, no comando
da caixa registradora, fazia subir e descer por cima dos olhos os enormes óculos
de fundo de garrafa à medida que recebia e passava o troco. Ao redor,
os funcionários, dois rapazes e uma moça, atendiam as solicitações
que vinham das mesas. Subindo-se dois lances de escada com degraus em madeira
de ébano, delicadamente cuidada e polida, chegava-se aos aposentos. Cada
pavimento possuía dezoito dormitórios e, entre estes, duas suítes.
O bom gosto era a marca registrada de Cerqueira; cobrava bem por seus serviços
mas não negava o conforto. Podia o hóspede, por trás do
abandono e da paz de sua porta fechada, a exibir na maçaneta a plaquetinha
de quem não aceita ser incomodado, desfrutar de um gozo inquestionável.
Os quartos eram amplos; todos com banheiro e telefone, um luxo para a época.
Os corredores, não muito compridos, eram largos o suficiente para uma
perfeita privacidade e expunham tapetes longos e coloridos com adornos orientais.
Vasos com plantas ornamentavam a passagem e quadros, as paredes.
O bom gosto de tudo isso tinha um toque especial e aqui voltamos a falar de
Juliana. Há um ano e meio com o português nesta altura da narrativa,
era quem chefiava mais duas outras arrumadeiras no controle da governança.
Vejam que tremenda responsabilidade para uma menina de dezoito anos, apenas.
Viera de São Paulo aos treze com a mãe, viúva. Fixaram-se
na casa da cunhada Almerinda, a esposa de Cerqueira. Almerinda recém
abrira uma confecção no centro do Rio financiada por ele. Perdendo
o irmão, pedira a vinda da outra, exímia profissional de costura,
para que, juntas, unissem ao trabalho a dor recente. Já Juliana, ao contrário
das mulheres, o que gostava era de ver pessoas e trabalhar no meio delas; assim
foi aceita na pensão de Copacabana.
Trazendo o alvor das manhãs iam as horas de sono de Juliana que já
se deitava tarde ao retornar às dez e meia da escola onde se esforçava
por conseguir destacar-se na vida realizando o seu sonho que era tornar-se uma
atriz de sucesso. Vestida na saia azul-marinho de pregas, sapatos pretos, blusas
e meias brancas, Juliana penetrava, cansada, o interior do comércio que
passou a ter também como morada logo após a ampliação.
Cerqueira, bem de vida, foi morar com a esposa na Barra da Tijuca em nova e
bela propriedade. Juliana e a mãe também foram. Só que
a menina, por força das responsabilidades e para ganhar tempo, precisou
residir no estabelecimento de segunda à sexta-feira; aos sábados
ia ela ao merecido descanso.
Era comum ainda encontrar-se, a essas horas, um ou outro freguês pelas
mesas, principalmente às sextas, um dia difícil para a menina.
Exausta de sono e de cansaço, passava indiferente ante os olhares dos
que não a conheciam. Já chamava atenção pelas formas
promissoras da futura mulher que despontava. Desfilando os seus dotes, os braços
morenos das praias domingueiras envolvendo o caderno, junto aos seios torneados,
passava rente ao balcão, cumprimentava algumas pessoas e ganhava os degraus
de ébano, subindo para o quarto. Ali, tomava o banho, metia-se no robe
cor de rosa que adorava e caía na cama. Para dormir mais rápido,
quando não ligava a TV, pegava um romance, alguma revista de moda ou
reportagens com seus artistas favoritos e sonhava acordada, antes de sonhar
dormindo.
No meio desta rotina, às vezes monótona, outras vezes, feliz,
Juliana ia plantando suas esperanças, as quais regava com economias muito
sabiamente resguardadas. Os momentos de lazer eram raros; os namoros quase inexistiam.
Conhecia rapazes interessantes nas areias que frequentava, mas não
passava disso. Ela não tinha o tempo necessário para lhes dar
a atenção que mereciam. Por outro lado, o que eles queriam sem
merecer - por que não precisava de tempo nem de atenção
- ela não lhes daria.
E assim foi vivendo até completar dezenove anos. A prosperidade de Cerqueira
devia-se, em alto grau, à mão mágica de Juliana. A parte
da hotelaria ficou a seu cargo. Os hóspedes entravam e o sorriso que
traziam ao sair denunciava a satisfação e o primoroso atendimento.
O português, se rico já era, mais rico ia ficando, pagando à
sua mão direita um salário de administradora executiva. Ela, porém,
pouco gastava; muito menos que o essencial que, de bom grado, era-lhe oferecido.
Porém um fato, simples e corriqueiro na vida de qualquer um, alterou
o bom humor desta jovem e pesou o suficiente para desviar o rumo de sua vida;
impossível ignorar as consequências que defluíram de
tais alterações.
Cerqueira adoeceu. O excesso de trabalho e obrigações trouxera-lhe
uma úlcera que o obrigou a internar-se para tratamento; a mulher teve
que substituí-lo na direção da casa por um mês e
alguns dias, suficientes para desestruturar um relacionamento. Este, se era
bom no geral, entre ela e Juliana apresentava farpas que cada vez mais se afinavam;
tudo pela inveja e ciúme. Almerinda não era uma mulher feia mas,
ciosa do marido, causava alguma intranquilidade, que chegou ao ápice
com a ida da jovem para a pensão. Inúmeras foram às vezes
em que Cerqueira estacionou o seu Alfa Romeo cor de vinho na garagem do prédio
em Ipanema onde moravam, trazendo Juliana para casa, após mais um fatigante
dia de trabalho. Almerinda nunca se conformou, sequer procurava entender as
explicações que ele lhe dava. O curto tempo na pensão foi
suficiente para infernizar a vida de Juliana; tudo à custa do ciúme
doentio e equivocado. Loira, alta, chegando aos cinquenta mas mantendo
ainda os dotes matreiros da mulher portuguesa, só fazia invejar desnecessariamente
a beleza jovial da outra e os suspiros da freguesia que pendiam sobre ela.
Nesta época, entrou a frequentar a pensão o dr. Nonato Flores,
conhecido magistrado da Comarca Judicial de Angra dos Reis, por quem Juliana
passou a nutrir certa admiração e respeito que foi transformando-se
em repúdio e aversão com o passar do tempo. O homem era rico e
influente e usou de sagacidade para envolver a moça. Aparecia sempre
de terno, no princípio às segundas-feiras pela manhã, aumentando
depois esta frequência para duas e até três vezes por
semana. Tinha trinta e oito anos, o rosto arredondado, quase gordo e uma calva
que brilhava intensamente, identificando-o, de imediato, ao por-se para fora
do Cadillac marrom que o conduzia. Gastava bem, não raro trazia amigos
e quase sempre pagava a conta dos chopes, dos queijos, galetos ou da feijoada
regada aos vinhos que consumiam. Ao ver e conhecer Juliana, encheu-se de amores
e, sejamos claros, de desejos por ela. Sua reputação, entretanto,
era um bem que ao menos aparentemente, por temor ou capricho, fazia questão
de preservar.
Então criou estratégias para aproximar-se; alugou, no mesmo andar
de apartamentos e bem próximo ao dela, uma suíte onde ficava,
geralmente às segundas-feiras, até um pouco depois do almoço.
Chegava sempre aos domingos, por volta das sete da noite, entregava as chaves
a um funcionário da casa que conduzia até a garagem o luxuoso
automóvel e subia, carregando uma maleta de couro marrom com fechadura.
Dentro, segundo ele, laudos e petições que urgiam concentração
e exame. Juliana era a primeira que o atendia pela manhã. Por volta das
oito, ao ver a maçaneta livre da plaquetinha, pedia licença, cumprimentava-o
e penetrava no quarto para a habitual arrumação. Invariavelmente
sentado a uma mesa, ainda de pijama, tinha a atenção no estudo
do seu pesado código ou no despacho de documentos. Era todo sorriso e
gentileza para com a jovem. Dava espaço na mesa para que ela depositasse
a bandeja aluminada; gostava de ser servido e cortejar em troca.
- Leite?
- Por favor.
Juliana, inclinando-se um pouco para pegar no carrinho o bule, deixava pender
algumas mechas do seu comprido cabelo castanho
- Importa-se se perguntar que perfume está usando? - ousava ele.
- É claro que não; uso água de Jasmim, costumo colocar
após o banho.
- Aposto que não é o mesmo da semana passada.
- Ah! Sim, tem razão. Passei leite de rosas por uns dias. Mas prefiro
este; acho que combina mais comigo.
- Tem a minha opinião, é simplesmente delicioso! Continue usando.
Juliana agradecia, expondo ao Juiz, conquistador, a alvura do seu sorriso simpático,
porém, não mais inocente a altura dos admiráveis dezenove
anos de idade. Em seu traje uniforme, vestido amarelo, avental e gorro branco
enfeitado com flores, passava a arrumação. Trocava o lençol,
as fronhas e aspirava o pó do tapete.
Ao contrário do que fazia Cerqueira que deixava o cargo de sua confiança
de patrão inteligente que era a conduta de seus funcionários -
que por isso se tornavam eficientes e prestativos - Almerinda causava-lhes constrangimento
e apatia. Rondava com frequência as dependências da casa como
a querer flagrar o que nunca existiu. Demais, dirigia-se com imponência,
não só aos trabalhadores como aos hóspedes e fregueses.
Não possuía, em definitivo, talento para a lida popular.
No caso de Juliana, multiplica-se esta fama de Almerinda pelo ciúme que
tinha dela e chegar-se-á ao produto infeliz e traumático. Já
ao cabo da primeira semana de permanência na pensão dava, a megera,
apocalípticos sinais de que sua intenção para com a outra
era das piores e, com efeito, o pior aconteceu.
O Juiz Nonato Flores, que não perdia uma oportunidade para exercitar
os predicados de bom sedutor, acabou por envolver e conquistar Almerinda. Por
conta de um domingo em que ela trabalhou até mais tarde, os dois se conheceram
e se engraçaram. Dr. Nonato, então, só voltava para o hotel
bem depois das dez. É evidente, pois levava a portuguesa até em
casa ou bem próximo; mas nunca sem antes passear por outros lugares primeiro.
O coitado do Cerqueira, convalescente e costurado, não podia imaginar
as travessuras da esposa. Numa dessas comentaram da menina e o Juiz; sem pudor
nem receio, confessou sua tara. A mulher, experiente, que só queria o
que conseguiu: uma aventura, viu nisso uma chance bem vinda de livrar-se da
sobrinha; então armou o conluio.
O homem agora acordava tarde às segundas-feiras. Pedia por telefone o
café, o arranjo e a limpeza. Sempre cortês e agora mais galanteador
do que antes, recebia no quarto Juliana que, por ordens restritas de Almerinda,
tinha que largar outros afazeres e atender, somente ela, ao doutor. Então
ocorreu o seguinte: Dr. Flores convidou-a a assistirem juntos uma peça
no teatro Vila Lobos; no elenco, entre outros, Raul Cortês, seu grande
ídolo. A despeito da oferta e da insistência, ela não aceitou.
Um acompanhante abastado, um almoço fino, em restaurante de classe, seguido
da visão mágica da representação teatral, seu sonho
maior, ela disse não, tendo vários motivos. Um destes e, obviamente,
não revelado, foi a feminina percepção das verdadeiras
intenções do Juiz. Porém, Juliana, inteligente que era,
acabou compreendendo que nada do que fugisse a sua vontade e desejo poderia
acontecer; entendeu que ele, na qualidade de homem culto, saberia respeitá-la.
Sendo assim e, impondo uma condição, decidiu finalmente aceitar
o convite. Certa manhã, após o costumeiro desfilar de elogios
do magistrado para com ela, que acabara de servir-lhe o café, este lhe
perguntou.
- E então, quer dizer que vai dispensar a apresentação
do seu ídolo? A peça encerra-se esta semana. Eles vão para
São Paulo e em seguida, correm o país. Se fosse você não
perderia esta última chance de vê-los. - Ele se voltava para ela
da mesa onde escrevia. Com os óculos numa das mãos e uma caneta
dourada na outra, enquanto não obtinha uma resposta, apreciava os belos
contornos das pernas morenas de Juliana que se mostravam, dos joelhos, onde
batia o vestido amarelo, para baixo.
Ela terminara de arrumar a cama e trocava agora uma fronha. - vou aceitar o
seu convite se me prometer que vamos e voltamos apenas como bons amigos e nada
mais do que isso - recolocou no lugar o travesseiro e abaixou-se para pegar
o aspirador. O homem emitiu um sorriso brejeiro que acentuou o brilho de sua
careca.
- Prometo honrá-la e respeitá-la para todo o sempre, madame -
brincou, ironizando e beijando os dedos em cruz.
Juliana saiu, deixando a porta aberta e, quando retornou para buscar o carrinho,
ainda encontrou-o sorrindo consigo mesmo, abobalhado.
Saíram no domingo à tarde. Juliana deixou a residência da
Barra por volta das cinco para passear como costumava fazer; tomou um ônibus
e foi encontrar o Juiz em um ponto pré-combinado da Avenida das Américas.
De calça jeans e um tênis azul da moda, deixava de fora o umbigo
por causa da frente única lilás presa, às costas, por uma
enlaçada. Chegando ao local, o homem já esperava, todo prosa dentro
do seu elegante conjunto de seda esporte e sapatos mocassim; um rapagão.
Passaram pelo La Violetera onde comeram frutos do mar;. Ele vinho, ela coca-cola,
ele chocolate, ela sorvete e foram para o Vila Lobos. Assistiram à peça
e se encantaram. Juliana muito mais. Agradeceu-lhe pelo convite e, principalmente,
por seu comportamento exemplar.
Com a confiança em alta, dr. Nonato conseguiu várias outras saídas
e com início de namoro. A menina já não saía sozinha
e os rapazes das praias, inexperientes, foram ficando de lado. Só que
o homem, nas noites de domingo, não dispensava o sexo, e este, praticava-o
nos encontros furtivos, cheios de amor da fogosa Almerinda. Esta, quando soube
da queda que ele tinha pela carne fresca e salutar de Juliana, não sossegou
enquanto não viu o circo caído e pegando fogo. Os dois pombinhos
já se cumprimentavam com amassos e beijos prolongados, mas cheios da
cautela e do medo da jovem de que alguém os flagrassem. Pois, foi exatamente
o que se deu. Almerinda, em busca de um momento como este, chegou numa segunda-feira,
mais cedo que o normal, e procurou por Juliana - Deve estar na copa - disse
um funcionário. Ela, imediatamente deixou o balcão, passou rente
às mesas onde fregueses bebericavam em xícaras e outros fumavam
conversando ou liam jornal e desapareceu por uma porta atrás da escada.
Procurou na cozinha e na copa mas não a viu. Foi direto onde queria encontrá-la.
Retornou e subiu os degraus de ébano. Quando sumiu da vista dos que estavam
embaixo, livrou-se da sandália branca de tiras e ganhou o segundo lance.
Um casal de velhos que vinha descendo olhou meio que estranho para ela que disfarçou
no seu sotaque galego.
- Ora pois, que me doem tanto os pés - disse sorrindo sem graça.
Daí, continuou, recolocou o calçado ao chegar no corredor e andou
sorrateiramente sobre o tapete. A suíte do magistrado ficava logo à
frente, ao final de um grande e belo quadro retratando o mar e antigas caravelas
de Portugal. A mulher aproximou-se, já tendo em uma das mãos um
molho de chaves mestras. Se estivessem trancados, teria que ser rápida
em sua ação. Girou com energia a maçaneta. A porta , apenas
encostada, abriu fácil e totalmente.
Os dois trocavam beijos e carícias. Ele abraçava Juliana, envolvendo-a
por baixo dos seus cabelos compridos, enquanto uma das mãos, a esquerda,
acariciava-lhe a face contraída pelo beijo na boca quente e apaixonada.
O sobressalto de Juliana vai além do que podem descrever meras palavras,
mas vamos tentar. Enquanto beijada, conservava em uma das mãos uma xícara
branca de fina porcelana que havia recolhido vazia de cima da mesa para por
no carrinho. Terminava a aspiração do aposento e o juiz tomava
lentamente os últimos goles do café e remexia as páginas
de um livro. Entre trocas de afeto e palavras elogiosas, ele levantou-se, envolvendo-a
no beijo, sem dar-lhe tempo de guardar a xícara que, por isso, ficou
pendurada e presa em seu dedo às costas do sedutor. Com o surgimento
estrepitoso e inesperado da outra, a mão, sem se dar conta do que tinha,
arrojou-se impetuosa, levando à parede a louça que voou em pedaços.
Um dos cacos foi bater na porta ao lado da mulher que irrompia, por pouco não
a acertando. Juliana enrubesceu-se envergonhada. A loira, juntou a confirmação
de suas suspeitas à constatação do prejuízo material
que acabara de presenciar e cresceu em ódio e irritação.
O resultado de tudo isso não poderia ter sido outro, a julgar pela cavilosa
urdidura. Dr. Nonato, ciente da armação, ainda tentou ajeitar
as coisas pois não queria perder suas presas amorosas; além do
que, considerava-se amado por Juliana e muito próximo do que queria.
Levá-la para cama era uma questão de dias. Frustrado e aborrecido
com a decisão radical da mulher, não quis mais dela saber, da
mesma forma que a moça, magoada, deixou-o também.
Juliana perdeu o emprego. Cerqueira, entre indispor-se com a mulher e despedir
sua gerente, escolheu esta segunda opção. A mãe, com a
expulsão da menina, não quis continuar, nem na casa, nem na confecção
e retornou para São Paulo. A filha ficou por lá umas semanas mas
não se adaptou. Os conhecimentos que deixara na cidade maravilhosa facilitar-lhe-iam
um outro emprego. Era começar vida nova.
As horas em que passou nos bancos e nos guichês da rodoviária de
Santos, ora pensativa, ora amofinada com o incessante movimento da estação,
serviram-lhe de preparo mental para uma nova realidade. Ainda não decidira
de todo o que fazer, em que bairro morar, em que guarda-roupas arrumar os vestidos,
as calças, as blusas, os sapatos, enfim todas as peças do vestuário
que mal cabiam nas duas malas pesadas que portava. Chegando ao rio, ainda no
terminal, almoçou e entrou em um táxi; foi para Ipanema, conhecia
várias pessoas naquele bairro. Em uma das ruas que desembocam na praia,
alugou um quarto de hotel e gastou a tarde em bancos e ao anoitecer foi distrair-se
em um cinema. Retornando ao hotel, sentou-se ao telefone.
Dos amigos que possuía e das pessoas que conhecia limitou-se a contatar
apenas aqueles que lhe trouxessem a certeza de uma nova colocação
profissional. Dispensou antigos namorados. Precisava agora, mais do que nunca,
preservar sua virgindade de investidas infrutíferas e aventureiras. Após
dias de contatos com vários segmentos dentro e fora de sua área
de atuação, vários currículos preenchidos e esquecidos,
entrevistas fracassadas, ela encontrou uma amiga a quem chefiava na pensão.
Conversaram rapidamente, matando as saudades e marcaram um encontro para o domingo
pela manhã. Carla, a amiga, foi buscá-la no hotel com o namorado.
Como o dia estava ensolarado e fazia muito calor, os dois surpreenderam-na chegando
em trajes de banho, praticamente tirando-a da cama antes das oito. Enquanto
o rapaz estacionava o Dodge vermelho e conversível, Carla comunicava-se
da portaria com a outra.
- Estamos esperando, quero que conheça o Augusto. A propósito,
traga roupa de banho, o dia está lindo. - Passados quinze minutos, desce
Juliana em saída de praia por cima do maiô de duas cores, preto
nas costas e alaranjado na parte da frente. O namorado de Carla, já no
hall, foi-lhe apresentado, beijou-a no rosto e tirou as chaves do bolso de sua
bermuda branca, conduzindo-as para o automóvel. Pegaram a Vieira Souto
e, vinte minutos depois, conversavam na areia sobre os mais diversos assuntos.
Carla, em seu traje de banho cinza e óculos de sol na cabeça,
sentia-se contente com a companhia da amiga de quem muito gostava e dava sinais,
pelo entusiasmo da prosa, de que dirigia sua atenção mais para
ela que ao próprio namorado. Ele até que era simpático.
Ao fim de um tempo, pediu licença as duas e cumprimentou uns companheiros
que passavam, chamando-o para uma partida de vôlei. Augusto desfez-se
da bermuda e da camiseta, expondo um corpo atlético e bronzeado, e afastou-se.
As duas aproveitaram a deixa para encetar uma conversação mais
adequada às mulheres quando se veem a sós. Carla sinalizou
para um vendedor ambulante que, ao aproximar-se, tirou de sua caixa azulada
de isopor dois picolés, mas teve que recolher um deles. - Obrigada, vou
preferir um refrigerante ou água para matar a sede - disse Juliana. A
outra pagou, dispensando o rapaz.
- Sabe das últimas? - perguntou, desenrolando o papel do picolé.
- Não, enquanto você não me contar; estou curiosa. - Juliana
tirou de sua sacola jeans uma toalha de banho e estendeu-a na areia, deitando-se
com os joelhos dobrados e as mãos sobre o colo.
- A mulher do galego anda traindo-o às escondidas e o homem está
uma fera; desconfia de tudo e de todos. - Juliana ouvia calada e pensativa enquanto
a amiga falava de algumas mudanças ocorridas no hotel com a sua saída.
- Afora os diretamente envolvidos, ninguém mais ficou sabendo dos reais
motivos da demissão. - Carla prosseguia falando, até que mencionou
o Juiz.
- Ele ainda vai lá? - Juliana perguntou curiosa. Então, não
tendo nada a perder e até como desabafo, contou o que aconteceu naquela
manhã e o que levou àquele final. Em contrapartida, Carla também
contou o que sabia.
- Pois vou dizer a você. - falou, esticando o braço para alcançar
uma lixeira amarela onde jogou o palito. - O amante da madame portuguesa não
é outro senão o tal Juiz. Já andava desconfiada quando
peguei os dois se beijando à entrada da suíte. Por sorte não
me viram; caso contrário seria hoje mais uma desempregada. Como você
foi cair numa dessas, meu amor? É certo que o homem é rico e bonitão,
mas para falar a verdade, eu nunca fui com a cara dele - completou, lavando
as mãos meladas do sorvete com a água de um recipiente de vidro.
Um senhor escuro, todo de branco e com um boné amarelo, passou oferecendo
água gelada. Juliana sentou-se, comprou uma garrafa, abriu-a e bebeu,
quase que de uma só vez, o líquido até a metade. Satisfeita,
falou:
- Quanto ao romance dos dois, não estou admirada. A sua revelação
só me trouxe a certeza que eu não tinha. Mas ele sempre me tratou
muito bem, talvez por me saber virgem. Contudo, acho que escapei por pouco.
Foi um domingo alegre e descontraído aquele, que passou tão rápido
quanto os últimos acontecimentos na vida de Juliana. No dia seguinte,
a realidade; precisava arranjar trabalho o quanto antes. Tentou os classificados,
novos currículos e novas entrevistas. Uma noite, no hotel, ao sair do
banho, toca o telefone. A operadora, ao ser autorizada, transferiu a ligação.
- O homem perguntou por você - disse Carla do outro lado da linha. - Juliana,
segurando a toalha enrolada ao corpo molhado com uma das mãos respondeu:
- Diga que o mandei para o inferno se perguntar de novo. - dizendo isso, sentou-se
à beira da cama.
- Falei que estava desempregada; deixou-me um cartão.
- Não quero mais nada com este homem, ele prejudicou minha carreira.
- Parece que gosta de você, está caidinho.
- Eu sei muito bem o que ele quer.
- Ouça, querida - disse Carla com firmeza na voz - você já
não é nenhuma criança. Use a cabeça e reverta a
situação. Tire dele o que precisa e pronto.
Despediram-se. A menina pôs-se a pensar ainda sentada, com o fone sobre
as pernas. Tinha a chance de um novo emprego nas mãos. Começar
de onde parou ou, quem sabe, iniciar nova carreira. Sentiu as dificuldades das
três semanas ali no Rio, onde só saía dinheiro e nenhum
entrava. Não podia continuar desse jeito. Pensou nos riscos, analisou
as perdas. Estas falaram mais alto. Levantou-se e desfez-se da toalha; abriu
a porta do guarda-roupas, olhando-se no espelho. Era linda. Orgulhava-se de
sua beleza física ao mirar-se de frente e de lado. Algumas gotas da água
do banho, relutantes em se evaporar, ainda ponteavam-lhe os seios, enquanto
outras, desfeitas pelo ar frio do ventilador girando no teto, escorriam-lhe
corpo abaixo e, tristes, desfaziam-se. Virou o rosto e olhou , pendurado em
um cabide, o seu uniforme colegial; quase dois meses que o não vestia.
Precisava retomar às aulas para não perder o ano e mostrar a todos
como está agora ainda mais bela naquela saia azul marinho e naquela blusa
e meias brancas.
Resolveu aceitar a oferta. Ligou para Carla ao fim de três dias de indecisão
e tormento. Convidou a amiga para jantar no restaurante do hotel e pegou, finalmente,
o cartão. Ligou. O Juiz tinha um parceiro em outra atividade, totalmente
diferente daquela que exercia. Conseguira, para o cidadão, um ganho de
causa julgada como perdida e ele, como agradecimento, ofereceu ao magistrado
uma sociedade em uma das três casas de show que possuía em Angra
dos Reis. Dr. Nonato mencionara isso bastante vagamente a Juliana que associou
a lembrança ao conteúdo do cartão. Sendo assim, ela viajou
e foi entrevistar-se com Romualdo, o sócio, que, respeitando a indicação,
empregou-a imediatamente. Decorridos dois meses, já em nova vida, trabalhando
e estudando, Juliana sentia-se bem e até surpresa com a ausência
do outro. Então surgiu nova proposta: de garçonete faria um teste
para se apresentar cantando à noite em outra casa, a que eles possuíam
em comum, com o dobro do salário.
Vieram os ensaios, o teste final e, em seguida, a aprovação. Já
em nova atividade, uma visita, que passou a ser constante, aproximava-se cada
vez mais de lá. Reatou o namoro. Um processo no Fórum de Angra,
envolvendo o Juiz em escandaloso caso de assédio sexual, roubou-lhe a
magistratura e pôs fim a sua carreira. Agora a casa de shows passa a ser
sua ocupação primordial. Juliana tornou-se sua mulher. Já
aos vinte e um anos, morava com ele, satisfazendo-lhe a paixão e enchendo-lhe
os bolsos como a principal atração das noites, repletas de outros
apaixonados e endeusados por sua voz e pelo seu carisma. Já não
faltavam, agora, propostas; muitas de virar a cabeça, que a deixavam
na corda bamba em virtude do tipo de convivência que, após o segundo
ano de vida em comum, passou a ter com o ex-Juiz.
Embora apresentando um padrão de vida equivalente ao que desfrutava à
época de sua desditosa carreira, devia sofrer de frustração,
posto que não demonstrava muito gosto em administrar um comércio,
ainda que com tato e eficiência. Mudara a rotina de horários, dormia
pouco e, com a desculpa de ter que trabalhar, colocava a mulher em um táxi
e a mandava para casa. Fazia isso todas as noites em que ela não cantava,
a fim de ficar com outras mulheres. Bebia mais do que o normal e, para completar
a infelicidade de Juliana, passou também a espancá-la. Muitas
vezes percebia-se na jovem cantora, juntas a sua tristeza e desapontamento,
marcas de violência. Ela suportou o quanto pode até ser vencida
por uma das pressões que vinham de fora.
No comprido palco, de frente para um bonito salão onde cabiam umas quarenta
mesas com cadeiras em torno de uma pista de dança, apresentava-se Juliana.
Com frequência, embalada pela emoção da melodia que
interpretava e para, principalmente, furtar-se às lágrimas que
ameaçavam cair, descia os degraus, juntando-se aos ouvintes que adoravam
estes momentos. Nonato (agora já não é mais doutor), raramente
no salão durante os espetáculos, ocupava-se do controle geral
e do caixa. Com frequência, terminava ela, por ali, entre a plateia,
um número e passava o microfone ao apresentador da noite. Este anunciava
um intervalo ou outra atração que, surgindo de trás das
cortinas azuis, arrancava novos aplausos. Juliana então escolhia uma
mesa entre as que lhe eram oferecidas e juntava-se aos ocupantes. Em uma dessas
noites, sua dor parecia em dobro. Não conseguira segurar as lágrimas
que, ainda no início da canção surpreenderam-na. Já
na mesa, um hematoma na região do queixo, abaixo do lábio no lado
esquerdo, estarreceu os companheiros; um deles comentou: - Se eu fosse você,
largava esse sujeito agora mesmo.
- Como? Não tenho para onde ir nem tenho mais um tostão. Dependo
totalmente dele.
Exatamente. Juliana estava sendo explorada pelo homem que lhe prometera o mundo
em troca de uma conquista. Conquistara-lhe o corpo esquecendo o coração.
Na verdade poderia largar tudo e voltar para São Paulo e para a mãe.
Mas o Rio de Janeiro envolveu-a de igual forma. Não tinha mais nada de
seu, nem o amor dos homens. Em todas as cantadas que recebia, e eram muitas,
só ficava o interesse no que ela possuía de mais valioso: o corpo.
Ao menos é o que se lhe via, pois impossível era penetrar-lhe
os pensamentos, tão conturbados de então, e as intenções,
nem se fala. Começou a ponderar as propostas que lhe faziam, pois as
roupas e as joias que sempre gostou de usar, os lugares que sempre admirou
ao lado do Nonato de antes, enfim, a liberdade que tanto amava e preservava,
tudo ficara para trás, num passado do qual ainda sentia o cheiro mas
que rapidamente lhe fugia das mãos. Passou a traí-lo; mais pelas
recompensas materiais que vinham de todas as formas. Presentes que ela vendia
por não poder usá-los e carinhos que aceitava mas não conseguia
retribuir. Tinha nojo dos homens.
Dali em diante via-se uma Juliana um pouco mais senhora de si, reagindo a seu
modo à dominação do outro. Os efeitos especiais da enorme
bola de luzes que, do alto teto do salão espargia as suas cores sobre
as mesas e sobre a pista de dança, enquanto escondiam alguns rostos,
traziam outros à claridade e, nesse vaivém de luz e escuridão,
destacavam-se os amantes de Juliana daqueles que não a queriam ou que,
ao menos até ali, nunca a haviam possuído. Nonato, de frustrado
e violento, passou a crápula e sem escrúpulos. A princípio,
fingiu que nada sabia. Como isso se tornou impossível, tirou-a de casa
e voltou a dar-lhe um salário menor para cantar, posto que era a prata
da casa; tudo com uma condição. Deveria morar no emprego e tratar
muitíssimo bem a clientela. Pronto, estava armado o seu plano.
A clientela, que já era requintada, passou a ser escolhida. Juliana,
quando simpatizava com um tipo interessante, saía com ele. Gostou de
um e namorou por algumas semanas. Quando se sentiu apaixonada, perdeu-o; sumiu
para nunca mais aparecer. Depois gostou de outro, e de outro. Mas o resultado
era o mesmo, desapareciam de sua vista. A insegurança tomou conta de
si. Tinha que se libertar daquele homem diabólico. Começou a juntar
o pouco dinheiro que ganhava. O cabedal de propostas prosseguia e ela passou
a ter no sexo a fuga que não era capaz de empreender. Aquele mundo tornou-se
irresistível. Já não vivia sem o glamour das noites em
que era rainha, no palco, nas mesas e, de quando em quando, em seu quarto particular.
Ao precisar de dinheiro para a liberdade definitiva com a qual ainda sonhava,
passou a aceitá-lo também, em troca de suas noites de amor e (por
que não?) dividi-lo com Nonato que já o recebia integral dos clientes
que, sem ela saber, lhe arranjava.
Assim viveu por mais de dez anos. A menina inocente de Copacabana ficara no
passado. A cada ano o contato com a dura opção de vida forjava-lhe
uma nova têmpera que, por sua vez, adaptava-a ao ambiente em que passou
a conviver. Seu mundo transformou-se por completo. As companhias femininas eram
loiras, morenas e mulatas que dividiam as atenções dos convidados;
tudo em alto estilo. Tudo muito discreto. O ambiente em nada se alterou. As
mesmas mesas, o mesmo salão iluminado pelos mesmos efeitos especiais
e o mesmo palco. Porches, Alfas Romeo, Mercedes, Bugres e Limusines enchiam
as calçadas e o porteiro, forte e engravatado, recebia na entrada, embaixo
do luminoso neon, os doutores, os políticos, os militares, os empresários
e outras castas em busca de conforto e diversão. Muitos levavam as esposas,
cientes ou não de onde entravam, tanto uns quanto outros, porquanto boa
música e boa comida não faltavam e o proibido era feito fora dali.
A influência de Juliana era o respeito a que se impunha e passava para
as outras garotas que, como ela, sonhavam algum dia não ter que vender
o próprio corpo. Ela era a chefe; dizia com quem poderiam sair e sob
que condições. Enfrentou desafios, superou-os um a um. Dominou
homens dos quais conheceu as fraquezas. Um deles, o próprio Nonato Flores,
que chorou a seus pés por uma reconciliação que sabia impossível;
ele não podia mais com ela.
A Juliana que vamos encontrar no final da década de setenta, à
porta de completar quarenta anos de idade, é uma mulher de influência,
com dinheiro e toda a beleza que trazia aos vinte. Aos vinte e sete, livrara-se
de Nonato Flores mas não da casa de shows, que agora lhe pertencia. Comprando
a parte dele, transformou tudo e, com força de vontade, deixou de prostituir-se,
pois não mais disso necessitava. Conhecera um novo amor que soube compreendê-la
e apoiar. Juntos, fizeram do local uma requintada churrascaria que, além
da boa comida, ofereciam aos amantes da boa música o encanto da voz de
uma Juliana feliz e bem acompanhada.
- Agora, senhores - falou a cantora, tendo sobre si a atenção
e o olhar dos presentes e a luz de um refletor destacando no palco sua presença
confiante dentro de lindo vestido azul de noite - quero apresentar uma estreante;
espero que apreciem sua voz e o seu talento aos quatorze anos.
Surge de trás das cortinas Julia Lobato. O conjunto dá a introdução
de yesterday e ela entra com perfeição na melodia, dando uma piscadela
para a mãe Juliana que acabara de descer os degraus e sentar-se a uma
mesa para ver e aplaudir a futura artista. Filho de peixe