A Garganta da Serpente
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História de uma Prostituta

(Edgard Santos)

Esta é a história de uma prostituta. Que me perdoem o início drástico mas ele é fruto de uma constatação arbitrária, porém realista. Juliana (uso aqui um pseudônimo), nunca aceitou calada as críticas da sociedade, mormente dos que viviam distanciados do seu mundo particular e que só faziam, segundo ela, seguir a moda dos preconceitos e taxar de imoral toda e qualquer conduta de vida inadequada a certos princípios. Não procuravam conhecer as razões que a conduziram a esta opção de vida, simplesmente execravam-na. Opiniões pessoais à parte, Juliana tinha o seu mundo. Era, ou parecia ser, feliz dentro dele. Fez da prostituição um negócio. Teve uma vida tão ou mais atribulada do que muitos empresários de multinacionais e ganhou tanto dinheiro que desbancou esta casta e chegou a levantar muitos deles. Reuniu as vantagens do poder que dá o dinheiro ao poder magnético de sua beleza física e inteligência para conquistar o mundo e conseguiu, mas à sua maneira.

Estamos em Copacabana, o fascínio do turista estrangeiro. A inveja e a vontade do brasileiro pobre que sonha com uma cobertura na Avenida Atlântica de frente para a praia mais cobiçada do mundo, mas, também do morador angustiado que nunca irá acostumar-se com os vícios incorrigíveis do bairro: a poluição, a violência, o barulho infernal e, triste realidade, a prostituição que hoje pragueja livre e impunemente.

Mas voltemos no tempo, ao ano de 1965. Ali existiu, na rua Duvivier quase esquina com Barata Ribeiro, um imenso casarão explorado por portugueses como armazém e pensão. Barões do café, importantes personalidades do mundo político, social e militar frequentavam a casa do Cerqueira, como era conhecido o dono do negócio. Uma mescla sem fim de anônimos e notoriedades cruzava-se no local diariamente. Já na calçada, o chamariz era o cheiro que vinha da cozinha. O vaivém incessante era atraído na passagem e o tempero do macarrão, a gordura impregnada do bife acebolado ou o aroma do café especial e dos pães feitos ali mesmo, jogavam para dentro a freguesia indecisa que, uma vez satisfeita, retornava sempre e o negócio ia crescendo.

Cerqueira precisou ampliar, pois, agora já hospedava. A fachada de armazém continuou intacta. Quatro portas de enrolar escondiam logo cedo suas treliças de aço, deixando expostas as pencas de alho e de belos salames, os cachos de bananas e, atrás do balcão, o sorriso do Cerqueira. Sua fisionomia agradável, os braços cabeludos e o corpo roliço, carente de sol na pele, atendia todos com a mesma simpatia. Em pé, no comando da caixa registradora, fazia subir e descer por cima dos olhos os enormes óculos de fundo de garrafa à medida que recebia e passava o troco. Ao redor, os funcionários, dois rapazes e uma moça, atendiam as solicitações que vinham das mesas. Subindo-se dois lances de escada com degraus em madeira de ébano, delicadamente cuidada e polida, chegava-se aos aposentos. Cada pavimento possuía dezoito dormitórios e, entre estes, duas suítes. O bom gosto era a marca registrada de Cerqueira; cobrava bem por seus serviços mas não negava o conforto. Podia o hóspede, por trás do abandono e da paz de sua porta fechada, a exibir na maçaneta a plaquetinha de quem não aceita ser incomodado, desfrutar de um gozo inquestionável. Os quartos eram amplos; todos com banheiro e telefone, um luxo para a época. Os corredores, não muito compridos, eram largos o suficiente para uma perfeita privacidade e expunham tapetes longos e coloridos com adornos orientais. Vasos com plantas ornamentavam a passagem e quadros, as paredes.

O bom gosto de tudo isso tinha um toque especial e aqui voltamos a falar de Juliana. Há um ano e meio com o português nesta altura da narrativa, era quem chefiava mais duas outras arrumadeiras no controle da governança. Vejam que tremenda responsabilidade para uma menina de dezoito anos, apenas. Viera de São Paulo aos treze com a mãe, viúva. Fixaram-se na casa da cunhada Almerinda, a esposa de Cerqueira. Almerinda recém abrira uma confecção no centro do Rio financiada por ele. Perdendo o irmão, pedira a vinda da outra, exímia profissional de costura, para que, juntas, unissem ao trabalho a dor recente. Já Juliana, ao contrário das mulheres, o que gostava era de ver pessoas e trabalhar no meio delas; assim foi aceita na pensão de Copacabana.

Trazendo o alvor das manhãs iam as horas de sono de Juliana que já se deitava tarde ao retornar às dez e meia da escola onde se esforçava por conseguir destacar-se na vida realizando o seu sonho que era tornar-se uma atriz de sucesso. Vestida na saia azul-marinho de pregas, sapatos pretos, blusas e meias brancas, Juliana penetrava, cansada, o interior do comércio que passou a ter também como morada logo após a ampliação. Cerqueira, bem de vida, foi morar com a esposa na Barra da Tijuca em nova e bela propriedade. Juliana e a mãe também foram. Só que a menina, por força das responsabilidades e para ganhar tempo, precisou residir no estabelecimento de segunda à sexta-feira; aos sábados ia ela ao merecido descanso.

Era comum ainda encontrar-se, a essas horas, um ou outro freguês pelas mesas, principalmente às sextas, um dia difícil para a menina. Exausta de sono e de cansaço, passava indiferente ante os olhares dos que não a conheciam. Já chamava atenção pelas formas promissoras da futura mulher que despontava. Desfilando os seus dotes, os braços morenos das praias domingueiras envolvendo o caderno, junto aos seios torneados, passava rente ao balcão, cumprimentava algumas pessoas e ganhava os degraus de ébano, subindo para o quarto. Ali, tomava o banho, metia-se no robe cor de rosa que adorava e caía na cama. Para dormir mais rápido, quando não ligava a TV, pegava um romance, alguma revista de moda ou reportagens com seus artistas favoritos e sonhava acordada, antes de sonhar dormindo.

No meio desta rotina, às vezes monótona, outras vezes, feliz, Juliana ia plantando suas esperanças, as quais regava com economias muito sabiamente resguardadas. Os momentos de lazer eram raros; os namoros quase inexistiam. Conhecia rapazes interessantes nas areias que frequentava, mas não passava disso. Ela não tinha o tempo necessário para lhes dar a atenção que mereciam. Por outro lado, o que eles queriam sem merecer - por que não precisava de tempo nem de atenção - ela não lhes daria.

E assim foi vivendo até completar dezenove anos. A prosperidade de Cerqueira devia-se, em alto grau, à mão mágica de Juliana. A parte da hotelaria ficou a seu cargo. Os hóspedes entravam e o sorriso que traziam ao sair denunciava a satisfação e o primoroso atendimento. O português, se rico já era, mais rico ia ficando, pagando à sua mão direita um salário de administradora executiva. Ela, porém, pouco gastava; muito menos que o essencial que, de bom grado, era-lhe oferecido. Porém um fato, simples e corriqueiro na vida de qualquer um, alterou o bom humor desta jovem e pesou o suficiente para desviar o rumo de sua vida; impossível ignorar as consequências que defluíram de tais alterações.

Cerqueira adoeceu. O excesso de trabalho e obrigações trouxera-lhe uma úlcera que o obrigou a internar-se para tratamento; a mulher teve que substituí-lo na direção da casa por um mês e alguns dias, suficientes para desestruturar um relacionamento. Este, se era bom no geral, entre ela e Juliana apresentava farpas que cada vez mais se afinavam; tudo pela inveja e ciúme. Almerinda não era uma mulher feia mas, ciosa do marido, causava alguma intranquilidade, que chegou ao ápice com a ida da jovem para a pensão. Inúmeras foram às vezes em que Cerqueira estacionou o seu Alfa Romeo cor de vinho na garagem do prédio em Ipanema onde moravam, trazendo Juliana para casa, após mais um fatigante dia de trabalho. Almerinda nunca se conformou, sequer procurava entender as explicações que ele lhe dava. O curto tempo na pensão foi suficiente para infernizar a vida de Juliana; tudo à custa do ciúme doentio e equivocado. Loira, alta, chegando aos cinquenta mas mantendo ainda os dotes matreiros da mulher portuguesa, só fazia invejar desnecessariamente a beleza jovial da outra e os suspiros da freguesia que pendiam sobre ela.

Nesta época, entrou a frequentar a pensão o dr. Nonato Flores, conhecido magistrado da Comarca Judicial de Angra dos Reis, por quem Juliana passou a nutrir certa admiração e respeito que foi transformando-se em repúdio e aversão com o passar do tempo. O homem era rico e influente e usou de sagacidade para envolver a moça. Aparecia sempre de terno, no princípio às segundas-feiras pela manhã, aumentando depois esta frequência para duas e até três vezes por semana. Tinha trinta e oito anos, o rosto arredondado, quase gordo e uma calva que brilhava intensamente, identificando-o, de imediato, ao por-se para fora do Cadillac marrom que o conduzia. Gastava bem, não raro trazia amigos e quase sempre pagava a conta dos chopes, dos queijos, galetos ou da feijoada regada aos vinhos que consumiam. Ao ver e conhecer Juliana, encheu-se de amores e, sejamos claros, de desejos por ela. Sua reputação, entretanto, era um bem que ao menos aparentemente, por temor ou capricho, fazia questão de preservar.

Então criou estratégias para aproximar-se; alugou, no mesmo andar de apartamentos e bem próximo ao dela, uma suíte onde ficava, geralmente às segundas-feiras, até um pouco depois do almoço. Chegava sempre aos domingos, por volta das sete da noite, entregava as chaves a um funcionário da casa que conduzia até a garagem o luxuoso automóvel e subia, carregando uma maleta de couro marrom com fechadura. Dentro, segundo ele, laudos e petições que urgiam concentração e exame. Juliana era a primeira que o atendia pela manhã. Por volta das oito, ao ver a maçaneta livre da plaquetinha, pedia licença, cumprimentava-o e penetrava no quarto para a habitual arrumação. Invariavelmente sentado a uma mesa, ainda de pijama, tinha a atenção no estudo do seu pesado código ou no despacho de documentos. Era todo sorriso e gentileza para com a jovem. Dava espaço na mesa para que ela depositasse a bandeja aluminada; gostava de ser servido e cortejar em troca.

- Leite?

- Por favor.

Juliana, inclinando-se um pouco para pegar no carrinho o bule, deixava pender algumas mechas do seu comprido cabelo castanho

- Importa-se se perguntar que perfume está usando? - ousava ele.

- É claro que não; uso água de Jasmim, costumo colocar após o banho.

- Aposto que não é o mesmo da semana passada.

- Ah! Sim, tem razão. Passei leite de rosas por uns dias. Mas prefiro este; acho que combina mais comigo.

- Tem a minha opinião, é simplesmente delicioso! Continue usando.

Juliana agradecia, expondo ao Juiz, conquistador, a alvura do seu sorriso simpático, porém, não mais inocente a altura dos admiráveis dezenove anos de idade. Em seu traje uniforme, vestido amarelo, avental e gorro branco enfeitado com flores, passava a arrumação. Trocava o lençol, as fronhas e aspirava o pó do tapete.

Ao contrário do que fazia Cerqueira que deixava o cargo de sua confiança de patrão inteligente que era a conduta de seus funcionários - que por isso se tornavam eficientes e prestativos - Almerinda causava-lhes constrangimento e apatia. Rondava com frequência as dependências da casa como a querer flagrar o que nunca existiu. Demais, dirigia-se com imponência, não só aos trabalhadores como aos hóspedes e fregueses. Não possuía, em definitivo, talento para a lida popular.

No caso de Juliana, multiplica-se esta fama de Almerinda pelo ciúme que tinha dela e chegar-se-á ao produto infeliz e traumático. Já ao cabo da primeira semana de permanência na pensão dava, a megera, apocalípticos sinais de que sua intenção para com a outra era das piores e, com efeito, o pior aconteceu.

O Juiz Nonato Flores, que não perdia uma oportunidade para exercitar os predicados de bom sedutor, acabou por envolver e conquistar Almerinda. Por conta de um domingo em que ela trabalhou até mais tarde, os dois se conheceram e se engraçaram. Dr. Nonato, então, só voltava para o hotel bem depois das dez. É evidente, pois levava a portuguesa até em casa ou bem próximo; mas nunca sem antes passear por outros lugares primeiro. O coitado do Cerqueira, convalescente e costurado, não podia imaginar as travessuras da esposa. Numa dessas comentaram da menina e o Juiz; sem pudor nem receio, confessou sua tara. A mulher, experiente, que só queria o que conseguiu: uma aventura, viu nisso uma chance bem vinda de livrar-se da sobrinha; então armou o conluio.

O homem agora acordava tarde às segundas-feiras. Pedia por telefone o café, o arranjo e a limpeza. Sempre cortês e agora mais galanteador do que antes, recebia no quarto Juliana que, por ordens restritas de Almerinda, tinha que largar outros afazeres e atender, somente ela, ao doutor. Então ocorreu o seguinte: Dr. Flores convidou-a a assistirem juntos uma peça no teatro Vila Lobos; no elenco, entre outros, Raul Cortês, seu grande ídolo. A despeito da oferta e da insistência, ela não aceitou. Um acompanhante abastado, um almoço fino, em restaurante de classe, seguido da visão mágica da representação teatral, seu sonho maior, ela disse não, tendo vários motivos. Um destes e, obviamente, não revelado, foi a feminina percepção das verdadeiras intenções do Juiz. Porém, Juliana, inteligente que era, acabou compreendendo que nada do que fugisse a sua vontade e desejo poderia acontecer; entendeu que ele, na qualidade de homem culto, saberia respeitá-la. Sendo assim e, impondo uma condição, decidiu finalmente aceitar o convite. Certa manhã, após o costumeiro desfilar de elogios do magistrado para com ela, que acabara de servir-lhe o café, este lhe perguntou.

- E então, quer dizer que vai dispensar a apresentação do seu ídolo? A peça encerra-se esta semana. Eles vão para São Paulo e em seguida, correm o país. Se fosse você não perderia esta última chance de vê-los. - Ele se voltava para ela da mesa onde escrevia. Com os óculos numa das mãos e uma caneta dourada na outra, enquanto não obtinha uma resposta, apreciava os belos contornos das pernas morenas de Juliana que se mostravam, dos joelhos, onde batia o vestido amarelo, para baixo.

Ela terminara de arrumar a cama e trocava agora uma fronha. - vou aceitar o seu convite se me prometer que vamos e voltamos apenas como bons amigos e nada mais do que isso - recolocou no lugar o travesseiro e abaixou-se para pegar o aspirador. O homem emitiu um sorriso brejeiro que acentuou o brilho de sua careca.

- Prometo honrá-la e respeitá-la para todo o sempre, madame - brincou, ironizando e beijando os dedos em cruz.

Juliana saiu, deixando a porta aberta e, quando retornou para buscar o carrinho, ainda encontrou-o sorrindo consigo mesmo, abobalhado.

Saíram no domingo à tarde. Juliana deixou a residência da Barra por volta das cinco para passear como costumava fazer; tomou um ônibus e foi encontrar o Juiz em um ponto pré-combinado da Avenida das Américas. De calça jeans e um tênis azul da moda, deixava de fora o umbigo por causa da frente única lilás presa, às costas, por uma enlaçada. Chegando ao local, o homem já esperava, todo prosa dentro do seu elegante conjunto de seda esporte e sapatos mocassim; um rapagão. Passaram pelo La Violetera onde comeram frutos do mar;. Ele vinho, ela coca-cola, ele chocolate, ela sorvete e foram para o Vila Lobos. Assistiram à peça e se encantaram. Juliana muito mais. Agradeceu-lhe pelo convite e, principalmente, por seu comportamento exemplar.

Com a confiança em alta, dr. Nonato conseguiu várias outras saídas e com início de namoro. A menina já não saía sozinha e os rapazes das praias, inexperientes, foram ficando de lado. Só que o homem, nas noites de domingo, não dispensava o sexo, e este, praticava-o nos encontros furtivos, cheios de amor da fogosa Almerinda. Esta, quando soube da queda que ele tinha pela carne fresca e salutar de Juliana, não sossegou enquanto não viu o circo caído e pegando fogo. Os dois pombinhos já se cumprimentavam com amassos e beijos prolongados, mas cheios da cautela e do medo da jovem de que alguém os flagrassem. Pois, foi exatamente o que se deu. Almerinda, em busca de um momento como este, chegou numa segunda-feira, mais cedo que o normal, e procurou por Juliana - Deve estar na copa - disse um funcionário. Ela, imediatamente deixou o balcão, passou rente às mesas onde fregueses bebericavam em xícaras e outros fumavam conversando ou liam jornal e desapareceu por uma porta atrás da escada. Procurou na cozinha e na copa mas não a viu. Foi direto onde queria encontrá-la.

Retornou e subiu os degraus de ébano. Quando sumiu da vista dos que estavam embaixo, livrou-se da sandália branca de tiras e ganhou o segundo lance. Um casal de velhos que vinha descendo olhou meio que estranho para ela que disfarçou no seu sotaque galego.

- Ora pois, que me doem tanto os pés - disse sorrindo sem graça. Daí, continuou, recolocou o calçado ao chegar no corredor e andou sorrateiramente sobre o tapete. A suíte do magistrado ficava logo à frente, ao final de um grande e belo quadro retratando o mar e antigas caravelas de Portugal. A mulher aproximou-se, já tendo em uma das mãos um molho de chaves mestras. Se estivessem trancados, teria que ser rápida em sua ação. Girou com energia a maçaneta. A porta , apenas encostada, abriu fácil e totalmente.

Os dois trocavam beijos e carícias. Ele abraçava Juliana, envolvendo-a por baixo dos seus cabelos compridos, enquanto uma das mãos, a esquerda, acariciava-lhe a face contraída pelo beijo na boca quente e apaixonada. O sobressalto de Juliana vai além do que podem descrever meras palavras, mas vamos tentar. Enquanto beijada, conservava em uma das mãos uma xícara branca de fina porcelana que havia recolhido vazia de cima da mesa para por no carrinho. Terminava a aspiração do aposento e o juiz tomava lentamente os últimos goles do café e remexia as páginas de um livro. Entre trocas de afeto e palavras elogiosas, ele levantou-se, envolvendo-a no beijo, sem dar-lhe tempo de guardar a xícara que, por isso, ficou pendurada e presa em seu dedo às costas do sedutor. Com o surgimento estrepitoso e inesperado da outra, a mão, sem se dar conta do que tinha, arrojou-se impetuosa, levando à parede a louça que voou em pedaços. Um dos cacos foi bater na porta ao lado da mulher que irrompia, por pouco não a acertando. Juliana enrubesceu-se envergonhada. A loira, juntou a confirmação de suas suspeitas à constatação do prejuízo material que acabara de presenciar e cresceu em ódio e irritação.

O resultado de tudo isso não poderia ter sido outro, a julgar pela cavilosa urdidura. Dr. Nonato, ciente da armação, ainda tentou ajeitar as coisas pois não queria perder suas presas amorosas; além do que, considerava-se amado por Juliana e muito próximo do que queria. Levá-la para cama era uma questão de dias. Frustrado e aborrecido com a decisão radical da mulher, não quis mais dela saber, da mesma forma que a moça, magoada, deixou-o também.

Juliana perdeu o emprego. Cerqueira, entre indispor-se com a mulher e despedir sua gerente, escolheu esta segunda opção. A mãe, com a expulsão da menina, não quis continuar, nem na casa, nem na confecção e retornou para São Paulo. A filha ficou por lá umas semanas mas não se adaptou. Os conhecimentos que deixara na cidade maravilhosa facilitar-lhe-iam um outro emprego. Era começar vida nova.

As horas em que passou nos bancos e nos guichês da rodoviária de Santos, ora pensativa, ora amofinada com o incessante movimento da estação, serviram-lhe de preparo mental para uma nova realidade. Ainda não decidira de todo o que fazer, em que bairro morar, em que guarda-roupas arrumar os vestidos, as calças, as blusas, os sapatos, enfim todas as peças do vestuário que mal cabiam nas duas malas pesadas que portava. Chegando ao rio, ainda no terminal, almoçou e entrou em um táxi; foi para Ipanema, conhecia várias pessoas naquele bairro. Em uma das ruas que desembocam na praia, alugou um quarto de hotel e gastou a tarde em bancos e ao anoitecer foi distrair-se em um cinema. Retornando ao hotel, sentou-se ao telefone.

Dos amigos que possuía e das pessoas que conhecia limitou-se a contatar apenas aqueles que lhe trouxessem a certeza de uma nova colocação profissional. Dispensou antigos namorados. Precisava agora, mais do que nunca, preservar sua virgindade de investidas infrutíferas e aventureiras. Após dias de contatos com vários segmentos dentro e fora de sua área de atuação, vários currículos preenchidos e esquecidos, entrevistas fracassadas, ela encontrou uma amiga a quem chefiava na pensão. Conversaram rapidamente, matando as saudades e marcaram um encontro para o domingo pela manhã. Carla, a amiga, foi buscá-la no hotel com o namorado. Como o dia estava ensolarado e fazia muito calor, os dois surpreenderam-na chegando em trajes de banho, praticamente tirando-a da cama antes das oito. Enquanto o rapaz estacionava o Dodge vermelho e conversível, Carla comunicava-se da portaria com a outra.

- Estamos esperando, quero que conheça o Augusto. A propósito, traga roupa de banho, o dia está lindo. - Passados quinze minutos, desce Juliana em saída de praia por cima do maiô de duas cores, preto nas costas e alaranjado na parte da frente. O namorado de Carla, já no hall, foi-lhe apresentado, beijou-a no rosto e tirou as chaves do bolso de sua bermuda branca, conduzindo-as para o automóvel. Pegaram a Vieira Souto e, vinte minutos depois, conversavam na areia sobre os mais diversos assuntos. Carla, em seu traje de banho cinza e óculos de sol na cabeça, sentia-se contente com a companhia da amiga de quem muito gostava e dava sinais, pelo entusiasmo da prosa, de que dirigia sua atenção mais para ela que ao próprio namorado. Ele até que era simpático. Ao fim de um tempo, pediu licença as duas e cumprimentou uns companheiros que passavam, chamando-o para uma partida de vôlei. Augusto desfez-se da bermuda e da camiseta, expondo um corpo atlético e bronzeado, e afastou-se.

As duas aproveitaram a deixa para encetar uma conversação mais adequada às mulheres quando se veem a sós. Carla sinalizou para um vendedor ambulante que, ao aproximar-se, tirou de sua caixa azulada de isopor dois picolés, mas teve que recolher um deles. - Obrigada, vou preferir um refrigerante ou água para matar a sede - disse Juliana. A outra pagou, dispensando o rapaz.

- Sabe das últimas? - perguntou, desenrolando o papel do picolé.

- Não, enquanto você não me contar; estou curiosa. - Juliana tirou de sua sacola jeans uma toalha de banho e estendeu-a na areia, deitando-se com os joelhos dobrados e as mãos sobre o colo.

- A mulher do galego anda traindo-o às escondidas e o homem está uma fera; desconfia de tudo e de todos. - Juliana ouvia calada e pensativa enquanto a amiga falava de algumas mudanças ocorridas no hotel com a sua saída. - Afora os diretamente envolvidos, ninguém mais ficou sabendo dos reais motivos da demissão. - Carla prosseguia falando, até que mencionou o Juiz.

- Ele ainda vai lá? - Juliana perguntou curiosa. Então, não tendo nada a perder e até como desabafo, contou o que aconteceu naquela manhã e o que levou àquele final. Em contrapartida, Carla também contou o que sabia.

- Pois vou dizer a você. - falou, esticando o braço para alcançar uma lixeira amarela onde jogou o palito. - O amante da madame portuguesa não é outro senão o tal Juiz. Já andava desconfiada quando peguei os dois se beijando à entrada da suíte. Por sorte não me viram; caso contrário seria hoje mais uma desempregada. Como você foi cair numa dessas, meu amor? É certo que o homem é rico e bonitão, mas para falar a verdade, eu nunca fui com a cara dele - completou, lavando as mãos meladas do sorvete com a água de um recipiente de vidro. Um senhor escuro, todo de branco e com um boné amarelo, passou oferecendo água gelada. Juliana sentou-se, comprou uma garrafa, abriu-a e bebeu, quase que de uma só vez, o líquido até a metade. Satisfeita, falou:

- Quanto ao romance dos dois, não estou admirada. A sua revelação só me trouxe a certeza que eu não tinha. Mas ele sempre me tratou muito bem, talvez por me saber virgem. Contudo, acho que escapei por pouco.

Foi um domingo alegre e descontraído aquele, que passou tão rápido quanto os últimos acontecimentos na vida de Juliana. No dia seguinte, a realidade; precisava arranjar trabalho o quanto antes. Tentou os classificados, novos currículos e novas entrevistas. Uma noite, no hotel, ao sair do banho, toca o telefone. A operadora, ao ser autorizada, transferiu a ligação.

- O homem perguntou por você - disse Carla do outro lado da linha. - Juliana, segurando a toalha enrolada ao corpo molhado com uma das mãos respondeu: - Diga que o mandei para o inferno se perguntar de novo. - dizendo isso, sentou-se à beira da cama.

- Falei que estava desempregada; deixou-me um cartão.

- Não quero mais nada com este homem, ele prejudicou minha carreira.

- Parece que gosta de você, está caidinho.

- Eu sei muito bem o que ele quer.

- Ouça, querida - disse Carla com firmeza na voz - você já não é nenhuma criança. Use a cabeça e reverta a situação. Tire dele o que precisa e pronto.

Despediram-se. A menina pôs-se a pensar ainda sentada, com o fone sobre as pernas. Tinha a chance de um novo emprego nas mãos. Começar de onde parou ou, quem sabe, iniciar nova carreira. Sentiu as dificuldades das três semanas ali no Rio, onde só saía dinheiro e nenhum entrava. Não podia continuar desse jeito. Pensou nos riscos, analisou as perdas. Estas falaram mais alto. Levantou-se e desfez-se da toalha; abriu a porta do guarda-roupas, olhando-se no espelho. Era linda. Orgulhava-se de sua beleza física ao mirar-se de frente e de lado. Algumas gotas da água do banho, relutantes em se evaporar, ainda ponteavam-lhe os seios, enquanto outras, desfeitas pelo ar frio do ventilador girando no teto, escorriam-lhe corpo abaixo e, tristes, desfaziam-se. Virou o rosto e olhou , pendurado em um cabide, o seu uniforme colegial; quase dois meses que o não vestia. Precisava retomar às aulas para não perder o ano e mostrar a todos como está agora ainda mais bela naquela saia azul marinho e naquela blusa e meias brancas.

Resolveu aceitar a oferta. Ligou para Carla ao fim de três dias de indecisão e tormento. Convidou a amiga para jantar no restaurante do hotel e pegou, finalmente, o cartão. Ligou. O Juiz tinha um parceiro em outra atividade, totalmente diferente daquela que exercia. Conseguira, para o cidadão, um ganho de causa julgada como perdida e ele, como agradecimento, ofereceu ao magistrado uma sociedade em uma das três casas de show que possuía em Angra dos Reis. Dr. Nonato mencionara isso bastante vagamente a Juliana que associou a lembrança ao conteúdo do cartão. Sendo assim, ela viajou e foi entrevistar-se com Romualdo, o sócio, que, respeitando a indicação, empregou-a imediatamente. Decorridos dois meses, já em nova vida, trabalhando e estudando, Juliana sentia-se bem e até surpresa com a ausência do outro. Então surgiu nova proposta: de garçonete faria um teste para se apresentar cantando à noite em outra casa, a que eles possuíam em comum, com o dobro do salário.

Vieram os ensaios, o teste final e, em seguida, a aprovação. Já em nova atividade, uma visita, que passou a ser constante, aproximava-se cada vez mais de lá. Reatou o namoro. Um processo no Fórum de Angra, envolvendo o Juiz em escandaloso caso de assédio sexual, roubou-lhe a magistratura e pôs fim a sua carreira. Agora a casa de shows passa a ser sua ocupação primordial. Juliana tornou-se sua mulher. Já aos vinte e um anos, morava com ele, satisfazendo-lhe a paixão e enchendo-lhe os bolsos como a principal atração das noites, repletas de outros apaixonados e endeusados por sua voz e pelo seu carisma. Já não faltavam, agora, propostas; muitas de virar a cabeça, que a deixavam na corda bamba em virtude do tipo de convivência que, após o segundo ano de vida em comum, passou a ter com o ex-Juiz.

Embora apresentando um padrão de vida equivalente ao que desfrutava à época de sua desditosa carreira, devia sofrer de frustração, posto que não demonstrava muito gosto em administrar um comércio, ainda que com tato e eficiência. Mudara a rotina de horários, dormia pouco e, com a desculpa de ter que trabalhar, colocava a mulher em um táxi e a mandava para casa. Fazia isso todas as noites em que ela não cantava, a fim de ficar com outras mulheres. Bebia mais do que o normal e, para completar a infelicidade de Juliana, passou também a espancá-la. Muitas vezes percebia-se na jovem cantora, juntas a sua tristeza e desapontamento, marcas de violência. Ela suportou o quanto pode até ser vencida por uma das pressões que vinham de fora.

No comprido palco, de frente para um bonito salão onde cabiam umas quarenta mesas com cadeiras em torno de uma pista de dança, apresentava-se Juliana. Com frequência, embalada pela emoção da melodia que interpretava e para, principalmente, furtar-se às lágrimas que ameaçavam cair, descia os degraus, juntando-se aos ouvintes que adoravam estes momentos. Nonato (agora já não é mais doutor), raramente no salão durante os espetáculos, ocupava-se do controle geral e do caixa. Com frequência, terminava ela, por ali, entre a plateia, um número e passava o microfone ao apresentador da noite. Este anunciava um intervalo ou outra atração que, surgindo de trás das cortinas azuis, arrancava novos aplausos. Juliana então escolhia uma mesa entre as que lhe eram oferecidas e juntava-se aos ocupantes. Em uma dessas noites, sua dor parecia em dobro. Não conseguira segurar as lágrimas que, ainda no início da canção surpreenderam-na. Já na mesa, um hematoma na região do queixo, abaixo do lábio no lado esquerdo, estarreceu os companheiros; um deles comentou: - Se eu fosse você, largava esse sujeito agora mesmo.

- Como? Não tenho para onde ir nem tenho mais um tostão. Dependo totalmente dele.

Exatamente. Juliana estava sendo explorada pelo homem que lhe prometera o mundo em troca de uma conquista. Conquistara-lhe o corpo esquecendo o coração. Na verdade poderia largar tudo e voltar para São Paulo e para a mãe. Mas o Rio de Janeiro envolveu-a de igual forma. Não tinha mais nada de seu, nem o amor dos homens. Em todas as cantadas que recebia, e eram muitas, só ficava o interesse no que ela possuía de mais valioso: o corpo. Ao menos é o que se lhe via, pois impossível era penetrar-lhe os pensamentos, tão conturbados de então, e as intenções, nem se fala. Começou a ponderar as propostas que lhe faziam, pois as roupas e as joias que sempre gostou de usar, os lugares que sempre admirou ao lado do Nonato de antes, enfim, a liberdade que tanto amava e preservava, tudo ficara para trás, num passado do qual ainda sentia o cheiro mas que rapidamente lhe fugia das mãos. Passou a traí-lo; mais pelas recompensas materiais que vinham de todas as formas. Presentes que ela vendia por não poder usá-los e carinhos que aceitava mas não conseguia retribuir. Tinha nojo dos homens.

Dali em diante via-se uma Juliana um pouco mais senhora de si, reagindo a seu modo à dominação do outro. Os efeitos especiais da enorme bola de luzes que, do alto teto do salão espargia as suas cores sobre as mesas e sobre a pista de dança, enquanto escondiam alguns rostos, traziam outros à claridade e, nesse vaivém de luz e escuridão, destacavam-se os amantes de Juliana daqueles que não a queriam ou que, ao menos até ali, nunca a haviam possuído. Nonato, de frustrado e violento, passou a crápula e sem escrúpulos. A princípio, fingiu que nada sabia. Como isso se tornou impossível, tirou-a de casa e voltou a dar-lhe um salário menor para cantar, posto que era a prata da casa; tudo com uma condição. Deveria morar no emprego e tratar muitíssimo bem a clientela. Pronto, estava armado o seu plano.

A clientela, que já era requintada, passou a ser escolhida. Juliana, quando simpatizava com um tipo interessante, saía com ele. Gostou de um e namorou por algumas semanas. Quando se sentiu apaixonada, perdeu-o; sumiu para nunca mais aparecer. Depois gostou de outro, e de outro. Mas o resultado era o mesmo, desapareciam de sua vista. A insegurança tomou conta de si. Tinha que se libertar daquele homem diabólico. Começou a juntar o pouco dinheiro que ganhava. O cabedal de propostas prosseguia e ela passou a ter no sexo a fuga que não era capaz de empreender. Aquele mundo tornou-se irresistível. Já não vivia sem o glamour das noites em que era rainha, no palco, nas mesas e, de quando em quando, em seu quarto particular. Ao precisar de dinheiro para a liberdade definitiva com a qual ainda sonhava, passou a aceitá-lo também, em troca de suas noites de amor e (por que não?) dividi-lo com Nonato que já o recebia integral dos clientes que, sem ela saber, lhe arranjava.

Assim viveu por mais de dez anos. A menina inocente de Copacabana ficara no passado. A cada ano o contato com a dura opção de vida forjava-lhe uma nova têmpera que, por sua vez, adaptava-a ao ambiente em que passou a conviver. Seu mundo transformou-se por completo. As companhias femininas eram loiras, morenas e mulatas que dividiam as atenções dos convidados; tudo em alto estilo. Tudo muito discreto. O ambiente em nada se alterou. As mesmas mesas, o mesmo salão iluminado pelos mesmos efeitos especiais e o mesmo palco. Porches, Alfas Romeo, Mercedes, Bugres e Limusines enchiam as calçadas e o porteiro, forte e engravatado, recebia na entrada, embaixo do luminoso neon, os doutores, os políticos, os militares, os empresários e outras castas em busca de conforto e diversão. Muitos levavam as esposas, cientes ou não de onde entravam, tanto uns quanto outros, porquanto boa música e boa comida não faltavam e o proibido era feito fora dali.

A influência de Juliana era o respeito a que se impunha e passava para as outras garotas que, como ela, sonhavam algum dia não ter que vender o próprio corpo. Ela era a chefe; dizia com quem poderiam sair e sob que condições. Enfrentou desafios, superou-os um a um. Dominou homens dos quais conheceu as fraquezas. Um deles, o próprio Nonato Flores, que chorou a seus pés por uma reconciliação que sabia impossível; ele não podia mais com ela.

A Juliana que vamos encontrar no final da década de setenta, à porta de completar quarenta anos de idade, é uma mulher de influência, com dinheiro e toda a beleza que trazia aos vinte. Aos vinte e sete, livrara-se de Nonato Flores mas não da casa de shows, que agora lhe pertencia. Comprando a parte dele, transformou tudo e, com força de vontade, deixou de prostituir-se, pois não mais disso necessitava. Conhecera um novo amor que soube compreendê-la e apoiar. Juntos, fizeram do local uma requintada churrascaria que, além da boa comida, ofereciam aos amantes da boa música o encanto da voz de uma Juliana feliz e bem acompanhada.

- Agora, senhores - falou a cantora, tendo sobre si a atenção e o olhar dos presentes e a luz de um refletor destacando no palco sua presença confiante dentro de lindo vestido azul de noite - quero apresentar uma estreante; espero que apreciem sua voz e o seu talento aos quatorze anos.

Surge de trás das cortinas Julia Lobato. O conjunto dá a introdução de yesterday e ela entra com perfeição na melodia, dando uma piscadela para a mãe Juliana que acabara de descer os degraus e sentar-se a uma mesa para ver e aplaudir a futura artista. Filho de peixe…

  • Publicado em: 27/03/2006
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